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Naná e o Carnaval

Naná Vasconcelos fazendo a regência dos mestres de maracatu no Marco Zero, na abertura do Carnaval do Recife, 2002 | foto: Hans von Manteuffel

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No início dos anos 2000, a Prefeitura do Recife criou um novo modelo para o Carnaval da cidade. A gestão criou um comitê que estruturou uma cerimônia de abertura com nações de maracatu ligadas às comunidades da cidade e da região metropolitana.

Naná foi convidado para reger o encontro de mais de 500 batuqueiros. A primeira edição da abertura ocorreu em 2003 e, durante 15 anos, foi realizada na sexta-feira pré-Carnaval (atualmente, acontece na quinta-feira antes do feriado). O grupo de músicos se reunia na praça do Marco Zero, no centro histórico do Recife, celebrando os orixás, num show que contava com participação de uma constelação de artistas nacionais e internacionais

Os preparativos para a cerimônia começavam muito antes do evento. Naná percorria, semanalmente, bairros da periferia para ensaiar com os maracatus. Visitava cada nação acompanhado da banda Voz Nagô, composta por cantoras negras pernambucanas.

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Seção de vídeo

Naná e o Carnaval

Não há como pensar em Naná Vasconcelos sem o maracatu e o Carnaval do Recife. Neste vídeo, a fala do percussionista se encontra com os depoimentos do gestor cultural André Brasileiro, do diretor da Nação do Maracatu Aurora Africana, Fábio Sotero, da multiartista Paz Brandão e da esposa de Naná, Patricia Vasconcelos. Todos eles atestam o protagonismo do músico na construção da abertura do Carnaval do Recife, dando uma nova visibilidade à tradição do maracatu.

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Naná pelos olhos de Lura Criola: “nunca conheci um percussionista como ele”

por Juliana Ribeiro

O percurso artístico da cantora e compositora Lura Criola é marcado pela busca de suas origens, pela cultura cabo-verdiana que carrega sempre consigo e também pela intensa relação com o Brasil. Neste contexto, surge a parceria memorável com o multi-instrumentista pernambucano Naná Vasconcelos, que transcende as fronteiras musicais e geográficas. Juntos, eles criaram uma sinergia única e exploraram a fusão entre o batuku cabo-verdiano e o maracatu brasileiro.

Nascida em Lisboa, Portugal, mas com raízes profundas em Cabo Verde, na África, Lura deixou para trás o sonho de ser bailarina para trilhar um inesperado caminho rumo à música. Foi por meio de encontros e convites imprevisíveis que ela viu sua carreira decolar, culminando em parcerias internacionais e um reconhecimento crescente por diversos lugares do mundo.

Nesta entrevista exclusiva, Lura compartilha não apenas sua jornada musical, mas também as experiências transformadoras ao lado do artista brasileiro, homenageado do projeto Ocupação do Itaú Cultural (IC). Desde os primeiros encontros até os momentos de profunda conexão musical, a cantora revela como Naná a inspirou e influenciou, e como a sua colaboração se tornou uma celebração da riqueza cultural que ambos compartilhavam.

Confira na íntegra!

Para começar, gostaria de saber um pouco mais sobre você. Pode nos contar como  foi o início de sua carreira artística?

Começou um pouco sem querer porque nunca sonhei em ser cantora, queria ser bailarina, mas a minha mãe não podia me colocar na dança clássica, que é a base para quem quer seguir nessa área, em nível superior. Então, quando fui tentar me inscrever na faculdade, existia essa falha. Contei com alguns amigos para me indicarem uma escola onde eu pudesse cursar dança clássica e, no grupo, havia um rapaz que estava gravando o seu primeiro disco e me convidou para fazer um dueto com ele. Achei estranho o convite pois eu não cantava e nunca pensei nisso, mas fomos para o estúdio e descobri ali a minha voz. O tema que gravamos foi um sucesso em nível da Lusofonia. 

Viajei pela primeira vez para Angola para cantarmos e essa parceria acabou tendo um impacto muito grande nas pessoas. Foi uma descoberta para elas e para mim. Numa dessas apresentações, fui convidada para gravar um disco. Escrevi algumas músicas, entre elas um tema de amor que foi um sucesso enorme. Mas eu ainda pensava “não, eu não vou cantar, não quero seguir carreira de cantora, isso foi uma brincadeira”. Só que comecei a ser convidada por artistas de renome internacional para trabalhar com eles, daí caiu a ficha. Todo mundo já havia entendido, menos eu. Então comecei a encarar isso de forma profissional. Foi um processo curioso, mas bonito.

