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Ancestralidade e questões raciais

Por muito tempo, insistiu-se em dizer que Benjamim de Oliveira foi o “primeiro palhaço negro brasileiro”. Além de equivocada, essa definição corrobora o apagamento de toda uma parte da nossa história e de muitos artistas que precederam Benjamim e também caminharam ao lado dele.

Esses artistas firmavam parcerias que contribuíram para a construção da nossa cultura.

Os amigos do João

por Mariana Gabriel
com colaboração de Daise Alves dos Reis Gabriel e Roberto Salim Gabriel

Nos poucos documentos guardados pela minha família circense – família materna, os Alves do Grande Circo Theatro Guarany – estão as fotos da avó Maria Eliza caracterizada de Xamego, o palhaço masculino que ela representava nos anos 1940; o retrato da minha tia-avó “Tita”, a atriz Ephigênia Alves, posando num cenário montado; a carteira de proprietário de circo do meu bisavô João Alves; e uma foto de um elegante senhor negro com condecoração no paletó.

Nas lembranças da minha mãe, Daise, memória viva da história da nossa família, havia um amigo cujo nome era repetido nas histórias do Guarany por ela relembradas. Seria essa uma foto do famoso Benjamim? Consultamos, então, a mestra doutora Erminia Silva, cuja tese sobre o teatro brasileiro ressalta a importância de Benjamim de Oliveira e que já foi entrevistada pela neta de João Alves. Erminia recebeu a foto pela internet e respondeu: “Sim, é Benjamim de Oliveira”.

Conclusão: o ator era aquele “tio” que as “Irmãs Alves”, dupla de cantoras, costumavam incluir no rol de amizades do proprietário do Circo dos Pretos. Tio apenas pela amizade e pelo convívio que tinha com a nossa família, assim como membros da família Garcia, dos Piolin, dos Temperani e mesmo da família da própria Erminia, os Stankowich.

Ephigênia e Eliza se apresentavam juntas desde pequenas. Eram as “cantoras mignons” e, em seu repertório, apresentavam músicas como “O meu boi morreu”, de Eduardo das Neves, artista e compositor. Conhecido como Diamante Negro, Dudu das Neves foi um dos primeiros a gravar disco no Brasil, ao lado de outros palhaços-cantores, que, em sua maioria, eram negros.

Na minha infância, a avó Eliza cantava para mim. E eu ria das brincadeiras que ela fazia com os agudos da voz e com os erres puxados que marcavam seu tempo.

As histórias do povo preto do nosso país ainda estão assim: em fragmentos

Uma foto guardada, um adjetivo carinhoso, um instante fotográfico feliz. Uma canção de resistência. Partes de trajetórias de vida. Pistas de um grande contexto da memória cultural brasileira.

Quando começo a revirar os baús de casa e a me reencontrar com os caminhos da minha família circense, inúmeros artistas vão surgindo, muitas revelações. Surpresas valiosas. Algumas delas impensáveis, como a do bisavô João, um grande dono de circo que, 13 anos após a abolição, já se tornava um grande empresário preto circense – em 1901, uma época em que o grande centro cultural era justamente o circo. Sem dúvida, histórias inimagináveis para minhas aulas da escola.

A convite da equipe realizadora da Ocupação Benjamim de Oliveira, evento do qual tenho a honra de participar, descrevo neste texto alguns “encontros” que tive com o grande ator, aqui homenageado, durante a pesquisa sobre a minha família circense que realizo há 12 anos junto com meus pais, jornalistas.

Tudo começa com a avó Maria Eliza!

O Xamego. O reencontro com a figura dessa palhaço-mulher nos leva a fazer o documentário Minha avó era palhaço, com data de estreia no seu aniversário, 21 de março de 2016. O trabalho, realizado graças ao Prêmio Funarte Carequinha de 2014 na categoria Pesquisa, é um primeiro e grande passo para a compreensão da importância do reconhecimento dos artistas circenses para a cultura brasileira, assim como da carência de uma produção audiovisual que contemple essa memória.

Durante dois anos, foram muitas as buscas para a elaboração da pesquisa. E esse trabalho que resultou no filme também vai virar livro: um texto de 192 páginas sobre a trajetória artística de uma pioneira negra da palhaçaria feminina no país.

