Juntando retalhos
Minha mãe passou os últimos anos de vida juntando fragmentos da memória de meu irmão Stuart, como se através deles quisesse recompor o corpo que não conseguia encontrar para enterrar.
Eram o cacho louro do chuca-chuca do bebê, achado no antigo missal, a cartinha infantil com a frase “para a melhor mãe do mundo”, a flâmula da Copa de 1958, a coleção de apitos de trinado de passarinho, as sandálias com as quais deu os primeiros passos, a camisa verde-água, única peça de roupa deixada por ele em casa, e até o prosaico “compadre”, com que foi atendido quando fraturou a perna e ficou de cama.
Cabeça, tronco, membros simbólicos para a mater dolorosa, que, sem ter nos braços o corpo do filho, nos momentos de desespero o comparava a Jesus.
Hoje, olhando os vestidos de mamãe dependurados nas araras, alguns sexagenários, porém, passados a ferro, empertigados, aparentando juventude e prontos para viver o momento de glória nesta exposição, eu me pergunto, pasma até: “Como consegui guardar, preservar, reunir tudo isso?”.
Eles são parte de coleção bem maior, que soma outras roupas, retalhos, moldes, tecidos, etiquetas, rabiscos, botões, fivelas, tesouras, documentos, embalagens, recortes de jornal, cartas, pedaços de papel, fotos, negativos, todo o universo de um ateliê de costureira, a vida de uma casa de família, vestígios, parecendo querer construir não uma coleção mas a própria mãe.
Como uma predestinação familiar, percebo que repito a trajetória de minha mãe ao tentar recompor seu filho… Nesse minucioso trabalho de arqueologia, fui muito ajudada. Um mutirão solidário foi iniciado pelas próprias costureiras. Elas trouxeram o que puderam, paninhos guardados, fotos, cartões-postais enviados por mamãe, que tinha em cada funcionária uma amiga.
Munida com as agendas telefônicas de mamãe, liguei para cada uma das clientes. Elas, bondosas, acorreram trazendo vestidos, alguns nas próprias caixas, ainda dos anos 1950! Outras, atendendo convocação feita por mim em coluna do jornal, batiam à minha porta, com as roupas nas mãos. Telefonavam, escreviam, mandavam recados, abordavam-me na rua.
Os parentes guardaram as peças nas malas antigas em Belo Horizonte, e eu corria para buscar as roupas “velhas” de Zuzu. Quando alguém via algo dela em brechó, se não adquiria e me presenteava, telefonava para avisar. Fotógrafos também doaram negativos. Todos, todos formaram fileiras nessa missão.
Foi uma verdadeira ação de militantes, uma ação política. A Coleção Zuzu Angel, que hoje temos, embute um sutil significado que a caracteriza como um grande e largo gesto de resistência política, um claro protesto dos doadores contra aqueles anos negros.
Todos pareciam querer manifestar, através das doações, o apreço e a admiração, não apenas pela legitimidade da moda pioneira e ímpar, com brasilidade, mas por desejarem inscrever sua filiação solidária à falange de “angels” insurgentes contra o período de opressão que viveu o Brasil.
Extremamente importante foi a contribuição de minha irmã, Ana Cristina Angel, ao levar para a França grande parte das roupas pessoais de mamãe, logo após sua morte, inclusive o vestido do luto e os vestidos de bordados políticos.
Graças a esse amor infinito de Ana Cristina, chamada de Kiki por mamãe, temos hoje estes vestidos preservados com as lágrimas da grande filha.
Hildegard Angel
Seção de vídeo
A militância de Stuart
Hildegard Angel é filha de Zuzu Angel e jornalista social e de moda. Iniciou sua carreira no jornal O Globo, e colaborou com revistas como Vogue e Manchete. Fundou em 1993 o Instituto Zuzu Angel e em 1995 a Academia Brasileira de Moda.
Bordado 2
Bordado 3
Seção de vídeo
O luto
Hildegard Angel é filha de Zuzu Angel e jornalista social e de moda. Iniciou sua carreira no jornal O Globo, e colaborou com revistas como Vogue e Manchete. Fundou em 1993 o Instituto Zuzu Angel e em 1995 a Academia Brasileira de Moda.
Anos 70
1972 – Zuzu recebe a carta escrita por Alex Polari de Alverga descrevendo as torturas e a morte do filho na Base Aérea do Galeão.
