Cosmovisões negras semeadas Ocidente afora fazem brotar frutos principalmente nas artes. As diferentes linguagens artísticas, por se ligarem à intuição, à alma de quem as realiza, são fontes de desenvolvimento emocional. É na emoção que o Brasil tem sido mais afrossemeado. Não à toa, nossas expressões de afeto são marcadas por léxicos provenientes de línguas bantu: dengo, cafuné, xodó. As artes brasileiras são, em grande parte, constituídas de negrura cultural. Mas na África, diferentemente do que propõe o Ocidente, as artes são indissociáveis da vida cotidiana, que, por sua vez, é permeada pelo sagrado. E os saberes africanos integram tudo isso.
Para além de portar pele escura e levar consigo tudo que isso acarreta, intelectuais ancestralmente negros desenvolvem a matéria (corpo) e a não matéria (espírito) de que nos constituímos simultânea e comunitariamente, sem que o cérebro (e o ego) esteja à frente. Para tanto, é essencial que se trabalhem permanentemente os sentidos (tato, olfato, paladar, visão, audição) e a memória (que não está apenas na cabeça, mas no corpo todo): é apre(e)ndido o que é vivenciado, dramatizado, performatizado – vide o que se cunhou chamar de “manifestações culturais populares” serem grandes fontes de saberes negros transmitidos intergeracionalmente. Em cosmovisões negras, pensar e sentir são indissociáveis. “Onde a galinha tem seus ovos, tem seus olhos”, diz a sabedoria ancestral.
Mas nós, ocidentalizados, desaprendemos sobre a integração mente-corpo-alma própria da visão de mundo de povos considerados “involuídos” ou “atrasados”. Do cartesianismo iluminista do século XVIII e da proposição de um único padrão de civilização/humanidade a seguir (o euro-ocidental-cristão), sobrevalorizamos a razão. E, com ela, predomina uma forma única de pensar; predomina, por exemplo, a medicina alopática ocidental em oposição às medicinas que veem o ser humano em sua inteireza, tal como a chinesa, a indiana e a noção de saúde (mental, física, espiritual) e cura tradicionais nativas das Américas, presentes no que foi hierarquicamente chamado de saberes populares (que não obtiveram o status epistemológico de que fala Nilma Lino Gomes) e em religiões afro-indígenas-brasileiras. A colonização de nossas mentes e nossos corpos por essa forma única de pensar faz de cada um de nós reprodutores em potencial de racismos – no plural, como propõe Stuart Hall – e outros fundamentalismos.
A leitura circular de universo proposta pelas cosmovisões africanas vê todos os reinos (mineral, vegetal, humano) como interdependentes e portadores do sagrado (que não está separado do mundo visível, como na perspectiva euro-cristã). Manipular elementos da natureza é cura para a alma. Fazer arte é integrar o sagrado humano – corpo, mente e alma – aos demais sagrados, sendo perpassados pela vibração, pelo ritmo. Nas artes estão contidos princípios de outras disciplinas – filosofia, geometria, física –, compartimentalizadas pelo Ocidente. Fazendo parte dessa afrodiáspora que compartilha do contínuo natureza-cosmos-cultura, da circularidade enquanto valor civilizatório, e que congrega disciplinas não compartimentalizadas, está Abdias. Como ele, estão intelectuais negros de outras partes.
O lugar afrodiaspórico coube a Abdias concreta e simbolicamente. A eleição como coordenador do III Congresso de Culturas Negras das Américas (São Paulo/SP, 1982) foi consequência de sua “afrodiasporicidade” de economista e poeta, dramaturgo e militante político, artista plástico e pesquisador acadêmico. Abdias foi intelectual antirracista física e metafisicamente falando, combatente de mazela sócio-racial-econômica e ancestral, que ataca modos de ser e viver “outros”, que foram e têm sido marginalizados-inferiorizados-folclorizados-demonizados.
Conhecimentos afrodiaspóricos resultam em pedagogias performativas, que não sobrevalorizam nem pensamento único nem forma de transmissão de conhecimento única, mas múltiplas. Como valorizou Abdias. Como valorizam intelectuais-artistas ancestralmente negros de outras partes.
Na perspectiva de des-silenciar o passado construído pela perspectiva euro-ocidental, como propõe o historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot, são listados a seguir alguns intelectuais contemporâneos de Abdias. São dramaturgos, poetas, escritores e artistas de diferentes linguagens, habitantes de afrodiásporas caribenhas ausentes de historiografias euro-ocidentalizantes, provenientes de visões de mundo em que cabem todos os mundos.
