Minotauro

Primeiros desenhos de Laerte | imagem: Acervo de Família

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Primeiros desenhos de Laerte | imagem: Acervo de Família

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Primeiros desenhos de Laerte | imagem: Acervo de Família

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Laerte na fazenda de uma tia em Avaré | imagem: Acervo de Família

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Helena Coutinho: O artista sempre esteve, a criança ainda é

Sou dois anos mais nova que o Laerte, nós crescemos bem próximos: ele era meu mentor e atazanador oficial. A imagem que tenho dele na infância é meio borrada, ele está sempre pulando ou correndo – de mim, depois de ter puxado meu rabo de cavalo ou algo assim. Ou está dizendo que uma besteira qualquer que eu tenha feito é pecado mortal. Se a hóstia tocou no meu dente durante a comunhão ou, sei lá, se eu fiquei brava e o xinguei. E fazendo um drama: Xi! Pecado mortal! Eu acreditando, um horror. Acho que ele também, mas ele sempre criando em cima, né, e testando em mim.

Por outro lado, lembro também de estar doente deitada num sofá, e o Laerte no chão, brincando “pra mim”. Fazendo um monte de personagens de massinha – todos simples cones – e montando histórias. Eu vendo, embevecida. Acho que ele sempre foi um contador de histórias.

Mais tarde, quando juntou uma turma grande na vizinhança e a gente brincava de vários tipos de guerra – cavaleiros do rei Artur, Velho Oeste, menino contra menina –, o Laerte era o nosso historiador. O Mauro, nosso irmão mais velho, fabricava coisas – espadas, capacetes etc. – e o Laerte escrevia os estatutos, e escrevia e desenhava histórias.

Nossa vida era superestruturada. Minha mãe era, e é, a presença central na nossa família. A aprovação e as broncas vinham dela, mas não eram muitas, a gente meio que sabia o que era esperado. A escola primária era puxada e rígida; além disso, estudávamos piano e praticávamos natação. O Laerte levava quase tudo meio na flauta. Eu me lembro dele dando lição (a mãe tomava lição depois de a gente estudar o ponto) geralmente de cabeça pra baixo numa poltrona. A única coisa que o Laerte encarava a sério mesmo era o piano. Fora desenhar, claro, mas desenhar não envolvia uma disciplina.

A gente tinha um monte de livros de arte, a Enciclopédia Britânica e o Tesouro da Juventude, além de uma coleção de vários anos da Geografic Magazine e da Life, mas música só ao vivo no piano. Não tínhamos rádio. Quando chegou a vitrola, que compramos do vizinho no começo dos anos 1960, veio junto uma coleção supereclética de discos – de João Gilberto a Doris Day, passando por Elvis Presley e Yankee Doodle. Eu ganhei um disco dos Everly Brothers. Tinha uma coleção de clássicos também, que era só o que o Laerte ouvia. Se começávamos a tocar outra coisa, ele saía correndo tapando os ouvidos e ia pro sótão. Desenhar, provavelmente.

Não sei quando e o que deflagrou a mudança, mas foi pouco depois – o Laerte devia ter uns 15 anos, estávamos ouvindo música juntos. A gente combinou que ele comprava uns artistas e eu outros. Eu comprava Beatles, ele Rolling Stones, eu Donovan, ele Dylan, eu Cream, ele Animals, eu Mamas & Papas, ele Loving Spoonfuls, sei lá, por aí. Curtíamos todos e ficávamos tentando “tirar as letras”.

Depois ele fez Faap, em 1968, acho, antes da USP. Era tão cool, ele atuava, fazia música, cenografia. Nessa época, falou-se de um problema na nossa casa, abafadissimamente, em voz pequena, envolvendo o Laerte e algum tipo de atividade homossexual. Eu me lembro vagamente. E olha que a gente conversava bastante, eu e o Laerte. Mas o assunto era tão tabu que eu às vezes fico pensando: será que eu não sabia ou achava tão estranho que desliguei ou será que achava que tudo bem?

Quando entrei na ECA, em 1970, o Laerte ainda era aluno lá. A gente andava junto, fazia fotos, acho que ainda vendia artesanato na Praça da República, com a Lúcia Guanaes, namorada dele. Logo ele se casou, tinha 20 anos, e em seguida fui pra Bahia, morar numa comunidade e ser jornalista, casei também. Depois disso nosso contato ficou mais esparso.