Um dos entrevistados na época, o Palhaço Biriba, de Ribeirão Preto (SP), nos contou que conhecera dona Maria Eliza e disse que ela fazia sua maquiagem de palhaço em homenagem a seu pai, João Alves, e a Benjamim de Oliveira. Entrevistamos também o senhor Juiraçaba Cardoso, neto de Benjamim, no Rio de Janeiro, e ele compartilhou histórias saborosas sobre seu avô. Indagamos se ele se lembrava das jovens Eliza e Ephigênia, mas Juiraçaba não se recordou disso. Ele nasceu em 1931 e faleceu em 2020. Disse que devia ser muito menino quando minha avó Maria Eliza e a Tita Ephigênia estiveram hospedadas na casa de tio Benjamim. Eram os anos 1930 a 1940.

Posteriormente, quando contemplados pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018 para um grande mergulho na história do bisavô João, entrevistamos 63 pessoas na busca da trajetória desse artista e empresário negro por este Brasil de meu Deus, com o seu Circo Guarany. Uma das pessoas entrevistadas foi Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo. Ela foi taxativa: João Alves e Benjamim de Oliveira, além de contemporâneos, foram parceiros sob as lonas.

Essa certeza foi reforçada em nossas pesquisas em jornais na Hemeroteca Digital do Arquivo Nacional e nas entrevistas com estudiosos, artistas circenses e velhos espectadores das exibições feitas nos picadeiros nacionais. Assim, além dos relatos familiares sobre tio Benjamim, tínhamos os recortes de jornais e os cartazes de velhos espetáculos em que seu nome aparece.

São indícios definitivos, como nos ensina a mestra Erminia Silva. Outros exemplos foram encontrados durante os trabalhos e as buscas aqui elencados por mim.

Encontros entre Benjamim, Dudu das Neves e João Alves já aconteciam antes e no início do século XX

Nos originais do Diário de Polydoro, nós nos emocionamos ao descobrir que, em 1896, sob as lonas do Circo Peri – em que Benjamim de Oliveira era um dos destaques –, aparece o nome de João Alves sendo anunciado com seu número musical de guizos.

Em 1905, já proprietário do Circo Theatro Guarany, João Alves tinha como uma de suas atrações Dudu das Neves, quando o circo foi montado na Praça João Mendes – registro que faz parte do livro Salões, circos e cinemas de São Paulo, do autor Vicente de Paula Araújo.

Nas publicações descobertas no Arquivo Nacional, consta na coluna “Palco e teatro” que o “Circo Guarany estará na cidade de Jacareí e contará com a presença de Benjamim de Oliveira”, no ano de 1917. Em outro recorte da mesma coluna, na década de 1920, anuncia-se uma excursão do Circo Guarany pela região norte do estado de São Paulo, levando Benjamim de Oliveira em sua trupe.

Todas essas afirmações foram registradas na pesquisa “Os caminhos do negro João Alves por esse país de Meu Deus – entre lonas, serragens, picadeiros e palhaçadas”, entregue ao Itaú Cultural (IC) no dia 21 de março de 2019, data de aniversário do Palhaço Xamego.

Ainda não descobrimos onde e por quem Benjamim de Oliveira está sendo condecorado naquela foto antiga que faz parte dos guardados da nossa família. Essa é uma história que precisa ser completada. Seguimos procurando detalhes, pistas e registros que evidenciem que Dudu das Neves, Benjamim de Oliveira e João Alves estiveram juntos na vida artística e em uma luta de resistência que, passado tanto tempo, ainda continua atual.

Ao mostrar o que aconteceu de verdade no passado é que conseguiremos pavimentar um presente de direitos artísticos e sociais em nosso país.

Daise Alves dos Reis Gabriel é jornalista pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e formada em letras pela Universidade de São Paulo (USP), com licenciatura em língua armênia e língua portuguesa. Trabalhou por 20 anos como repórter, redatora e editora em jornais como Diário popular e Folha de S.Paulo (caderno Folhetim) e nas revistas Afinal (seção Mulher), Tênis ilustrado, Match point, Claudia e Querida. É realizadora do projeto Xamego, a primeira palhaça negra do Brasil, protagonista do filme Minha avó era palhaço, pesquisadora sobre sua mãe – a atriz Maria Eliza Alves dos Reis – e produtora dos trabalhos Os caminhos do negro João Alves e Guarany, histórias do circo dos pretos, ao lado de sua filha e de seu marido. Daise apresentava-se com força de cabelo e contorcionismo no circo de sua família até os 10 anos de idade e, durante a adolescência, formava trios com sua mãe e seu irmão Aristeu em programas de TV e em outras companhias circenses, quando protagonizou uma das mais aplaudidas peças da época, Cabocla Tereza.

