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Do palco para as telas

"Eu me sinto manejando uma nova linguagem, um novo meio de expressão, fascinante por ser justamente novo. Nós temos de descobrir essa linguagem e atingir uma plateia gigantesca que eu nunca sonhei em ter no teatro."

Dias Gomes [entrevista à TV Cultura, 1983]

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Antes da TV, passou pelo rádio

O rádio ocupou um período importante na vida e na carreira de Dias Gomes. Durante 20 anos (de 1944 até 1964), ele exerceu a função de radiator e narrador de programas, e fez novelas e mais de 500 adaptações de peças e romances. Foi na recém-inaugurada Rádio Panamericana, em São Paulo, onde tudo começou. Em sua primeira experiência na emissora, Dias realizou adaptações de peças e romances literários para o programa Grande teatro.

Ouça nos links a seguir:
“Testemunha de acusação”, da escritora Agatha Christie, adaptada por Dias Gomes
“O boi santo”, de Dias Gomes
“O quadro amaldiçoado”, de Rodrigues Aguiar, adaptada por Dias Gomes

O autor também teve passagens pela Rede de Emissoras Associadas – onde foi afastado por incidentes políticos –, pela Rádio América, pela Rádio Bandeirantes e pela Rádio Tupi. Por último, ele alcançou o cargo de diretor da Rádio Clube do Brasil, em 1953.

Nesse mesmo ano, após viagem a Moscou (Rússia) com uma delegação de escritores, Dias Gomes foi perseguido politicamente e passou a escrever fazendo uso de pseudônimos para a TV Tupi – Janete Clair, Moisés Weltman e Paulo de Oliveira assinavam os textos em seu nome. A breve vivência com a radionovela durante esses anos foi imprescindível para, depois, escrever para a TV. “Significou, evidentemente, uma experiência, um primeiro manejo do instrumental da novela, que me serviu muito depois quando eu vim a fazer telenovela. Principalmente o treino, o exercício de escrever um capítulo por dia, esse treino diário foi muito útil depois”, declarou o dramaturgo em entrevista concedida à TV Cultura em 1983.

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“Durante os meus longos anos de trabalho em rádio, eu não fiz muitas novelas [...]. Eu me dediquei mais à adaptação de peças, de romances da literatura internacional; foi o chamado grande teatro, programas também chamados de grande montagem, que se fazia na época, aqueles que tinham orquestra, cantores e radioatores. Fiz de tudo no rádio, aliás, fui até radioator. Fui narrador de programas, fiz de tudo. E fiz algumas novelas, realmente, foi quando eu tomei o primeiro contato com o gênero."

Dias Gomes [entrevista à TV Cultura, 1983]

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Realidade e absurdo em cena

Dias Gomes colocou em cena a realidade do Brasil: personagens típicos, traços regionais, costumes populares e questões sociais intrínsecas aos agrados e às mazelas do povo. Na televisão, ele contou histórias que marcaram época e que até hoje permanecem vivas na memória do público, como nas novelas O bem-amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985). O dramaturgo dizia que, diferentemente do teatro, na TV é possível alcançar um público de A a Z e de todas as classes sociais. E ele tinha razão.

Realismo fantástico, misticismo, problemática social e regionalismo estavam entre os temas tratados pelo autor, que também inseriu características como o humor e a ironia em suas obras, causando encantamento e curiosidade naqueles que acompanhavam suas histórias.

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Dias Gomes no grande palco da literatura fantástica

por Duanne Ribeiro   

“A tentativa é de fugir ao realismo”, comentou Dias Gomes em abril de 1976 sobre a sua novela Saramandaia, “ou seja, equilibrar realidade e absurdo. Ou transmitir a realidade através do absurdo do qual muito frequentemente ela se reveste, principalmente nos países latino-americanos, países como o nosso”. De fato, o fantástico se coloca na trama de Saramandaia: temos nela Aristóbulo, um lobisomem, e Dona Redonda, que explode. Mas esse teor fantasioso aparece em outras obras de Dias Gomes – por exemplo, em O bem-amado ­– e constitui uma marca do seu trabalho; por essa característica, aliás, seu estilo é comparado ao realismo mágico de nomes como Murilo Rubião e Gabriel García Márquez. Nesta entrevista, fala-se desse contexto mais amplo e inclui-se Dias nele.

Quem apresenta esse panorama é Alysson Siffert, mestre e doutor em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – tendo redigido a tese O realismo do fantástico: teoria geral e obras exemplares –, também licenciando em letras pela Universidade Paulista (Unip). Alysson explica os diferentes tipos de literatura de fantasia e trata do desenvolvimento desse gênero no Brasil em relação à América Latina. Além disso, pondera o potencial político do realismo mágico e sua capacidade de desvelar o real.

De início, duas perguntas sobre distinções. Primeira: o que distingue o realismo fantástico da literatura fantástica? Façamos a mesma pergunta com uma imagem: se um dragão surgisse em García Márquez, como isso diferiria de Game of thrones?

A literatura fantástica, em termos mais gerais e intuitivos, é toda literatura na qual ocorrem situações fantásticas, isto é: histórias que retratam algum rompimento das leis físicas mais comuns. Sob esse sentido, a literatura fantástica seria um gênero mais amplo; e o chamado realismo fantástico, apenas um caso específico desse gênero. Em outras palavras, o realismo fantástico também seria literatura fantástica.