Nicolás Guillén (1902-1989, Cuba)
Poeta, jornalista, diplomata. Considerado genuíno representante da poesia negra de Cuba. A participação intensa na vida política de seu país lhe custou exílio em várias ocasiões. Em 1937, ingressou no Partido Comunista. Com o triunfo da Revolução Cubana, em 1959, passou a desempenhar missões diplomáticas de grande relevância, visitando, entre outros países, Brasil, Chile, França, União Soviética, Tchecoslováquia e Hungria. Em 1961, é fundada a Unión de Escritores y Artistas de Cuba (Uneac), da qual Guillén foi eleito presidente, cargo que ocupou até a sua morte.
Sua produção literária inseriu-se, inicialmente, no âmbito do pós-modernismo, com as experiências vanguardistas dos anos 1920. Nesse contexto, converteu-se logo no representante mais destacado da poesia negra ou afroantilhana. Expressando uma cultura “mulata”, fez sua incursão no universo literário com Motivos de Son (1930), seguido de Sóngoro Cosongo: Poemas Mulatos (1931) e West Indies, Ltd. (1934) – onde denunciou a exploração sofrida pelo arquipélago antilhano – e com poemas dispersos em livros diversos.
A partir daí, foi se aprofundando em suas preocupações políticas e com seus irmãos de raça, prosseguindo caminhos abertos com Sóngoro, Cosongo, onomatopeia que mostra o propósito do poeta de plasmar as raízes afrocubanas em ritmo e voz. Sua obra seguiu desafiando contextos políticos regionais e internacionais adversos à raça negra e às classes trabalhadoras.
Em sua atuação política, aceitou o convite do poeta Jacques Roumain, diretor do Instituto de Etnologia do Haiti, e viajou ao país como enviado cultural do governo cubano, delegado da Frente Nacional Antifascista e redator do periódico Hoy, em 1942. Dois anos mais tarde, fundou a revista cultural Gaceta del Caribe, com José Antonio Portuondo, Mirta Aguirre e Ángel Augier. Em 1945, Guillén iniciou uma viagem pela América do sul, onde estabeleceu intercâmbios com artistas e intelectuais, expandindo e aprofundando sua visão do continente americano.
Ao completar 80 anos, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Bordeaux, na França, e da Ordem José Martí, reconhecimento máximo de seu país.
Marie Vieux Chauvet (1916, Haiti – 1973, Estados Unidos)
Dramaturga e romancista. Primeira mulher célebre da literatura haitiana com uma obra marcada por princípios de igualdade e, no campo da filosofia, pelo existencialismo. Conhecida por sua postura política pujante, Marie Chauvet atuou contra os abusos de todos os tipos dos quais são vítimas as mulheres e os desfavorecidos de forma geral.
Publicada pelas melhores editoras da França, objeto de estudo das maiores universidades dos Estados Unidos, Chauvet elegeu o vodu, a escravidão, o colonialismo (interno e externo) e o erotismo como os principais temas de sua obra. Foi figura proeminente na literatura haitiana do início dos anos 1960 e única mulher em um grupo de escritores que incluía Davertige, Serge Legagneur e René Philoctète. Aos domingos, ela abria sua casa para reuniões literárias.
Enfrentando o marido, que se separou dela por discordar de seu posicionamento político, e a ditadura de François Duvalier (1907-1971), ela tentou publicar Amour, Colère et Folie, cujo manuscrito lido por Simone de Beauvoir lhe rendeu o convite para publicação pelas Edições Gallimard (editora fundada em 1911 e pertencente a um dos grupos de editoras mais influentes da França até os dias atuais). Pouco tempo após a publicação dessa obra, em 1968, sua difusão foi interditada sob ameaça a ela e a seus familiares pelo regime de Duvalier. Logo após a interdição, Chauvet se exilou em Nova York, onde escreveu seu último romance, Les Rapaces.
Jan Carew (1920-2012, Guiana)
Escritor, historiador, intelectual, professor, ator. A maioria de seus livros de ficção se passa no Caribe, relatando a luta de caribenhos colonizados por definirem sua própria identidade, estando em casa ou no exílio. Sua literatura de não ficção foca temas afins, incluindo estudos das presenças indígenas e africanas nas Américas.
Carew viveu entre Caribe, Estados Unidos e Europa, onde chegou a integrar a companhia teatral de Laurence Olivier. Lecionou em universidades como Princeton (literatura do Terceiro Mundo e escrita criativa) e Northwestern (estudos afro-americanos e do Terceiro Mundo). Entre os prêmios que conquistou estão o Hansib Publication (1990); o Paul Robeson em honra a “viver uma vida de arte e política” (1998); e o Caribbean-Canadian Lifetime Creative (2003).
Sylvia Wynter (1928, Cuba)
Novelista e dramaturga. Nascida em Cuba de pai e mãe jamaicanos, Sylvia Wynter é uma das escritoras contemporâneas mais importantes do Caribe, cujo trabalho está pautado nos idiomas locais da região (como o patoá jamaicano). Seus escritos diversos reúnem teorias em história, literatura, ciência e estudos negros e exploram temas como raça, colonialismo e representações do humano.
