por Djamila Ribeiro
Era março de 2018 quando entrei em um táxi rumo à Zona Sul de São Paulo para uma tarde de consequências intensas para todas as pessoas envolvidas. Tinha uma ideia na cabeça e nada nem ninguém abalaria minha determinação. Era como se eu soubesse, dentro de mim, que seria uma ideia de imensa potência, uma potência que emerge do reconhecimento em vida de nossas mais velhas, que desbravaram caminhos por onde minha geração passou e que são o motivo de termos partido de um outro lugar na sociedade. O resultado dessa tarde conto mais à frente. Antes, permitam-me uma digressão.
Essa ideia começou em uma mesa festiva na Lapa, no centro do Rio de Janeiro, após o lançamento do livro Lugar de fala (2017), o primeiro da Coleção feminismos plurais. Naquela noite mágica, com a presença de Conceição Evaristo, Flávia Oliveira e tantas outras irmãs, milhares de pessoas fecharam a Rua Morais e Vale em favor da arrecadação de centenas de quilos de alimentos para a população trans e travesti, do sorteio de brindes, de blocos de maracatu, de fogos de artifício e da venda de uma obra escrita por uma mulher preta e publicada de forma independente. Uma semana antes, no lançamento do livro em São Paulo, na Casa do Baixo Augusta, a distribuição de 200 exemplares para as primeiras pessoas que chegaram, além de comida farta, já anunciava a novidade que revolucionou o mercado editorial. Naquela noite, a primeira noite de todas, quem foi a primeira pessoa na fila de autógrafos? Ela, a que nasceu para ser a primeira: Sueli Carneiro.
É difícil descrever o sentimento misto de admiração, emoção e respeito que me guiaram sempre que meu caminho cruzou com o de Sueli. Entre 1999 e 2004, fiz parte da Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos, organização comandada por Dona Alzira Rufino, onde tive o primeiro contato com o movimento organizado de mulheres negras brasileiras. Eram anos de profunda movimentação, já que as cotas raciais, então apenas um sonho, eram atacadas todos os dias na mídia hegemônica, não havendo redes sociais para estabelecer uma contranarrativa. Foi preciso muita estratégia daquelas mulheres, que se sentavam à mesa principal discutindo os rumos do ativismo feminista negro daqueles tempos. Em vários desses encontros, Sueli Carneiro chegava e eu e minhas colegas de organização ficávamos no canto apenas admirando – e torcendo para não sermos notadas, tamanha a reverência que havia naquele ambiente. São coisas que a geração mais nova vai algum dia entender? Fico me perguntando…
Naqueles tempos, Sueli já havia cravado seu nome na história do país. Especificamente naquela época, lembro-me bem de que ela estava produzindo em ritmo “ogunhístico” sobre o tema da diversidade racial no mercado de trabalho. Hoje em dia, quando pesquiso o tema para palestras em empresas, deparo-me com os textos dela, que já escreveu tudo o que precisava ser escrito sobre o assunto. Basta ler, está lá. Seu empenho em prol da diversidade no mercado de trabalho oportunizou que pessoas negras acessassem e acessem postos com remuneração digna. Isso beneficia tanto a pessoa, evidentemente, quanto seu entorno, sobretudo se for uma mulher negra. A luta pela empregabilidade de pessoas negras, historicamente confinadas à faxina e à segurança, é uma luta que, como consequência, possibilita uma experiência de negritude diferenciada, com recursos materiais, algo que nos foi negado. No Brasil, as pessoas negras são pobres porque são negras. Visionária, Sueli foi uma de nossas griôs, como Cida Bento e Thereza Santos, entre tantas outras que lançaram as bases para um debate fundamental e contemporâneo no país.
Tenho certeza de que, nesta justa homenagem feita pelo Itaú Cultural (IC), contribuições de Sueli Carneiro para o país são exaltadas e, ainda assim, falta espaço para tudo o que ela conquistou. A guerra, nos anos 1980, no Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo merece alguns capítulos à parte. Quem sabe um filme? Volto àqueles tempos em que era apenas uma jovem de 20 anos e via Sueli de longe. Assistia aos seminários anteriores e posteriores à Conferência de Durban, na qual o movimento de mulheres negras brasileiras deu um show, movendo as bases do debate racial numa perspectiva global. Na tradição de Lélia Gonzalez, feministas negras brasileiras já mostraram estar alguns passos à frente no debate, posto que é preciso muita sofisticação para erguer a espada em um país que nega o racismo, sob o mito da democracia racial, e tranca oportunidades para mais da metade da população. Minha geração, que bebeu dessa fonte pioneira, teve todas as condições de entrar com tudo na guerra narrativa, de compartilhar a rota desbravada e seguir adiante.
No meu caso, seguir a rota não teria sido possível sem Sueli Carneiro. Em 2001, em meio a minha admiração a distância, fiz parte de um treinamento de mídia para ONGs, em São Paulo, realizado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, baobá do movimento negro brasileiro plantado na década de 1980 por Sueli e por suas companheiras de estrada, e cujos galhos, tronco e frutos nos protegem e nos alimentam. Tempos depois, vim a ser mãe e acabei sendo tomada pelas demandas da vida, até ingressar, aos 27 anos, no curso de filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graças à convivência e à leitura de mulheres como Sueli – nesse momento, referência que também se estendia à pesquisadora e doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) –, trilhei meu caminho com andar altivo. Vieram as redes sociais e, já no mestrado, fiz uma conta no Facebook, onde passei a escrever textos que foram amplificados. Não fosse Sueli, na época uma mãe brava, tal qual a minha, Erani Ribeiro dos Santos, também uma mulher de Ogum, provavelmente teria me deslumbrado, sido uma boba e feito nada com aquilo.
