Dias Gomes posando na varanda, s.d. (Foto: autor desconhecido. Acervo Dias Gomes)
Incômodo e Subversivo
Para merecer ter nascido
Plínio Alves Dias Gomes, o pai de Alfredo de Freitas Dias Gomes, homenageado desta Ocupação, disse do filho quando este nasceu: “Esse menino não devia ter nascido”. É o nosso Dias Gomes quem conta, na autobiografia Apenas um subversivo, e explica: o pai, sob o pressentimento de que morreria cedo – o que se comprovaria, pois ele faleceu com 44 anos –, pensava que não teria tempo de criar o filho. Essa posição deixou marcas: “Convivi muito tempo com esse complexo de rejeição”, escreveu ele, “e até hoje tento provar, desesperadamente, que ele não tinha razão, que eu deveria, sim, ter nascido”.
Um dos caminhos que encontrou para isso foi a escrita: “Talvez na ânsia de provar que merecia ter nascido, comecei a escrever muito cedo, aos 9 para os 10 anos de idade”. A vontade de escrita, inicialmente, foi também menos vocação que imitação: seu irmão, Guilherme Freitas Dias Gomes (1912-1943), foi poeta, romancista e contista e “a pessoa que mais influência exerceu” sobre a sua adolescência. Esses impulsos levaram a peças encenadas em família, que se desenvolveram nos primeiros trabalhos dramatúrgicos de fato e que chegariam a formar a obra – provas de merecimento? – que celebramos.
Nesta seção, alguns destaques dessa história de vida – a aceitação de Dias como imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), a fundação da Casa de Criação Janete Clair (um espaço de elaboração de roteiros para a Globo), entre outros – são apresentados. Além disso, aprofundam-se perspectivas sobre o que caracteriza a forma de criar do autor.
Família e primeiros anos
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Sobrado da Rua Bom-Gosto, no bairro do Canela, em Salvador (BA), onde nasceu Dias Gomes em 19 de outubro de 1922 | foto: autor desconhecido/Acervo Dias Gomes
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Plínio Alves Dias Gomes, pai de Dias Gomes, em sua escrivaninha, com o bigode à la kaiser, s.d. | foto: autor desconhecido/Acervo Dias Gomes
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Alice Ribeiro de Freitas Gomes, mãe de Dias Gomes, aos 19 anos, no tempo do espartilho | foto: autor desconhecido/Acervo Dias Gomes
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Dias Gomes no Ginásio Nossa Senhora das Vitórias, do Colégio Irmãos Maristas, em Salvador(BA), s.d. Da esquerda para a direita, ele é o terceiro da segunda fila | foto: autor desconhecido/Acervo Dias Gomes
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Guilherme Dias Gomes, irmão de Dias Gomes, s.d. Ele foi uma fonte de muita inspiração na vida e na arte do autor após o falecimento do pai. Foi quem o aproximou do Grupo autointitulado Academia dos Rebeldes, formado por Jorge Amado, Edilson Carneiro e Dias da Costa | foto: autor desconhecido/Acervo Dias Gomes
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O perfil de Dias Gomes
O diretor teatral Antonio Mercado, a escritora Nélida Piñon, o cenógrafo José Dias, os atores Lima Duarte e Emiliano Queiroz e o cineasta Cacá Diegues relembram suas relações pessoais com Dias Gomes. Para Mercado, o humor, a ironia e a capacidade de rir de si mesmo eram marcantes no autor.
"Sei que fui e sou uma pessoa incômoda nesse meu ofício – disseram-me isso muitas vezes. Incômoda para os detentores do poder temerosos de qualquer questionamento, incômoda para os acomodados, os que nada querem mudar e por isso acusam de espúria qualquer arte participante, incômoda para os que me pagam para divertir o povo, qual bobo da corte e não para suscitar desagradáveis polêmicas, incômoda para os que preferem silenciar sobre o inadmissível, no silêncio cúmplice e criminoso dos omissos. Aceito a tarja que me pregaram na testa: subversivo. Minha única dúvida é se realmente mereci, se de fato incomodei bastante."
