por Juliana Ribeiro
As trilhas sonoras de novelas marcaram época no Brasil e ganharam destaque para além das telas. Bastava ouvir uma música para, de imediato, lembrar da abertura de uma trama, do casal principal ou daquele personagem mais marcante. Um dos grandes responsáveis por todo esse sucesso é Mariozinho Rocha, produtor e diretor de produção musical da Globo por mais de 30 anos.
Ele, que sempre trabalhou com música, aceitou a missão a convite do diretor Daniel Filho. Na época, dividia-se entre o trabalho na produtora Polygram e o “frila” na emissora carioca. Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes e Agnaldo Silva, foi a primeira novela com trilha feita por Rocha. “Felizmente, meu primeiro trabalho na emissora foi coroado de um supersucesso. Então, para mim, foi muito marcante”, diz.
Segundo Mariozinho, a trilha sonora de Roque Santeiro foi a terceira mais vendida (de novelas), somando cerca de 1,2 milhão de cópias e ficando atrás apenas de O rei do gado (1996), com 1,6 milhão, e Tieta (1989), que ultrapassou 1,5 milhão em vendas. No disco da trama de Dias Gomes entraram músicas interpretadas por artistas como Elba Ramalho, Sá e Guarabyra, Wando e Roupa Nova, que embalaram as histórias dos moradores da fictícia cidade de Asa Branca.
“Uma coisa engraçada é que o Roupa Nova não queria gravar ‘Dona’, mas, como éramos muito amigos – até o nome fui eu quem dei ao grupo –, disseram: ‘Vamos fazer esse favor para você, a gente não está gostando muito, não, mas a gente não pode negar esse favor para você’. E hoje é um sucesso extraordinário! Duvido que eles façam shows sem cantar essa música”, revela.
Neste bate-papo exclusivo com o Itaú Cultural (IC), Mariozinho Rocha conta como foram selecionadas as canções de Roque Santeiro e relembra os personagens e as histórias curiosas dos bastidores. Confira na íntegra.
Mariozinho, sabemos que você foi um dos responsáveis pela trilha sonora de várias novelas da TV Globo. Como foi o início de sua carreira nessa área?
Na verdade, sempre trabalhei com música. Na época eu era produtor da Polygram, se não me engano. Tinha saído da EMI, fui para a Polygram e aí recebi um convite do Daniel Filho, que perguntou se eu queria fazer a trilha sonora de uma novela, e falei “Tudo bem”. Não era uma coisa que atrapalhava – pensei que não atrapalhava – o meu dia a dia na gravadora, então topei. Fui lá, conversei com o Daniel, depois com o Paulo Ubiratan, depois com o Boni. Eu era um freelancer, não era contratado fixo da Globo, fui contratado para fazer apenas aquela novela [Roque Santeiro]. Alguns anos depois, o Boni me chamou para assumir a direção musical da TV Globo, incluindo todas as novelas, minisséries, vinhetas, tudo.
A trilha sonora de Roque Santeiro (1985) foi um grande sucesso. Essa novela foi marcante para você, de alguma forma?
Sem dúvida! Roque Santeiro foi muito marcante. Primeiro pelo fato de ser a primeira novela, a primeira vez que eu estava trabalhando para a TV Globo junto com Boni, Daniel, Paulo Ubiratan – só fera! E o sucesso que a novela fez foi muito grande, assim como a trilha. Felizmente, meu primeiro trabalho na emissora foi coroado de um supersucesso. Na verdade, eu nem esperava que fosse tanto sucesso assim, mas graças a Deus deu tudo certo. Daí, acabei fazendo outras e outras, até me tornar diretor musical da Globo, a convite do Boni. Então, para mim, foi muito marcante, sem dúvida.
Como acontecia a seleção do repertório de uma novela? As músicas podiam ser encomendadas especialmente para determinado personagem, por exemplo?
Uma vez definidos a novela, o diretor e o produtor, eu recebia a sinopse, que era, de certa forma, uma coisa fria. Quando recebi a de Roque Santeiro, eu ainda não tinha falado com o Paulo Ubiratan, que era o diretor, e estava escrito assim: Viúva Porcina, mulher determinada e coisa e tal. Imaginei uma bruxa toda de preto, com guarda-chuva e véu! Fui conversar com o Paulo para saber destrinchar cada personagem e buscar a música que se adequasse mais a cada um deles, e o Paulo explicou: “Não, Mariozinho. Primeiro que ela não é viúva, é uma mentira, uma mentira enorme! E ela é over, não tem nada de viúva tradicional, de preto; pelo contrário, ela usa uns laçarotes, é uma mulher muito poderosa, determinada, então tem de ser uma música que acompanhe esse temperamento dela”.