O que te inspira a criar, a compor?

Cabo Verde, a minha origem, a minha ancestralidade. O primeiro grande sucesso de minha carreira falava de amor, mas não era um amor qualquer. com o tempo,  descobri que esse tema foi um regresso à vivência de minha avó em Cabo Verde, lugar que só conheci aos 21 anos. Mas já tinha toda a vivência de Cabo Verde aqui em Lisboa, já que cresci numa comunidade cabo-verdiana e meus pais me criaram nesse imaginário – da cultura, da gastronomia, da música de lá. Quando conheci aquele lugar, foi como se já estivesse estado ali e tudo que eu queria era cantar Cabo Verde, mostrar essa cultura ao mundo. É isso que tem me inspirado ao longo dos meus discos.

Você tem uma ótima relação com o Brasil, né? 

Sim! Só de pensar até me arrepio. Em Cabo Verde, sempre apreciamos a cultura brasileira, até porque temos a vaidade de dizer que lá está o segundo Carnaval do mundo, mesmo sendo um país que é uma migalhinha comparado à dimensão do Brasil. É uma ligação muito próxima e, curiosamente, quando estive no Brasil pela primeira vez, vi que não conhecia muito sobre o país, pois lá vemos um outro mundo, coisas que não chegaram a nós, um mundo muito maior do que imaginávamos.

Por falar no Brasil, como conheceu o trabalho de Naná Vasconcelos?

O Naná foi uma surpresa interessante, porque eu já tinha ouvido falar dele e, para mim, era mais um grande artista brasileiro conhecido no mundo, fantástico, respeitado, um dos maiores da música internacional. Um dia recebi um convite do próprio Naná, em 2012, que me surpreendeu. Na época, eu já tinha noção da importância do trabalho que ele desenvolvia, mas era algo longínquo. Então, ele me explicou o que pretendia: fundir o batuku com o maracatu – nessa altura eu já havia me lançado nesse percurso da música tradicional cabo-verdiana, que é o batuku. Aceitei o convite e achei maravilhoso. Eu e Naná  entramos em uma dimensão fantástica.

Após o convite, como foi se desenvolvendo essa parceria entre vocês? 

Surgiu logo uma identidade. A gente sente aquele cuidado, o respeito, o conhecimento que ele já tinha da minha música, e esse convite fez com que eu me aprofundasse ainda mais no trabalho dele. Eu conhecia outros percussionistas, mas realmente nunca conheci um como Naná, porque ele era de uma dimensão humana gigante. Tudo para ele era som, era humano, especial, luminoso. Tinha que vir de dentro, era profundo. Estar com o Naná em silêncio já era uma experiência enorme, então até chegar a cantar com ele começou a ser um sonho desde o início.

Tivemos todos os ensaios do batuku e do maracatu. Fiquei mais tempo no Brasil para “cozinhar” essa ideia e eu tinha uma música, Herança, que acabei gravando com o Naná  e que deu nome ao disco. Herança tem tudo a ver com o Naná. O nome não é ancestralidade, mas vai em busca das nossas raízes. Ele ouviu e eu contei que foi escrito por um grande compositor cabo-verdiano, Mário Lúcio Sousa, um homem de uma profundidade cultural imensa. Então, fomos aprofundando esse encontro, digerindo e ouvindo as coisas. Foi uma viagem e hoje tenho muito orgulho de ouvir esse dueto que ficou a cara do Naná – cantei um pouquinho só para dizer que é um dueto mas, para mim, o Naná está ali vivo e muito presente.

Como foi a experiência de participar da abertura do carnaval de Recife, em 2015, ao lado de Naná?

