A Linguagem

Dialeto Sertanezo

Desde seu primeiro trabalho, Elomar explora grafias e termos próprios da língua portuguesa que copiam a fala do sertanejo, o que foi batizado pelo criador de “dialeto sertanezo”. Essa troca de letras na palavra “sertanejo” é exemplo. Segundo o autor, a criação foi necessária para registrar com originalidade a fala de seus personagens.

Sua palavra transita pela oralidade própria aos habitantes do sertão e por um português atravessado por notas medievais. Essa palavra, falada e escrita, se constitui como uma liga mediadora entre o fora e o dentro, o alto e o baixo, compondo territórios vivos da linguagem em espaços de tensão, mas não excludentes. Linguagem essa que também recompõe memórias: ao falar e cantar o sertanezo, entra-se em contato com tradições, histórias, contratos sociais e afetivos. A palavra de Elomar nunca é imune à paisagem que a cerca, mas veicula jogos, ritos, danças e as narratividades possíveis a esse sertão ambiguamente concreto e inventado.

Compilada no sertanezo, ou dialeto catingueiro, essa palavra-artefato exige corpo, na emissão da voz, e a mente acesa, aberta. É, simultaneamente, imanência e alteridade, trazendo consigo o sotaque das eras mais arcaicas e projetando uma novidade fraturada, um futuro possível, ressoante. Palavra inquieta para ser cantada, ouvida, devorada, falada, Elomar mergulha na tradição, na invenção e sobretudo nas artimanhas da sedução.

À parte certa estranheza que cause aos ouvidos menos acostumados a esse léxico e a sua prosódia, o sertanezo em Elomar recupera mestiçagens culturais que se projetam para além do falar. É nesse sentido uma palavra performática: provocativa, pede a presença do outro. Jerusa Pires Ferreira, ao falar sobre performance e oralidade, chama a atenção para a “força nômade da voz”. Essa força poderosa é o que, nessa poética, junta mundos, arrasta tempos e provoca reconhecimento. E não há performance sem reconhecimento. Nem história. Tampouco amor. E nisso a palavra de Elomar é certeira: é uma palavra que chama, mesmo os mais desatentos. É palavra exigente, erótica, retórica, cuja magia está (precisa ou imprecisamente) em dominar a multiplicidade do tempo, em manipular as tensões e as fagulhas dos contrários, em performatizar corpos e espaços.

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imagem: Juraci Dórea

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Dialeto Catingueiro

Gilson Rodrigues Bonfim é amigo de Elomar e pesquisador da Fundação Casa dos Carneiros
João Omar é filho de Elomar, maestro e músico. É graduado em composição e regência e mestre em regência orquestral pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Estudou regência com abordagem na fenomenologia da música pela l’Association Celibidache na República Checa.

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Cantiga do Boi Encantado

Ê Ê Ê Ê Ê Ê… boi encantado e aruá
Ê boi, quem havéra de pegá!
Na mĩa vida de vaquêro vagabundo
Já nem dô conta dos pirigo qui infrentei
Apois das nação de gado qui hay no mundo
Num tem um só boi qui num peguei
Ê Ê Ê Ê Ê Ê… boi incantado e aruá
Ê boi, quem havéra de pegá!
Eu vim de longe, bem pra lá daquela serra
Qui fica adonde as vista num pode alcançá
Ricumendado dos vaquêro de mĩa terra
Pra nessas banda eles nóis representá
Alas qui viemo in dois eu e mais Ventania
O mais famado dos cavalo do lugá
Meu sabaruna rei do largo e do grotão
Vê si num isquece da premeça qui nóis feiz
Naquela quadra de ferra laço e moirão
Na luz da tarde os olhos dela e meu cantá
A mais bunita de Brumado ao Pancadão
Juremo a ela viu ti pegá boi aruá
Ê Ê Ê Ê Ê Ê… boi incantado e aruá
Ê boi, quem havéra de pegá!
De indubrasil nerol’ xuite guadimá
Moura junquêro pintado nuve e alvação
Zulêgo giz peduro landrêis e malabá
Pintado laranjo rajado lubião
Boi de gabarro banana mocho armado
De curralêro ao levantado barbatão
De todos boi que hay no mundo já peguei
Afora lá ele qui tem parte cum cão
O tal boi bufa cum esse nunca labutei
E o incantado qui distinemo a pegá
Pra nóis leva pras terra daquela donzela
Juremo a ela viu ti levá boi aruá
Ê Ê Ê Ê Ê Ê… boi incantado e aruá
Ê boi, quem havéra de pegá!

Ouça abaixo a canção “Boi Incantado”, do álbum Cantoria 1 (1984).