Mariana Gabriel é cineasta, jornalista e palhaça. É diretora do curta-metragem Iara do Paraitinga, dos documentários Circo Paraki (codireção com Priscila Jácomo), Mar português (gravado em Lisboa e exibido na ESPN Brasil), Minha avó era palhaço (codireção com Ana Paula Minehira), contemplado no Prêmio Funarte Carequinha de 2014, e da série documental Guarany, histórias do circo dos pretos, criada através do Primeiro Edital de Apoio à Cultura Negra da cidade de São Paulo e lançada em julho de 2021. Em 2017, realizou, ao lado de seus pais – os jornalistas Roberto Salim e Daise Gabriel –, a pesquisa Os caminhos do negro João Alves por esse país de Meu Deus – entre lonas, serragens, picadeiros e palhaçadas, contemplada pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018 e que prevê a edição de livro e a produção de filme documental. Trabalhou como jornalista e produtora na ESPN Brasil de 2007 a 2015 e no programa Manos e minas, da TV Cultura, de 2009 a 2011. Hoje retoma a história de sua família materna, que é tradicional de circo, a família Alves, do Grande Circo Guarany.

Roberto Salim Gabriel é jornalista esportivo. Trabalhou como repórter em jornais, revistas e programas de televisão. Por 20 anos, na ESPN Brasil, dirigiu e escreveu mais de 200 documentários para o programa mensal Histórias do esporte, que recebeu o Prêmio Vladimir Herzog e o Prêmio Embratel. Participou da cobertura da Copa do mundo de 1982 a 2014, das Olimpíadas de 1992 a 2016 e dos Jogos panamericanos de 1999 e de 2007. É realizador dos projetos Xamego, a primeira palhaça negra do Brasil, Os caminhos do negro João Alves e Guarany, histórias do circo dos pretos, junto com Daise e Mariana Gabriel, sua esposa e sua filha, respectivamente.

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Seção de vídeo

A presença de artistas negros no circo

Erminia Silva, pesquisadora e cocuradora da Ocupação Benjamim de Oliveira, fala sobre a presença de artistas negros na história do circo. Para ela, Benjamim conseguiu articular com vários artistas negros de sua época, circenses e de outras áreas de expressão. O vídeo também traz depoimentos de Maurício Tizumba e Wildson França. França ressalta as dificuldades de abordar questões raciais na palhaçaria atualmente.

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Entre as décadas de 1890 e 1910, o palhaço, cantor e empresário circense Eduardo das Neves foi um dos artistas mais populares não só na Capital Federal, mas no Brasil. É provável que Benjamim tenha sido amigo de Eduardo das Neves entre 1903 e 1904, pois nesse período Neves compôs o lundu Crioulo faceiro em homenagem “ao simpático clown Benjamim de Oliveira”. Fonte: Almanack dos Theatros, Rio de Janeiro, 1909, p. 144.

Entre as décadas de 1890 e 1910, o palhaço, cantor e empresário circense Eduardo das Neves foi um dos artistas mais populares não só na Capital Federal, mas no Brasil. É provável que Benjamim tenha sido amigo de Eduardo das Neves entre 1903 e 1904, pois nesse período Neves compôs o lundu “Crioulo faceiro” em homenagem “ao simpático clown Benjamim de Oliveira” (Fonte: Almanack dos Theatros, Rio de Janeiro, 1909, p. 144)

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“Naquela época em que ele ainda era perseguido, confundido com escravizados, a arte dele conseguiu chegar a alguns lugares onde uma elite branca da época ia lá bater palma para ele. Ele não se considerava engajado, mas mal sabia que só por ser preto ele já era engajado. O teatro para nós, negros, sempre está ligado à ancestralidade. Então, aquela força que o Benjamim tinha, aquilo era força ancestral.”

Maurício Tizumba em entrevista à "Ocupação Benjamim de Oliveira"

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