Trecho da autobiografia "Dias Gomes: Apenas um subversivo", p. 354
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Escrita que aprendeu com os tempos
A dramaturgia de Dias Gomes atravessa mais da metade do século XX, abrangendo fases distintas do teatro nacional e internacional. O autor soube resistir à ditadura e encontrar uma nova linguagem na redemocratização. Essas e outras características da sua escrita, além da presença de Dias na Academia Brasileira de Letras, são tratadas pela escritora Nélida Piñon, pelo cineasta Cacá Diegues e pelo diretor teatral Antonio Mercado.
"Confesso que me sinto ainda constrangido e perplexo em me ver dentro deste fardão, nunca supus que isso um dia pudesse acontecer. Olhando-me de fora, pergunto-me: O que teria mudado, eu ou a Academia? Pois, muito embora todas essas afinidades que encontro com os antigos ocupantes desta Cadeira, sempre me imaginei numa postura artística e filosófica que me vedava as portas desta ilustre Casa, onde tenho, aliás, grandes amigos. Foram eles, sem dúvida, que me trouxeram para cá. Mas, neste momento, é bom, é justo, é importante reconhecer: nem eu mudei, nem a Academia. Ela me aceita tal como sou, inconformado escritor do meu povo, engajado no sonho de vê-lo livre e feliz."
Dias Gomes [discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (leia completo)]
Dias Gomes proferindo o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 1991 (Foto: Manchete. Acervo Dias Gomes)
“[...] [a Academia] é, apenas, um clube fechado onde se pode conviver com pessoas admiráveis e outras não tanto. Essa convivência às vezes torna-se difícil para quem é avesso ao carreirismo literário ou ao mesquinho jogo de vaidades, como eu. Mas joga quem quer. Há também a ideia de que a Academia transforma os indivíduos, tornando-os, num passe de mágica, culturalmente conservadores. Tolice, com o alegórico fardão ou sem o alegórico fardão, olho-me no espelho e me vejo tal como era (ou sonhava ser) em minha juventude – um escritor afinal com seu povo, nada mais do que isso.”
[Trecho da autobiografia Dias Gomes: Apenas um subversivo, p. 353]
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Casa de Criação Janete Clair
A Casa de Criação Janete Clair, fundada por Dias Gomes em 1985 na TV Globo, surgiu com o objetivo de elaborar e selecionar roteiros para as produções da emissora. Para Antonio Mercado, diretor teatral e amigo do dramaturgo, foi um dos projetos mais importantes de Dias, criado dois anos depois da morte de sua primeira esposa, a autora Janete Clair. O cenógrafo José Dias fala sobre a relação de Dias com outros escritores.
Uma luz na Lagoa
O conto abaixo foi escrito pelo dramaturgo, diretor teatral e escritor Sergio Fonta a pedido do Itaú Cultural. A proposta era criar algo que dialogasse com o universo de Dias Gomes. O resultado foi esse: uma história sobre um encontro entre um autor aspirante e o grande Autor.
Ainda quase imberbe, o jovem Fredo olhou a ladeira em curva no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro, e pensou:
— Se eu cheguei até aqui, depois de tanta subida e descida em estradas da Bahia, não é uma ladeira que vai me impedir de chegar até a casa do Autor. Se vou entrar nela ou não, só o Senhor do Bonfim é que saberá dizer. Mas vou tentar – disse, respirando fundo.
Era uma rua aprazível, sem muito movimento, próxima a um posto de gasolina, emoldurada pelo deslumbrante visual da Lagoa Rodrigo de Freitas e por um céu, naquela tarde, profundamente azul. A casa do Autor, a terceira da rua, do lado direito, tinha um extenso muro de pedra, assim como a própria construção. Lá do início da ladeira, notava-se que era uma residência de luxo, porém, sem ostentação. Sólida.
Ele parou em frente a um grande portão de madeira marrom, ovalado. Também sólido. Nada se via através dele. Ao lado, apenas um interfone. Acima, percebia-se um trecho da rampa que levaria à porta principal com as duas paredes cobertas por heras.
Mais uma vez Fredo respirou fundo, hesitou um pouco, mas apertou o botão do interfone. Silêncio. Apertou mais uma vez. Silêncio. Quando ia apertar novamente, uma voz surge no interfone:
— Sim?
E Fredo, um pouco inseguro:
— Bom dia…
— O que deseja? – perguntou o funcionário.
— Desejo falar com o Autor…
— Como?