• A virada transgênero do Laerte me pegou fundo, chacoalhou legal. Primeiro que na vida adulta ele foi um macho tão sóbrio, nem sei, usava umas roupas sem graça, só recentemente tinha começado a usar tênis colorido. Mas eu nunca me toquei que ele tinha ficado décadas reprimindo a sexualidade e essa identificação pelo feminino. Mas agora, olhando pra trás, dá pra ver que ele estava dentro de uma casca. Ele sempre foi um artista superinteressante, mas sinto que ao fazer peeling pra tirar a barba ele se descascou. Está mais límpido, mais presente, e como artista reconquistou uma frescura adolescente que muitos artistas passam a vida tentando recuperar.

• Às vezes o Laerte fala que sente não ter saído do armário 40 anos atrás – talvez ele possa ter sido mais feliz, quem sabe, mas acho que politicamente ele não teria tido tanto espaço, porque este é o momento de discutir questões de gênero profundamente. Se ele tivesse botado peitos no meio do hipismo, não teria essa repercussão toda. A gente não tava pronto, ele não tava pronto… Ele amadureceu junto com a história.

• Avoado. Distraído. Era o que se dizia dele – o Laerte é meio avoado. Ele se esquecia de coisas, de fazer lições, de compromissos, mas a impressão que eu tenho é que ele é superfocado nas coisas que importam pra ele. Ele tem esse jeito de estar conversando com você, ou contando uma coisa engraçada, mas antes de finalizar ele fica com o olho meio parado, dá essa fugida e volta com uma risada frouxa, meio de soquinho, um hã! e aí ele te captura.

• Ele tinha um olharzinho, ainda tem, um jeito de levantar a sobrancelha e apertar a boca, como que dizendo, olha só o que eu aprontei, esperando a reação. Não com medo, acho que ele sabia muito bem que fazia sucesso com os adultos, especialmente com a mãe. Recentemente reconheci esse olhar numa das fotos nuas que o Rafael Roncato fez dele. Mas agora não é mais o molequinho aprontando, mas o artista testando limites e questionando nossos (pré-)conceitos. No fundo, dá no mesmo. O artista sempre esteve, a criança ainda é.

Helena Coutinho, irmã de Laerte, é profissional de comunicação. Durante as décadas de 1970 e 1980, atuou nas áreas de jornalismo, publicidade, teatro e música na Bahia e em São Paulo. Hoje, trabalha como fotógrafa na região de Washington, D.C., nos Estados Unidos, onde reside há 24 anos.

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Laerte e Helena Coutinho, na comemoração de aniversário dos dois (ele aos 5 e ela aos 3). Como os irmãos aniversariam com quatro dias de diferença, era sempre feita uma festa só para ambos | imagem: Acervo de Família

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Uma das histórias de Laertevisão. A garotinha é Helena Coutinho | imagem: Laerte

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Laerte e Helena Coutinho | Imagem: Acervo de Família

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Uma das histórias de Laertevisão. A garotinha é Helena Coutinho | imagem: Laerte

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Laerte na fazenda de uma tia em Avaré | imagem: Acervo de Família

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Laerte com 16 anos | imagem: Helena Coutinho

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Laerte em 1970 | Imagem: Acervo Familiar

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Família

Marília Coutinho, irmã de Laerte, é pesquisadora, professora e consultora. Pela Universidade de São Paulo (USP) é bacharel em ciências biológicas, mestra em ecologia química e doutora em sociologia da ciência – área em que é pós-doutora pelo Instituto Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia, Estados Unidos. É atleta de levantamento de peso, campeã mundial em 2011 pela Global Powerlifting Alliance e recordista mundial de agachamento raw na categoria até 60 quilos. Saiba mais em www.mariliacoutinho.com.

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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O Mérito é Obrigatório

Marília Coutinho, irmã de Laerte, é pesquisadora, professora e consultora. Pela Universidade de São Paulo (USP) é bacharel em ciências biológicas, mestra em ecologia química e doutora em sociologia da ciência – área em que é pós-doutora pelo Instituto Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia, Estados Unidos. É atleta de levantamento de peso, campeã mundial em 2011 pela Global Powerlifting Alliance e recordista mundial de agachamento raw na categoria até 60 quilos. Saiba mais em www.mariliacoutinho.com.

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Uma das histórias de Laertevisão | imagem: Laerte

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Pai e Parceiro de Profissão

Rafael Coutinho, filho de Laerte, é curador desta Ocupação. Designer, animador, artista plástico e quadrinista, é um dos proprietários da editora independente e comic shop Narval Comix. Com Daniel Galera, produziu a graphic novel Cachalote (2010). Realizou curtas-metragens como animador e diretor (Aquele Cara, 2006), participou de publicações de HQ (Bang Bang, 2005) e integrou o grupo Base-V.

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