Abraham Palatnik: um criador excepcional
A paisagem externa vista do apartamento é deslumbrante. Um dos panoramas magníficos do Rio de Janeiro: da Urca, descortinando a enseada de Botafogo e toda a Baía de Guanabara, com a generosidade da vista do céu, o penhasco imponente do Pão de Açúcar, os iates repousando oscilantes sobre o mar, preguiçosamente… Mas Abraham Palatnik não parece se motivar com tanta beleza. Ensimesmado, ele se concentra em seu “apartateliê”, como o chama.
De costas para essa exuberância da natureza, ele transformou a ampla sala em ateliê, o corredor do apartamento em depósito de quadros e os quartos – depois que os filhos saíram de casa – em locais de trabalho e guarda de equipamentos e ferramentas. É marcenaria, depósito de obras, ateliê de artista. Lugar de concentração de energia e produção. Ou criatividade em alta voltagem de um homem incansável, genial em seu surpreendente pioneirismo sempre renovado. Se estivesse vivendo na Europa ou nos Estados Unidos, seria buscada a preservação de sua tranquilidade para o processo criador. Como se sabe, Palatnik antecedeu os experimentos de Frank Malina (1912-1981) e de Nicolas Schöffer (1912-1992). O primeiro desenvolveu sua kinetic painting (pintura cinética) em 1956, para produzir o sistema lumidyne de criação de uma imagem com luz e movimento em ciclos temporais. Já o segundo realizou sua primeira escultura cibernética na história da arte – CYSP 1 – por meio da computação eletrônica, também em 1956.
Ou seja, sete anos após a criação do primeiro Aparelho Cinecromático (1949) de Palatnik, apresentado dois anos depois na 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), por ocasião desse evento no Trianon, na Avenida Paulista.
No caso de Palatnik, por viver no Brasil, na América do Sul, como outros artistas notáveis, ele não aparece com a ênfase ou a frequência merecidas, seja em livros de circulação internacional, seja em exposições. Nem comparece, como deveria, em coleções de museus do mundo! Ele pertence, assim, ao que se convencionou chamar de “vanguarda invisível” (foi Hans Belting que cunhou o conceito? Não me lembro bem). Aliás, é a sina de outros latino-americanos, como Gyula Kosice (1924), da Argentina, o primeiro a fazer no mundo uso do neon em obras de arte, em suas estruturas lumínicas, em 1946, ou a utilizar a água em suas hidroesculturas luminosas, a partir de 1949.
Em sua opinião, arte e tecnologia sempre caminharam juntas através dos séculos, e isso nunca foi novidade. A inovação ocorreu quando ele decidiu romper com o convencional (tela, pincéis, tintas) e partir para outra maneira de conceber a expressão, de acordo com sua formação tecnológica e sensibilidade. Desde 1949, Palatnik acredita que não é do intelecto que vem a possibilidade de comunicação do outro com a obra de um artista, por mais enigmática que ela possa parecer. Ela vem da percepção que se estabelece entre o objeto criado e seu espectador. Assim, a função do artista é disciplinar o caos, e o cérebro desempenha essa função. A tarefa do criador, então, é fazer seu trabalho atingir os sentidos e ativar a percepção do observador, que deve ser por ele seduzido, sem necessidade de usar o intelecto.
Por que não se pode incumbir a outros a participação no processo de seus trabalhos? Porque cada projeto envolve um desafio a ser enfrentado pelo autor, seja na improvisação de detalhes técnicos para sua realização, seja na invenção-fabricação de peças necessárias para sua concretização. Daí o motivo de sua casa ter se transformado em marcenaria e oficina de pintura e de desenho, pois cada projeto é detalhadamente desenvolvido por meio de anotações gráficas minuciosas, que precedem a sua feitura.
Trabalhos podem ser de parede ou de base, e, como diz o artista, são quase “um jogo, um processo de modificações para chegar a uma forma perfeita”. Só depois de solucionados os impasses mecânicos é que entra a delicada seleção cromática, o instante de definição das cores. Esse momento da relação é tão importante que liga fortemente arte e tecnologia, as duas medidas sabiamente dosadas por seu criador.
Nem se pode pressupor que o componente mecânico seja o primordial. Pois por vezes o desencadear de uma série, ou de um processo, vem da observação aleatória do material, como o foi no caso da madeira, os veios dos troncos cortados (que nos remetem visualmente aos testes de Rorschach) ao encomendar armários para sua casa, e que correspondem a toda uma fase de seu trabalho. Uma ligação, como ele diz, “entre a superfície e o tempo”, e que o fez descobrir esse ritmo pulsante da superfície orgânica cortada preservando os desenhos das lâminas.
Em seguida, o papel seria por ele focalizado, não mais observado como superfície plana, suporte passivo, mas “considerado como material com vida própria, o papel enquanto topo”, em suas palavras. E, assim, o transfigura com pinças, estabelecendo um processo lúdico, ao realizar essa bela fase monocromática com papéis, como a série das madeiras, em ritmos que possuem muito de música, dado que parece permear toda sua trajetória.
Aliás, ao penetrarmos no ambiente de trabalho de Palatnik, em sua parafernália de materiais, ferramentas e equipamentos – gavetas, gavetinhas, furadeiras, brocas, parafusos, parafusos, parafusos de todos os modelos e dimensões, pregos, correntes de bicicleta, lixas, tacos de madeira, argolas, pinos, arames, ruelas, engrenagens, interruptores, juntores, porcas, lâmpadas, lâmpadas, lâmpadas, soldas, chaves de fenda de todas as medidas, alicates de todas as espécies, colas, limas, soldas, ferramentas para corte, roscas, serras, lâminas, classificadores, plainas, fiação elétrica, laca, tintas, pigmentos, solventes, querosene, ímãs –, sentimo-nos transportados para outro universo, fora do tempo como quando diante da observação do ritmo pausado de suas delicadas obras cinéticas ativadas.
Para esta exposição-síntese, desejamos incluir trabalhos que assinalam sua constante experimentação ao longo de décadas, com diversos materiais e direções, embora sempre partindo de sua primeira experiência abstrato-geométrica de fins dos anos 1940. Ao mesmo tempo, estão presentes suas pesquisas com madeira, papel, poliéster, vidro e múltiplos, com a contínua fascinação pelo movimento, pela luz e pelo lúdico, interação sensível entre arte e tecnologia, razão de ser de sua contribuição.
Inexiste a inércia, possível sinônimo de não vida, na obra de Palatnik. Tempo é palavra-chave para a apreciação de sua obra. Tempo + movimento = vida. E a dinâmica, vital, sob várias formas – manual, mecânica, luminosa, ou por meio de magnetos –, constitui a razão de ser de seus trabalhos.
Artista-inventor genial, juvenil no entusiasmo pelo que faz, é claro e direto em suas posições, racional, poético e intuitivo simultaneamente. Diante da dimensão de Abraham Palatnik, só cabe a nosso país reconhecer da maneira mais cabal e generosa esse criador excepcional.
Aracy Amaral
Curadora
Aracy A. Amaral é historiadora da arte. Foi professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e dirigiu a Pinacoteca do Estado (1975-1979) e o Museu de Arte Contemporânea (MAC/USP) entre 1982-1986. Possui diversas publicações sobre arte na América Latina. Atualmente, realiza a curadoria de exposições no Brasil e exterior.