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O linguajar do sertão

Xangai é cantor, compositor e violeiro. Lançou seu primeiro álbum, Acontecivento, em 1976. Em 1980, em conjunto com Elomar e Arthur Moreira Lima, apresentou o disco Parcelada Malunga, pelo selo Marcus Pereira. Seu terceiro disco solo, Mutirão da Vida (1984), teve a direção de Jacques Morelenbaum e acompanhamento do grupo Cumeno cum Cuentro.

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As pétalas

Em suas criações Elomar Figueira Mello experimenta praticamente todas as possibilidades, sempre primando pelas formas clássicas e transitando entre os gêneros literários do século XVIII – a epopeia, o lírico e o drama.

Para o teatro escreveu seis peças, que chamou de Pétalas do Teatro Alumioso. A terceira obra da série é o monólogo Éclogas do Desêrdo, montado em 2014 na Casa dos Carneiros, cujo trecho vem a seguir.

“Écloga” é um poema em forma de diálogo cujos intérpretes são campesinos. O termo foi aplicado aos poemas bucólicos de Virgílio, poeta da Antiguidade romana. Posteriormente, designou pastorais e idílios tradicionais latinos.

“Desêrdo”, do dialeto do autor, deriva do verbo deserdar e significa o local de morada dos deserdados. A écloga de Elomar evoca o poema “As Três Irmãs do Poeta”, do baiano expoente do romantismo, Castro Alves.

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Écoglas do Desêrdo

(De Pétalas do Teatro Alumioso)
Elomar Figueira Mello

Canto – IIIº – Monólogo

CENÁRIO
Um pequeno palco, ao fundo um curto lance de cerca estivada com oitenta centímetros de altura. Ao lado um quaibento [arbusto espinhoso da caatinga usado para cercas]. Atrás dos mesmos um ventilador.
Abre com um muito longo e belo abôio de um vaqueiro em seus setenta anos de idade com trajes andrajosos. Barulho de manadas, ladrar de cães, e tropelos de cavalos. Na mão direita uma vara de ferrão.

VAQUEIRO –

Na Grande Assembléia
das horas e minutos
vetusto o Tempo
vestido de luto
revê o inventário
que tange os dias meus
em meio aos ganhos
mais percas e danos
onde há mais dores
que estrelas nos céus
pesado fôra o fardo
dos dias e dos anos.

Estou paroso no meio do mundo
no epicentro da vida ante a eternidade
e mui faltoso de bôa ou má vontade
de prosseguir ou de voltar atraz.
Não subo nem desço
bem pouco se me dá
a dextra ou a sinistra
e ainda que vector outro exista
por espaços ou esferas abissais
de uma coisa não me esqueço
que ao antigo pátio
não devo voltar mais.

Inda que em visitação,
regressar àquela sala!!!
cadeiras, bancos catres…
braços magrinhentos
de marquesas ressequidas
extintos restos
de um banquete de polias
onde metros e metros
de anos meses dias
uns sôbres os outros
repousam arrumados
como se fossem as fôlhas
dum velho livro deitado
no túmulo dos instantes
que o tempo dissipou.
Gamelas secas pôças
lavapés de sombras môças
mudas defuntas donzelas
de vivas lembranças, belas
despetaladas murchas mortas…
Oh Joana amada
Sóstenes meu querido irmão
ouço ainda tua voz
e o som da flauta de Salala.
Plauta onde estás?
do pátio pras bandas do poente,
mudos silenciosos,
vossos sagrados
dormem carneiros
brancos marmóreos
na noite estelar
assustando às vezes
aquele que perpassa
viajeiro no picado
da besta suada
que a orelha entesora
no som da passada
rosêta da espora
e o bruto teme e espera
o subto arrebentar d’ua cova
onde tu dormes
pela meiguice dos quatorze anos
doces lírios das vazantes
nas primeiras trovoadas…
Ali, mudos e silenciosos dormem
vossos sagrados carneiros
passeando o vento entre os madeiros
das cruzes fincadas no chão tauá.
Amadas visagens
que ali estais
vítreas figuras
de um tempo congelado
na sala de cristal
da casa de minhalma
inda perfeita em sua inteireza
pairando harmoniosa

[…]

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O Tradutor

Jurema Paes é cantora, compositora e historiadora. Estudou canto na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também realizou mestrado em história. Em 2005, concluiu doutorado em história das culturas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seu primeiro álbum, Jurema, foi lançado em 2002 em parceria com o compositor, produtor musical e pianista Marcos Vaz. O disco Mestiça (2014) é seu último trabalho.