Desde essa época digo que todo mundo deveria ir ao Brasil pelo menos uma vez na vida, porque foi “a experiência”, foi maravilhoso, foi lindo! Fico até emocionada. Depois da abertura do carnaval no Marco Zero, surgiu a oportunidade de ir, no dia seguinte, para o Galo da Madrugada. Ali tive a oportunidade de ver a felicidade e a alegria das pessoas num grau que nunca imaginei. Lembro-me de uma senhora com mais de 90 anos que passou por mim na rua toda maquiada, bonita, com batom e uma flor no cabelo. Ela estava tão feliz! Foi uma transmissão de alegria e felicidade no mais alto nível, não vivemos isso em lugar nenhum! Foi uma experiência única – eu estava naquelas varandas assistindo o Galo da Madrugada e me disseram: “Até onde os nossos olhos alcançam são dois milhões de pessoas”. E imaginar que Cabo Verde inteiro não chega a 500 mil! Então dá para entender o impacto que essa viagem teve em mim. Foi muito marcante, foi inesquecível.

Conhecemos o Naná dos shows, das entrevistas, dos prêmios. Mas como era o percussionista nos bastidores?

O Naná era um ser muito elevado na vivência, uma pessoa especial, com uma humanidade, uma alma abrangente e grandiosa. O lado artístico dele manteve sempre essa aura super elevada. Lembro-me de ele ter me aconselhado uma vez, porque eu estava encantadíssima com as cantoras e músicos, e ele me chamou e disse: “Lura, você é a artista principal, nunca se esqueça disso”. Aquele cuidado que a gente deve ter conosco e com o nosso lugar, com o nosso espaço, ele tentou me transmitir isso.

Houve outro momento em que estávamos ensaiando – e isso me marcou até hoje – com a bateria do maracatu no Marco Zero, umas 60 pessoas, e aquele ritmo ainda não estava como ele queria. Então, ele disse: “Parem, não bata no instrumento, toque!”, e os músicos começaram a tocar novamente e aquilo soou de uma forma completamente diferente. Essa sabedoria dele é que ficou em mim, é marcante. Nosso encontro foi muito especial, muito profundo. Uma pena que foi por pouco tempo! Eu gostaria de ter tido tempo para aprender mais, aprofundar mais, fazer mais coisas.

Eu o conheci já com mais idade e gostaria tanto de conviver mais com aquele senhor tão elevado e grandioso. Outra coisa maravilhosa – já participei com outros artistas em outros discos, outros encontros –, ele foi o único artista que foi me buscar no aeroporto com flores. O cuidado, a elegância era de uma elevação extrema. Ele estava com tantos projetos e coisas para organizar, e foi até o aeroporto me receber todo sorridente, entregue, suave. Ele era maravilhoso.

Do que Naná produziu ao longo da carreira, o que mais te tocou?

É difícil dizer só uma coisa, mas a voz dele já faz toda a diferença. Ele não canta, ele emite sons africanos, às vezes sons de alguns pássaros, de alguns animais que ele mistura com a percussão. Ele também usa o corpo como som, usa tudo que é nosso, que é do nosso universo. Mas quando ele coloca a voz, coloca a alma, e isso nos toca muito. 

De todo o contato que você teve com Naná, o que guarda de mais importante?

Há algo espiritual que faz do artista um mensageiro que vem marcar e fazer a diferença na vida dos outros, e Naná é um grande exemplo disso. Ele passou nesta vida para chegar ao maior número de pessoas e  deixar essa mensagem de humanidade, de sensibilidade. Nós estamos aqui para evoluir e aprender, e o nosso corpo é, de fato, um instrumento.

Qual o legado que o percussionista deixa para a música?

A importância dos sons, da percussão. Um percussionista não é apenas um percussionista, o toque dos tambores em África sempre vieram com muitos significados. O toque de um berimbau não é apenas um berimbau, é carregado de história, de mensagens, de rituais.

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Naná reunido com mestres de maracatu no ensaio da abertura do Carnaval de 2016 | foto: João Rogério Filho

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“Eu acredito que Naná trouxe essa diferença, de trazer quase duzentas nações de maracatu para tocar junto e fazer elas se reconhecerem. Porque veio muito através, às vezes, de disputa. Cada um ia se apresentar no Carnaval, qual era o melhor e tal. Era como se ele trouxesse toda a torcida do futebol para jogar pelo Brasil mesmo. Não era essa torcida do maracatu daqui ou de acolá, mas fazia todos ritualizarem com ele ali."

Aishá Lourenço

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Gravado e publicado no site bandcamp por Vincent Moon e Priscilla Telmon

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Ensaio com o grupo Voz Nagô na Rua da Moeda, Recife, para a abertura do Carnaval de 2014 | foto: João Rogério Filho

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