— Vim aqui especialmente para falar com ele.
— O doutor não pode atender agora. Está muito ocupado. Marque um outro dia, com antecedência, para ver se ele pode recebê-lo – respondeu o homem – Passar bem.
E Fredo, já apreensivo:
— Espera! O senhor precisa explicar pra ele. Vim direto da Bahia só pra falar com ele.
— Da Bahia?
— Pois é isso! – afirmou Fredo, mais animado.
— Mas quem quer falar com ele?
— Um futuro jornalista.
— Mas como? Só isso?
— Sim. Só isso. O senhor pode dizer pra ele assim mesmo.
— Um momento.
Foram, talvez, os minutos mais longos da vida de Fredo, mesmo que ele viva 100 anos. Quase no topo da rua, enquanto aguardava a resposta, pensou que seria melhor rolar ladeira abaixo e gritar por socorro, para ver se, preocupado, o Autor, ao ouvi-lo, corresse para acudi-lo. Não foi preciso. A voz do funcionário, categórica, se fez ouvir:
— Pode subir – e, logo, automaticamente, a porta se abriu.
Fredo disparou rampa acima antes que o sujeito mudasse de ideia. Passou por uma nova rampa, um jardim, uma piscina e amplas janelas que circundavam toda a casa, exceto em uma extensão dela onde se situava outra pequena construção, toda de pedra também, e uma porta.
Ainda ressabiado, deu três pancadinhas e, de dentro, alguém respondeu:
— Pode entrar.
Por trás de uma imensa mesa, repleta de papéis e livros – aliás, livros era o que mais havia por ali –, ele estava na sua frente: o Autor!
— Então você veio da Bahia? De onde? De Salvador mesmo, como eu?
— Não… Ih, de muito longe! De Catolândia. Uma cidade escondida no fundo do estado da Bahia. É simples, mas bonita. Pelo menos eu acho. Pouca gente mora lá. Quer dizer, se a gente pensar na quantidade de gente que mora em Salvador e, mesmo, no Rio.
— Mas você é tão jovem, como veio parar aqui?
— De carona… Num caminhão. Pra conhecer o senhor.
— Você veio de tão longe só para falar comigo? – perguntou, espantado, o Autor.
— Só. Na minha cidade tem uma bibliotecazinha onde vou muito. Vi uns livros seus lá e li um deles. Era de teatro. Gostei! Mas não quero ser artista que nem o senhor, não. Quero ser jornalista. Na minha cidade, leio qualquer pedaço de jornal que acho pelo caminho. Algumas casas de lá leem o jornal e depois jogam fora. Eu pego todos. Num deles tinha uma reportagem com o senhor. Falava das suas peças, das suas novelas, dos seus prêmios, da sua casa na Lagoa e dizia, ainda por cima, que era baiano. Eu fiquei doido! Jurei pra mim mesmo que vinha ao Rio pra conhecer o senhor. Eu disse pra mim: ou eu vou pro Rio conhecer ele ou eu não me chamo Fredo!
Surpreso, o Autor, deu uma risadinha:
— Fredo? De Alfredo?
— É, é o meu nome. Mas todo mundo me chama de Fredo. Pegou, né – disse o quase menino, com os olhos vivos. – E eu fico vendo o senhor aqui, dentro deste castelinho, tão gostoso este lugar, silencioso. Puxa, tô feliz – e dispara: Quem é esse homem barbudo, que está no quadro, na parede, por trás da sua mesa?
— William…
— William?
— Shakespeare. Um rapaz inglês que escreveu muitas peças há muito tempo. Tinha talento.
— E esse cabeludo aqui? – apontou Fredo para um pequeno busto em mármore em uma das estantes do escritório.
— Esse é o Molière, que escreveu peças há muito tempo também. Era francês.
— O senhor só tem estrangeiro aqui?
O Autor sorri e mostra as outras estantes que cercam o seu local de trabalho:
— Aqui está cheio de brasileiro. Muitos deles colegas meus no teatro e na TV, alguns passando pelos problemas que eu também passo com a censura.
— Eu li naquela reportagem com o senhor sobre a tal da censura – relembra Fredo. – Ela retalha muito as suas peças?
