A Música do Movimento
Por José Miguel Wisnik
Desde os anos 1990, o Grupo Corpo vem encomendando de compositores da música popular brasileira as trilhas originais para seus espetáculos. Marco Antonio Guimarães, Arnaldo Antunes, Tom Zé, João Bosco, + 2, Caetano, Lenine, Samuel Rosa fizeram, para dança, experiências que certamente não fariam no rumo central de suas carreiras. Uma trilha de mais de 40 minutos, toda voltada para a cena dançante, predominantemente instrumental, e guiada por um fio condutor, é muito diferente do costumeiro álbum de canções a que quase todos estão acostumados. Atraindo-os para esse campo inabitual, o Grupo Corpo acumula já uma grande contribuição para a música brasileira contemporânea.
Tive a sorte de participar desse processo desde 1993, quando fui convidado pelo diretor artístico Paulo Pederneiras para fazer a música de “Nazareth”. Depois da franca mineiridade dos seus primórdios, com o enorme sucesso de “Maria Maria”, para o qual Milton Nascimento e Fernando Brant fizeram canções célebres, o Grupo tinha passado por um período probatório e autoimposto de convívio com a música de concerto europeia (Chopin, Haydn, Elgar), durante o qual assimilara as técnicas de dança clássicas. Feito isso, parecia pronto para enveredar decididamente pela criação de uma linguagem de dança brasileira contemporânea, dando continuidade à perspectiva aberta em 1992 pelo espetáculo “21”, com música de Marco Antonio Guimarães interpretada pelo Uakti.
A proposta de criar variações sobre a música de Ernesto Nazareth me pareceu afinada com a trajetória deles e com a minha. O compositor carioca era o pianeiro transcendental que compunha polcas amaxixadas de olho na música clássica, como se dentro delas existissem sonatas e prelúdios querendo desabrochar. O trânsito em surdina entre o clássico e o popular em Nazareth ia ao encontro do caminho de ida e volta que o Grupo Corpo também vinha fazendo entre a música europeia de concerto e a música brasileira. Me lembrei do personagem de Machado de Assis, o Pestana de “Um homem célebre”, dividido entre o desejo de pertencer ao panteão imortal da música de concerto e o sucesso galopante de suas polcas. Apliquei às músicas de Nazareth a antiga técnica polifônica dos espelhos melódicos, tocando-as de trás pra diante, às avessas, com o que elas não perdiam sua elegância e seu encanto inconfundível, convidando para dançar a dança de “cisne e cabrita” a que se refere outro maravilhoso conto de Machado, “Terpsícore” (não por acaso a musa da dança).
No trabalho do Grupo Corpo a música tem o privilégio de ser o disparador do espetáculo todo: a partir dela nascem a coreografia, o cenário, a luz, os figurinos. Talvez não se tenha ainda a consciência suficiente de que esse excepcional grupo de dança brasileira, de alcance mundial, resulta da junção de talentos dos dois irmãos Pederneiras – Rodrigo, o coreógrafo, e Paulo, o diretor artístico (pondo ênfase na conjunção “e”). Feita a música, ela passa por um processo de transfiguração em movimentos corpóreos (nós, os músicos, temos então a felicidade única de ver a música acontecer literalmente aos nossos olhos) e de visualização inteligente e também transfiguradora do espaço cênico, que integra e multiplica o que se dança.
Graças a isso, todos os estímulos que vão sendo jogados pela música são respondidos e correspondidos pelos múltiplos planos do espetáculo, garantidos por uma equipe técnica, humana, por um corpo de bailarinos cada vez melhores como conjunto, nada disso deixando de ser obra da excepcional inteligência estratégica que vem da direção. Quando estive com eles em Austin, a convite da Universidade do Texas, por exemplo, Joe Randel, que fazia a ponte entre a programação cultural e a universidade, dizia que raramente um grupo de dança, entre todos os que passam por lá, e são os principais, oferecia tantos elementos de interesse em todos os níveis da produção e da concepção do espetáculo. Assim como os espelhos machadianos aplicados à música de Nazareth, também as ideias embutidas na especulação sertaneja do “Parabelo”, para o qual fomos convidados Tom Zé e eu, a conversão do Big Bang em Fla-Flu, que disparou o “Onqotô”, música feita com Caetano Veloso, e as canções medievais galego-portuguesas, que fiz com Carlos Nuñez para “Sem mim”, foram incorporados e transformados em dança e luz, espaço e cor. O que havia de potencialmente excessivo nas intenções literárias subjacentes à música adquiria a naturalidade surpreendente dos desenhos dançantes e dos espaços não poucas vezes extasiantes, como a taba cósmica – o buraco negro penetrável do “Onqotô” – e a rede que pesca os amantes e o nada, em “Sem mim”.
O tom com que tudo isso se faz, em todas as fases do trabalho, é mineiro – sem empostação e sem pose. Logo na entrada da sede do Grupo Corpo em Belo Horizonte há, não uma sala de visitas ou um escritório, mas um espaço para o cafezinho, o bolinho de fubá e o pão de queijo. Acho que é ali que eles testam o convidado, para ver se não é enjoado. Se for, não passa a próxima porta. [texto originalmente publicado no jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, do dia 5 de setembro de 2015.]
José Miguel Wisnik é músico, compositor e ensaísta, autor de “O som e o sentido”, entre outros, e compôs trilhas de espetáculos do Grupo Corpo, como “Nazareth” e “Sem mim”. O Grupo Corpo apresenta “Suíte branca” e “Dança sinfônica” no Teatro Municipal até segunda-feira.
[texto originalmente publicado no jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, do dia 5 de setembro de 2015.]
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O processo de construção da trilha sonora
No vídeo: Arnaldo Antunes (músico, poeta e compositor)
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Santagustin (2002)
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Onqotô (2005)
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O Corpo (2000)
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Breu (2007)
Playlist “Sem Mim” (2011)
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Sem Mim (2011)
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Lacuona (2004)
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Banguelê (1998)
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