Foram momentos decisivos os de Sueli Carneiro na minha vida, a maior parte deles com duras recebidas em salas fechadas, almoços reservados e visitas especiais para me apoiar no gabinete da Secretaria de Direitos Humanos em São Paulo. Mas foi um período também de muita festa, como na Ocupação Abdias Nascimento, no IC, quando fazia uma roda de conversa e levei um susto ao vê-la na plateia ao lado de Conceição Evaristo.
Na sabedoria ancestral, Ogum é o irmão mais velho de Oxóssi e líder da comunidade, aquele que sai para travar (e sempre vencer) batalhas pelo seu povo. Uma vez, a comunidade foi invadida por povos estrangeiros e Ogum teve que voltar às pressas para lutar e expulsá-los. Depois que a ameaça foi contida, ensinou Oxóssi a caçar e a guerrear para que sempre soubesse proteger seu povo enquanto ele estivesse fora. Assim Sueli fez comigo. Foi em sua mão que segurei com fé quando não tinha a menor ideia de qual caminho seguir para enfrentar as batalhas que precisava lutar.
Uma delas foi a da democratização do acesso à leitura de produções escritas por pessoas negras. Cresci reverenciando iniciativas dessa natureza, como os Cadernos negros, de Esmeralda Ribeiro, e tantas outras. Sentia que era o momento de percorrer o caminho trilhado e dar um passo rumo à distribuição nacional de livros de temáticas raciais críticas a preço acessível e linguagem didática, com direito a lançamentos com grandes celebrações da nossa incrível potência. Assim se deu a criação da Coleção feminismos plurais, que nasceu já precisando de uma expansão para obras completas brasileiras, latino-americanas e caribenhas.
Volto ao começo do texto. A ideia de posicionar a coleção embaixo de um guarda-chuva que permitisse a expansão para outras iniciativas só poderia ser batizada em homenagem a uma mulher de Ogum. Entrei no táxi na cara e na coragem, na ousadia que Oxóssi sabe ter, e fui à Zona Sul de São Paulo pedir a benção da minha mais velha. Cheguei e a encontrei com sua amada filha, Luanda Carneiro Jacoel, com quem já havia caminhado em outras aventuras. Sentei-me e expliquei o que pretendia, disse que seria uma honra enorme que esse selo editorial se chamasse Selo Sueli Carneiro. Segurando as mãos de minha referência, recebi a benção e a missão de estrear o selo com um livro que ela há muito gostaria de publicar, um livro que reuniria textos fundamentais de toda a sua trajetória de imensa contribuição para a sociedade. Espontânea, como se não fosse eu a pronunciar aquelas palavras, imediatamente disse: “Escritos de uma vida”. E, desse modo, estava alafiado.
Quatro meses depois, em julho, numa linda noite com o cheiro do temporal que havia lavado a tarde paulistana, a choperia do Sesc Pompéia começou a encher. E encheu até lotar. Familiares, irmãs e irmãos de militância, amigos, amigas, admiradores de todas as partes encontraram suas cadeiras para assistir ao lançamento do livro Sueli Carneiro: escritos de uma vida (2018), com prefácio de Conceição Evaristo, inaugurando o Selo Sueli Carneiro. No palco, ela recebeu pessoas queridas: sua companheira de Geledés Nilza Iraci, seu amigo de luta Átila Roque e sua querida biógrafa Bianca Santana. Histórias foram contadas, homenagens foram feitas e champanhes foram brindados. Exu, Ogum e Oxóssi, os três irmãos, estavam em festa!
Desde então, além dos dez títulos da Coleção feminismos plurais, o Selo Sueli Carneiro já publicou Ó pa í, prezada! (2019), dissertação de mestrado de Carla Akotirene sobre racismo e sexismo no presídio de Salvador, e Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (2020), organizado por Selma Dealdina, que reuniu 18 mulheres de quilombos de todas as regiões brasileiras para compartilhar seus saberes, uma obra inédita na história do país. Como se vê, se há um orixá com vocação para o ineditismo, é o que coroa Sueli Carneiro, sua querida filha.
Se naquele dia foi uma festa enorme, o relançamento do Selo Sueli Carneiro em parceria com a Editora Jandaíra, no Centro Cultural São Paulo, foi apoteótico. As 3 mil pessoas que conseguiram entrar no meio dos milhares que festejaram do lado de fora cantaram e dançaram com a banda As Baías e cantora Paula Lima puxando “Olhos coloridos”, junto de uma saraivada de aplausos para Sueli. Um dia marcante na história da cidade, data em que uma produção independente negra parou o trânsito local para cantar seu orgulho e sua admiração pela intelectualidade que abriu tantos caminhos. Voltaríamos lá meses depois para o evento do livro em um auditório lotado, mesmo com uma chuva torrencial na capital paulistana. Foi a última vez que vi pessoalmente minha amada referência e sábia conselheira antes da pandemia.
Conto os dias para, quando a pandemia passar – e vai passar –, nós nos vermos novamente. Faremos uma festa daquelas que Ogum merece. Uma festa como a que fizemos no auditório principal da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS), que veio abaixo com milhares de pessoas ovacionando Sueli Carneiro. Era o Festival literário de Porto Alegre, que a levou como homenageada por conta do lançamento do livro. Fizemos uma mesa com mediação de Fernanda Bastos e a energia que contagiava o lugar foi eternizada por Josemar Afrovulto, cuja foto tem circulado internacionalmente. Nela, eu seguro a mão de minha mais velha e estamos sorrindo uma para a outra, em frente a uma multidão que reconhece em vida o trabalho de uma líder guerreira que trouxe à comunidade negra global e, em especial, à comunidade negra brasileira aquilo que Ogum traz: o progresso.
Viva a Ocupação Sueli Carneiro!