— Retalhar propriamente nunca a censura retalhou: ela cortou mesmo. Sempre proibiu de vez. No tempo da ditadura, então! – esbravejou o Autor. – Mas você é muito novo, não sabe nem o que é ditadura.
— Sei, sim. Também li… Sei que teve uma peça que o senhor, pra não ser censurado, jogou a história pra um monte de séculos atrás. Contou tudo o que estava acontecendo no Brasil, só que num mundo bem antigo, aí a tal da censura não pôde fazer nada – sorriu, meio travesso, o futuro jornalista.
O Autor olha bem ao longe no horizonte, entre sonhador e realista, pensando em tudo que já passou e em tudo que passará, até o dia em que for embora e se tornar uma chama permanente na memória de um país inteiro. Pensou em quantas peças de teatro a censura implodiu. De outros criadores e dele mesmo. O Autor, porém, nunca abriu mão das suas convicções. Nunca abjurou.
— Às vezes, é preciso enganar a quem quer nos enganar. E, às vezes, entendemos o jogo, mas a gente vai até certo ponto. Jamais fazemos o jogo do opressor. Tem uma fala, isto é, uma frase nessa peça citada por você que gosto muito: “Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol”.
— Puxa!
— Deu para entender? – perguntou o Autor, curioso para ver se o seu pensamento criador seria capaz de atingir um jovem tão humilde, vindo de uma terra tão distante.
— Claro! Sou do interior, mas não sou burro… Tem muita gente inteligente no interior de qualquer lugar.
— Eu sei – afirmou o Autor com um secreto e sereno orgulho. – Escrevo para vocês também. No interior ou na capital, vou sempre pensar em vocês, cada vez que escrever uma peça ou uma novela. Eu escrevo para o povo.
— Lá na minha cidade ninguém perde uma novela sua. Sabe lá o que é isso? Todo mundo segue as suas histórias entendendo tudo. O senhor chega muito longe!
O Autor encosta-se na cadeira, emocionado, ouvindo aquela voz tão nova e já tão cheia de percepção, de sensibilidade:
— Uma vez, há mais ou menos dez anos, um jovem jornalista como você – um pouquinho mais velho, é verdade – me perguntou se eu me assustava por atingir tanta gente com uma novela. Naquele tempo eram 8 milhões de aparelhos de televisão, quer dizer, se você multiplicar por cinco, que é a média de espectadores, são 40 milhões de pessoas.
— Quarenta milhões? – espantou-se Fredo.
— Agora ainda é mais. E pensar que você está fazendo uma coisa para 40 milhões de pessoas ou mais assusta, é uma responsabilidade muito grande. Mas, ao mesmo tempo, estimula. Você sabe que uma palavra sua não está sendo perdida.
Toca o telefone. O Autor atende, pede desculpas ao interlocutor por estar um pouco atrasado para a reunião na emissora e diz que já vai para lá. Fredo percebe que logo será hora de partir.
— Fredo, conversando com você até esqueci que tinha uma reunião lá na TV.
— É, eu sei, sim, senhor.
— Para onde você vai? Com que dinheiro? – preocupou-se o Autor.
— Fiz uma vaquinha lá na minha cidade – sorriu, timidamente. – Juntei o suficiente para vir aqui conhecer o senhor e voltar pra Catolândia. Vou estudar mais e ainda vou escrever em jornal, o senhor vai ver. E depois, mais tarde, quem sabe, vou ser dono de jornal.
O Autor dá uma risadinha cúmplice, vai até uma prateleira e pega um livro:
— Leve este meu livro. É sobre uma promessa que não pôde ser cumprida. Mas a sua vai ser, mesmo que em uma situação completamente diferente – e escreve uma dedicatória: “Para Fredo, um futuro jornalista de futuro, com admiração”.
— Com admiração? – surpreendeu-se.
— Sim, por que não?
— Quando, um dia, eu escrever uma reportagem sobre o senhor no meu jornal, como o senhor gostaria de ser chamado? – pergunta Fredo, já se encaminhando para a porta e próximo a uma janela por onde se via uma boa parte da Lagoa Rodrigo de Freitas, ainda iluminada pelo sol do verão.
— Às vezes eu escrevo de dia, às vezes, à noite. Mas entre o dia e a noite, prefiro o dia. Pode me chamar de Dias.
Lá fora, a Lagoa brilhava.