No caso do Professor Astromar, que era apaixonado pela Mocinha – personagem de Lucinha Lins – e que tinha um negócio de lobisomem, eu me lembrei logo de Zé Ramalho. Falei: “Zé, queria que você fizesse uma música assim, assim e assim, falando desse negócio, mas queria que você cantasse daquele teu jeito que, de vez em quando, para e fala”. O Zé entendeu muito bem a proposta, tanto que, no dia em que ele foi gravar, chegou todo de preto – também não precisava exagerar [risos]. Então, cada personagem era destrinchado com o diretor, pelo menos com Roque Santeiro foi assim. Não era com o autor; o meu contato era com o Paulo Ubiratan, e aí eu ia buscando.
Quando eu encontrava a música pronta, maravilha! Foi o caso da “De volta para o aconchego”, de Elba Ramalho. Eu, casualmente, passei na Polygram, no estúdio, e o Dori Caymmi estava botando o violão na música em que ela já tinha posto voz e tudo, com o Marcos Mazzola, que era o produtor dela na época. Quando ouvi, disse: “Meu Deus, isso é a chegada do Roque Santeiro, a volta dele. Me arruma, pelo amor de Deus, uma cópia disso aí!”. Na época, era fita cassete; me arrumaram a fita e mostrei ao Paulo, que adorou.
Encomendei a abertura ao Morais Moreira, porque naquela época estava difícil achar tipos de música que coubessem no universo daquela novela especificamente. Então, a maior parte foi encomendada, acho que talvez uma ou duas já estavam gravadas e se adaptavam à novela. É por aí, mais ou menos. Enfim, as coisas foram sendo feitas assim, com um pouco de sorte também, sem dúvida.
Três sucessos da trilha sonora de Roque Santeiro são de Sá e Guarabyra, incluindo “ABC do Santeiro (Roque Santeiro)” e “Dona”, gravada pelo Roupa Nova, que se tornaram músicas atemporais. Existe alguma história por trás dessas escolhas?
Roque Santeiro era uma novela meio atemporal, um microcosmo brasileiro. Era em uma cidade do interior, de pessoal pagando promessa. Daí me lembrei de Sá e Guarabyra. O Sá é um tijucano, não é aquele cara cosmopolita, e o Guarabyra é de Bom Jesus da Lapa (BA), uma cidade de peregrinos que era tudo: tinha avião, tinha carro, mas também tinha aquela coisa de procissão, da veneração, enfim… Achei algo que eu procurava em Sá e Guarabyra, tanto que eles têm três músicas na novela, sendo duas cantadas por eles, que são “Verdades e mentiras” e a própria “ABC do Santeiro (Roque Santeiro)”, e “Dona”, gravada pelo Roupa Nova – magistralmente, por sinal.
E uma coisa engraçada: o Roupa Nova não queria gravar “Dona”, mas, como éramos muito amigos – até o nome fui eu quem dei ao grupo –, disseram: “Vamos fazer esse favor para você, a gente não está gostando muito, não, mas a gente não pode negar esse favor para você”. Hoje é um sucesso extraordinário, e duvido que eles façam shows sem cantar essa música.
Existe alguma curiosidade de bastidores da novela ou história que o público nem imagina que tenha acontecido?
Vou contar uma história sobre aquele chocalho do Sinhozinho Malta. Na verdade, temos de dar crédito também a outras pessoas, como o Aroldo Barros, sonoplasta excelente, uma pessoa admirável e muito competente. Na verdade, aquela brincadeira com o chocalho do Sinhozinho Malta surgiu de um problema de áudio. Ele usava muitas pulseiras, e acho que eles trabalhavam com microfone de lapela, escondido ali, e, quando o Sinhozinho Malta chacoalhava o braço, com o “Tô certo ou tô errado?” – que era o bordão dele –, aquilo dava uma interferência no áudio. Daí o sonoplasta falou: “Mariozinho, estamos com um problema aqui, vou ter de tirar o áudio nessa hora ou diminuir bastante, tentar limpar, cortar os agudos ou a gente vai ter de botar alguma coisa em cima disso aí para poder abafar ou, então, o Paulo regravar”.
