Texto do curador

Aqui, do lado de lá

rio oir, de Cildo Meireles, é um trabalho sonoro: um disco contendo sons de água, de um lado, e sons de risadas, de outro. Pensado em 1976, realizado entre 2009 e 2011, integra uma linhagem de projetos sonoros já realizados anteriormente pelo artista, como Mebs/Caraxia (1970), Sal Sem Carne (1975), Babel (2001) e Liverbeatlespool (2004). Seu ponto de partida, e título do trabalho, é um palíndromo: uma frase reversível, construída por espelhamento. Mas, como ocorre com outros títulos ou motes verbais em trabalhos de Cildo Meireles, não há aqui um teor explicativo, e sim sugestivo. O palíndromo espelha a própria estrutura dual de um disco de vinil, que tem lado A e lado B. Entretanto, como numa fita de Moebius, essa dualidade não é dicotômica. Assim o “oir”, que podemos ler como a palavra “ouvir” em castelhano, refere-se à própria escuta, que é a essência do trabalho em todos os seus lados. E o “rio”, que pode ser lido tanto como elemento natural – um curso fluvial – quanto como uma risada na primeira pessoa, descreve em uma só palavra as duas metades do disco, como uma serpente que morde o próprio rabo, isto é, um palíndromo. Ou, se quisermos, uma “terceira margem”.

A risada é humana. E pode significar tanto uma explosão descontrolada de alegria ou sadismo, quanto uma reação nervosa, passando por vários matizes entre esses estados de humor. Já o rio é da natureza, e segue seu curso sempre adiante, da nascente à foz, isto é, do burburinho mais delicado de um fio de água minando na pedra ao estrondo poderoso de cachoeiras, ou ao ronco grave de uma pororoca. Cildo, no entanto, também incluiu no disco o som das águas residuárias, as águas humanas: torneiras, descargas, bebedouros, urinas etc. Com isso ligou novamente as duas pontas do projeto, nos fazendo “ver” (com os olhos dos ouvidos) que aos sons dos rios também podem ser atribuídos estados de ânimo; assim como as gargalhadas vêm em ondas, e no seu fluxo alucinado, vamos muitas vezes perdendo a respiração, como se estivéssemos nos afogando. No fim, é como se os dois lados fossem um só: rio, riso, choro, chuva.

O som das águas é uma massa grave, espessa e constante, que, como uma orquestra de cordas, preenche todo o espaço à nossa volta. Diante de sons assemelhados a tempestades, ou a ondas quebrando, ficamos embriagados pelo ritmo da eternidade. É bonito, no entanto, que a essas camas orquestrais sejam acrescentados pouco a pouco os sons das águas residuárias. O contraste desses sons com a continuidade da natureza nos tira da hipnose, através de comentários que parecem percussivos, ou pequenos solos de sopro. Aumenta-se aí a polifonia da orquestra, à medida que o gradiente sonoro vai decrescendo do pianoforte ao pianíssimo. Já quase ao final, parece que os rios são tragados por uma descarga, sobrando apenas o baixo contínuo – e trágico – do som subaquático de uma nascente emparedada, transformada em poço. Em uma comparação heterodoxa, se o projeto lunático do personagem Fitzcarraldo, de Werner Herzog, era levar a ópera para a selva, provocando o sublime contraste entre natureza e cultura, esse trabalho musical de Cildo Meireles talvez seja a sua reversão: uma ópera da selva, onde os cantos são água, e que ri de si própria.

Do outro lado do disco, as risadas são todas solistas – cuícas, fagotes, sax sopranos -, e sua essência teatralizada nos aproxima do universo da ópera. Verdadeiramente polifônico, o som aqui se espacializa e ganha enormes distâncias, como se estivéssemos no interior de um imenso teatro, no momento em que as pessoas entram e se acomodam, conversando em pequenos grupos, pigarreando e dando risadas. Mas aqui surge uma incômoda sensação de falta: o motivo das gargalhadas, cada vez mais estridentes, está ausente. Pois se somos capazes de contemplar por horas os sons da natureza sem necessidade de maior explicação, uma ópera de risadas é quase intolerável, apesar de seu efeito contagiante. Aqui o palíndromo parece ganhar uma dobra interna, e se esconde. O seu sentido é um interdito.

A captação dos sons das águas foi feita em quatro diferentes lugares do Brasil: a Estação Ecológica de Águas Emendadas, próxima a Brasília, que é o coração geográfico e simbólico do projeto; as cachoeiras de Foz do Iguaçu, no Paraná, na fronteira entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai – o lado de lá, onde ouvir é oir -; a foz do rio São Francisco, entre os estados de Alagoas e Sergipe; e a pororoca do rio Araguari, no Amapá. Na Estação Ecológica de Águas Emendadas existem muitas nascentes de rios, que eventualmente se emendam na estação das chuvas, tornando-se, física e poeticamente, uma água única. Esses rios correm para as mais variadas direções, desembocando nas três principais bacias hidrográficas brasileiras: a do Tocantins-Amazonas, na região Norte; a do São Francisco, no Nordeste; e a do Paraná, no Sudoeste. A escolha dos lugares para a captação dos sons das águas seguiu esses próprios vetores geográficos, contemplando, ao mesmo tempo, a possibilidade de um amplo gradiente sonoro – das nascentes às cataratas, ou o inverso. Assim, se todas essas águas podem ser consideradas, de certo modo, uma água só, suas diferentes intensidades sonoras também são, no fundo, variações rítmicas sobre uma base contínua. E o Brasil, talvez, um arquipélago de ilhas separadas por um único mar – aliás, a palavra paraná, em tupi, significa “mar”: um mar interior.

A existência de Águas Emendadas materializa, de certa maneira, a ideia difusa entre os descobridores do continente, nos séculos XVI e XVII, de que haveria um grande lago central na América do Sul, lugar onde nasceriam os seus principais rios. Esse “paraíso terreal”, o El-Dorado descrito por muitos historiadores como uma “terra prometida” nos trópicos, dá um acento mítico ao projeto. Acento, no entanto, contrabalançado pela experiência real das viagens a esses lugares. Lá encontramos rios poluídos, assoreados, com vazões vertiginosamente menores do que já foram até não muito tempo atrás, e nascentes natimortas, privatizadas e emparedadas. Uma das amargas conclusões tiradas a partir dessas viagens, diz Cildo, foi “a percepção de que muito em breve todas as águas fluviais do Brasil serão, de certa forma, residuárias, porque elas já estão sendo conspurcadas na fonte” (ver entrevista com o artista, na galeria “Cildo”). Com isso, o trabalho transita do poético ao político, e as gargalhas ganham um acento fortemente sarcástico, que completa de certa forma aquela “falta” a que me referi antes, reforçando, no entanto, o seu incômodo.

Cegando a nossa visão, uma vasta geografia continental se desenha no trabalho de Cildo Meireles, pulsando em cada som. Os lugares, assim, não se separam mais do disco, já que o trabalho é, no fundo, o permanente trajeto mental entre a sinfonia sonora e seus pontos de origem, não representáveis. De novo, se o trabalho é sempre dual, não é dicotômico. E se ao fim essas águas, já não mais emendadas, viram poços construídos, a urina passou a ser, desde Marcel Duchamp, a fonte de uma outra fonte.

Guilherme Wisnik

curador