Depois de um período em Londres escrevendo peças para rádio, Sylvia Wynter se tornou palestrante na Universidade das Índias Ocidentais e, posteriormente, foi professora nas universidades de Michigan e da Califórnia. Em 1977, tornou-se professora de estudos africanos e afro-americanos na Universidade Stanford.
Seu romance mais lido, The Hills of Hebron (1962), trata da crise produzida por tensões entre a difusão do cristianismo e a persistência de espiritualidade tradicional africana em uma comunidade caribenha. A maior parte de suas peças se encontra inédita, incluindo Shh… It´s a Wedding (1965); 1865, Ballad of a Rebellion (1965); e Maskarade (1979).
Édouard Glissant (1928-2011, Martinica)
Antropólogo, filósofo, poeta, romancista, teórico e ensaísta. Integrou a geração de intelectuais das colônias que fez sua formação na metrópole (França). Sua reflexão crítica sobre as lutas anticoloniais, o colonialismo e a identidade dos povos afrodiaspóricos está presente em sua obra e, com ela, a elaboração dos conceitos de antilhanidade e crioulização. Durante os estudos em Paris, foi membro ativo do grupo de estudantes africanos e antilhanos entre os quais se encontrava outro grande expoente, o também martinicano Frantz Fanon (1925-1961).
Participou dos círculos literários marxistas ao lado de poetas e também do Círculo Internacional dos Intelectuais Revolucionários, cujo objetivo incluía análise crítica do marxismo e estudo das questões ligadas ao colonialismo. Para Glissant, cabia às artes e à literatura impulsionar o projeto identitário de diferentes coletividades, conferindo atenção particular àquelas marcadas pelo tráfico de africanos.
Professor de literatura francesa na Universidade da Cidade de Nova York (Cuny) por mais de uma década, Glissant se dividia entre Estados Unidos, Martinica e França, onde fundou, em 2006, o Institut du Tout-Monde. No mesmo ano, o então presidente Jacques Chirac lhe concedeu a missão de prefigurar e presidir o Centre National pour la Mémoire des Esclavages et de leurs Abolitions (Centro Nacional da Memória da Escravidão e da Abolição), instituição que segue em atividade.
Frankétienne (1936, Haiti)
Escritor, poeta, dramaturgo, músico, ativista, performer, intelectual, artista plástico e professor. Frankétienne é nome fundamental quando se fala nas dimensões linguísticas, estéticas, políticas e sociais da crioulidade.
É autor do primeiro romance em crioulo haitiano (Dézafi, de 1975, uma alegoria da opressão política no país sob o regime ditatorial de Papa Doc, como ficou conhecido François Duvalier). Sem deixar de publicar também em francês, foi com a valorização do crioulo que sua obra acessou o grande público e mudou o paradigma na literatura antes dominada pela língua dos ex-colonizadores.
Publicou mais de 30 títulos até o momento, tendo sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2009 e nomeado Artista Unesco para a Paz em 2010.
Maryse Condé (1937, Guadalupe)
Escritora, professora romancista. Depois de se formar na Sorbonne, em Paris, Maryse Condé se casou com o ator guineense Mamadou Condé, em 1960, e passou a dar aulas na Guiné. Seguiu lecionando em países como Gana e Senegal, mesmo após se divorciar. Apenas em 1973 ela retornou à França com seus quatro filhos, onde se casou com Richard Philcox, passando a dar aulas em diversas universidades e iniciando paralelamente sua carreira de romancista.
Após a publicação de Ségou, seu quarto romance, Maryse Condé retornou a Guadalupe, onde ficou por pouco tempo, vindo a se estabelecer nos Estados Unidos, onde se tornou professora emérita de francês na Universidade de Columbia.
Sua obra ficcional aborda questões em torno de sexos, raças e culturas em diferentes lugares e períodos históricos. A partir de 2004, ela passou a presidir o Comitê pela Memória da Escravidão, criado em aplicação da Lei Taubira, promulgada no mesmo ano, reconhecendo o tráfico negreiro como crime contra a humanidade.
Alguns de seus romances mais aclamados são Heremakhonon (1976), Ségou (2 volumes, 1984-85), Desirada (1997) e Célanire Cou-Coupé (2000). Entre seus principais ensaios figuram Pourquoi la Négritude? Négritude ou Révolution (1973) e Négritude Césairienne, Négritude Senghorienne (1974). Maryse Condé foi selecionada para os prêmios Le Grand Prix Litteraire de la Femme (1986) e Le Prix de L’Académie Francaise (1988) pelo conjunto de sua obra.
Liliane Braga é doutoranda em história social pela PUC/SP, onde integra o Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora (Cecafro). Sua tese de doutorado versa sobre contranarrativas à episteme ocidental a partir de cinemas negros do Brasil e do Caribe.