Como é que eu iria chegar para o Paulo Ubiratan ou qualquer diretor e dizer: “Olha, está tendo um problema de áudio por causa das pulseiras, então tem de regravar a cena”. Eles iriam me mandar para aquele lugar, e com toda a razão! Eu disse para o Aroldo que a gente tinha de dar um jeito. Aí, ele achou no arquivo de som um chocalho de cascavel, som de maracá. Quando ouvi, eu disse: “Perfeito, vamos em frente, mas não vamos falar com ninguém. Assim some com o defeito, e vou falar para o Paulo não chacoalhar mais as pulseiras ou evitar fazer perto do microfone”. E assim ficou sendo a marca registrada do Sinhozinho Malta.
Engraçado que, depois, vários artistas começaram [com isso]. O Zé das Medalhas fazia um gesto com a cabeça, e a gente botou uma abertura de porta toda vez que ele fazia aquele cacoete, e isso pegou também, não tanto quanto o maracá do Sinhozinho Malta, mas pegou. A gente percebeu que alguns atores, não vou citar nomes, começaram a fazer algumas coisinhas para ver se marcavam também, mas aí já era demais, já tinha dois marcantes. Cada um fazia uma gracinha com a cabeça ou com o pé, sei lá, para ver se a gente engolia essa história e botava alguma gracinha nisso, mas não rolou. Foi só mesmo a do Sinhozinho Malta, que foi para consertar um erro, um defeito, e a do Zé das Medalhas.
Nas novelas, geralmente eram lançados dois discos: um nacional e outro internacional, certo? Mas com Roque Santeiro foi diferente, sendo disponibilizados para o público dois discos nacionais, fato inédito até então. Por que isso aconteceu?
A decisão foi, de certa forma, óbvia. Porque naquela história não caberia nada internacional, ficaria muito forçado. Poderia ser se fosse uma música de cena, alguém dançando, lembrando de alguma coisa, mas seria uma música, duas no máximo, talvez mais instrumental. Foi a primeira vez que saíram duas trilhas nacionais, porque não tinha cabimento ali fazer uma trilha internacional. Então, quando falei isso para a direção, todos, obviamente, toparam na hora, e assim foi feito. Mais tarde, com algumas novelas, como Tieta e O Rei do gado, também não caberia nada internacional, por ser de um universo muito brasileiro. Por isso, a decisão foi tomada por razões óbvias.
Quais canções você considera de maior destaque e que foram mais marcantes na trilha de Roque Santeiro?
É um pouco difícil destacar – primeiro que destacar uma só seria injusto. A própria música “ABC do Santeiro”, de Sá e Guarabyra, foi muito marcante. A do Zé Ramalho também foi muito marcante. “Dona”, sem dúvida, tanto que até hoje toca por aí. A da Elba, “De volta para o aconchego”, que marca a chegada do Roque na cidade, também. A do Sinhozinho Malta, que é de Dominguinhos com Chico Buarque, “Bom demais”. A música do Wando, “Chora coração”, que era o tema da Mocinha, personagem de Lucinha Lins. Eu destacaria essas, sem querer cometer nenhuma injustiça, porque todas serviram seu propósito. Alguns personagens ficaram mais fortes – isso é natural em uma novela, em uma história –, uns crescem, outros se mantêm, e outros, às vezes, até desaparecem.
Essa trilha sonora ficou entre as mais vendidas de novelas?
Foi, sem dúvida, uma novela de grande vendagem, mas não a de maior vendagem. A maior foi O rei do gado, depois foi Tieta e a terceira Roque Santeiro, mas todas passaram de 1 milhão. Roque Santeiro, se não me engano, vendeu mais de 1,2 milhão de cópias. Época boa! Se fosse lançar hoje, iria vender duas, mas o streaming está aí para isso.
As músicas que tocavam nas novelas foram bem marcantes para o público. Tanto que basta tocar uma canção ligada a algum personagem para ativar a memória afetiva de imediato. Você considera que as trilhas sonoras foram importantes para a música nacional?
Não há dúvida de que as trilhas sonoras das novelas da Globo, especificamente, foram muito importantes para a música brasileira e até para a internacional, porque as trilhas internacionais vendiam muito, quase sempre mais que as nacionais, porque, na verdade, eram hit parade. Imagine se uma rádio, naquela época, tocaria alguma coisa brasileira espontaneamente? Claro que não! Era muito difícil. Então, teve um papel importante. Hoje não acredito mais que esse papel subsista, porque não só as novelas perderam um pouco da força, mas, consequentemente, as trilhas também. Não sei como é que são feitas hoje e não estou querendo aqui criticar ou me vangloriar de alguma coisa; apenas eu estava no lugar certo na hora certa. E a coisa deu certo.