1975 – Zuzu Angel envia a carta de Alex Polari a diversas personalidades; relata o caso a autoridades do Congresso norte-americano e da ONU para que, com o Secretário Geral dos EUA, Henry Kissinger, intercedam a seu favor junto ao governo brasileiro exigindo explicações sobre o desaparecimento do filho. Grava um depoimento para o historiador Hélio Silva. O jornalista Vladimir Herzog é assassinado no DOI-CODI. Lula é eleito presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. A CNBB e o jornal Opinião sofrem atentados a bomba. Surge o semanário Movimento. Chico Buarque e Paulo Pontes escrevem a peça Gota D’Água.
Seção de vídeo
Procura-se Stuart
Hildegard Angel é filha de Zuzu Angel e jornalista social e de moda. Iniciou sua carreira no jornal O Globo, e colaborou com revistas como Vogue e Manchete. Fundou em 1993 o Instituto Zuzu Angel e em 1995 a Academia Brasileira de Moda.
Carta de Alex Polari
Carta de Alex Polari 2
Seção de vídeo
Os Jovens no Poder
Heloisa Buarque de Hollanda é escritora, professora de teoria crítica da cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e curadora do Portal Literal. É autora de livros como Pós-Modernismo e Política (1992) e O Feminismo como Crítica da Cultura (1994).
Carta de Alex Polari 3
Carta de Alex Polari 4
Carta de Alex Polari 5
Carta de Alex Polari 6
1976
1976 – Entrega a Henry Kissinger, no Rio de Janeiro, um pacote com vários documentos, a foto de filho Stuart, o livro História da República Brasileira 1964 – 1974, de Hélio Silva, e uma carta explicando o Caso Stuart. Em 14 de abril, ela morre em uma tocaia, hoje assassinato comprovado. A próxima coleção internacional seria chamada Once Zuzu, Always Zuzu. Curvelo reconhece a importância da estilista e torna Zuzu Angel nome de rua. Do exílio, Ferreira Gullar solta seu Poema Sujo.
Stuart Angel Jones
Seção de vídeo
Relação de cumplicidade
Lúcia Murat é cineasta, estudou economia e, com a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, entrou para o grupo MR-8. Presa em 1971, foi torturada e encarcerada pela Ditadura Militar por três anos e meio. Seu primeiro longa-metragem, Que Bom Te Ver Viva (1988), estreou internacionalmente no Festival de Toronto e revelou uma cineasta dedicada a temas políticos e femininos. Entre muitos prêmios, o longa foi escolhido como melhor filme do júri oficial, do júri popular e da crítica no Festival de Brasília de 1989.
De Alceu Amoroso Lima para Zuzu
A INSURREIÇÃO PELO LUTO
Stuart Angel desapareceu em maio de 1971. Em setembro do mesmo ano, Zuzu Angel lançou uma coleção na residência do cônsul do Brasil em Nova York, Lauro Soutello Alves.
Zuzu realizou o desfile de luto – vestido preto, cinto com cem crucifixos e um pingente de anjo em porcelana.
A partir de então, o luto passou a ser seu hábito. Roupa preta, véu, crucifixos, o cinto, o anjo. Era assim que ia trabalhar, frequentava eventos sociais. A partir dessa data, foi essa sua moda pessoal. Por onde fosse, sempre em busca de informações sobre Stuart, também distribuía o santinho que mandou imprimir com a foto do filho, inquiria políticos, militares, artistas, jornalistas, quem pudesse lhe ajudar.
Com sua dor e o simbolismo do luto, Zuzu se insurgiu contra a Ditadura Militar e protestou contra o desaparecimento e a falta de informações sobre o corpo do filho.
As mortes
A família Angel teve três integrantes assassinados pela Ditadura Militar.
Em 1971, Stuart Angel Jones, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em 1973, sua esposa, Sonia de Moraes Angel, guerrilheira do grupo Ação Libertadora Nacional (ALN). Em 1976, Zuzu Angel, artista inconformada com a perda do filho e a violência institucionalizada pelo Regime Militar.
Os restos mortais de Sonia foram identificados oito anos após sua morte. Até hoje, o corpo de Staurt não foi encontrado, nem os responsáveis pelas mortes punidos.