Não obstante, hoje em dia há, sim, uma separação mais ou menos acentuada entre essas duas noções, seja por uma estratégia mercadológica, seja por questões históricas e estilísticas – ou até por causa da qualidade e da seriedade de certos projetos artísticos em comparação com outros. A expressão literatura fantástica tem sido mais aplicada à literatura de fantasia, do tipo Game of thrones ou Senhor dos anéis, em que criaturas inventadas aparecem por mero estratagema de entretenimento e cuja preocupação é, antes de tudo, o apelo fácil a um público amplo (a princípio infantojuvenil), e não um sério cuidado com a originalidade artística ou com a profundidade filosófica ou sociológica. Não por acaso, nenhum autor desse tipo de literatura de fantasia jamais foi cotado ao Prêmio Nobel de Literatura – o que não é nenhum preconceito injustificado, mas, sim, uma inevitável valoração artística.

Já o que se convencionou chamar de realismo fantástico relaciona-se com uma tendência literária mais específica, iniciada em uma época posterior às obras naturalistas de finais do século XIX e inícios do século XX. Uma vez que os naturalistas se autoproclamavam realistas e defendiam a escola do Realismo, que se pautava pela descrição fiel das aparências visíveis, tudo o que destoava das normas programáticas desse Realismo-Naturalismo precisou ser caracterizado de outra forma, como o Modernismo. As vanguardas modernistas europeias, então, trouxeram noções novas, como a do Surrealismo (isto é, algo diferente do Realismo, mas sem abdicar totalmente da realidade), o que também foi seguido pelos modernistas da América Latina, com as devidas adaptações locais. Entre os continuadores dessa ruptura estética encontram-se escritores como Jorge Luis Borges e Murilo Rubião, que já nos anos 1940 estrearam obras que apresentavam histórias com descrições, situações ou personagens que pareciam tão reais quanto os do nosso mundo, mas que se desenvolviam naturalmente em meio a ocorrências “fantásticas” (como a imortalidade).

Textos com essa marca não são originais do Modernismo latino-americano, por terem aparecido antes na Europa, em autores como Kafka. No entanto, a América Latina iria constituir um quadro cultural especial, muito por causa de sua peculiaridade histórica. Ainda em meados do século XX, nosso continente apresentava uma condição socioeconômica periférica, mais ou menos rural, que unia na realidade cotidiana tempos remotos aos tempos mais recentes. Nossos países mantiveram, enraizado no povo, um inflado valor de verdade às superstições e às crenças religiosas, algo que as revoluções burguesas europeias já haviam abolido para as camadas mais cultas de lá [da Europa]. Como consequência, refletindo esse aspecto da nossa situação, surgiu na América Latina toda uma tendência literária que colocou em pé de igualdade as superstições populares e a realidade cotidiana. Aos olhos da visão científica racional, tratava-se de histórias ao mesmo tempo realistas e fantásticas, o que mais tarde daria origem ao epíteto de realismo fantástico, ou realismo mágico. Por causa da alta qualidade intelectual e da originalidade estética dessa literatura, bem como de sua capacidade de atrair cada vez mais leitores, configurou-se em torno dela um grande boom editorial, que em poucos anos tornou diversos autores mundialmente famosos, sobretudo da América hispânica. O nome mais conhecido desse movimento foi sem dúvida o de Gabriel García Márquez, especialmente por efeito do romance Cem anos de solidão, a um só tempo o maior best-seller dessa tendência e a obra mais aclamada da inteira literatura universal dos finais dos anos 1960. Mas vale lembrar que Gabriel García Márquez não esteve sozinho nisso, já que vários de seus contemporâneos, cultores de algum tipo de realismo fantástico, também receberam altíssimas aclamações – por exemplo, Miguel Ángel Asturias e Mario Vargas Llosa, que, assim como García Márquez, foram agraciados com o Nobel.

Seja como for, mais até que o Nobel, o que de fato importa em termos de ponderação de qualidade artística é, no fundo, a capacidade de o elemento fantástico revelar e criticar aspectos importantes da realidade social que, antes dessas obras fantásticas, passavam mais ou menos despercebidos, mesmo para pessoas cultas e inteligentes. Portanto, se um dragão aparecesse em Gabriel García Márquez, seria a fim de retratar um traço essencial da nossa realidade socioeconômica ou dos nossos costumes culturais – e justamente por isto é que não aparece nenhum dragão em Cem anos de solidão: não se trata de uma criatura importante para nós, não faz parte dos nossos mitos populares. Já em Game of thrones ou Senhor dos anéis, o dragão é mais possível, por representar as crendices da Idade Média europeia. Tais obras, porém, no essencial, não são capazes de revelar nada de muito novo (aos olhos de alguém já devidamente educado); apenas atualizam antigas aventuras medievais, com intenção mais mercadológica do que propriamente estética (em termos de seriedade artística).

Em suma, trata-se de propostas estéticas diferentes, com o chamado realismo fantástico pertencendo, via de regra, à mais alta literatura crítica ou de arte, e a dita literatura fantástica (no sentido de literatura de fantasia) sendo mais adequada para a indústria do entretenimento de massa, um ramo de pouca profundidade filosófica e parca originalidade estética, como já estudaram Adorno e muitos outros. Por tudo isso, enquanto o realismo fantástico costuma ter excelente recepção e reputação tanto entre a crítica acadêmica quanto entre o público leitor, a literatura de fantasia só pode causar impacto no público consumidor.

A segunda pergunta sobre distinção leva em conta que o realismo fantástico seria um gênero latino-americano. Sendo assim (é assim?), como se distingue aquele que é feito em outros países da América Latina do que foi produzido aqui no Brasil?

O termo realismo fantástico foi cunhado por um estudioso norte-americano que conhecia apenas a vertente dessa literatura escrita em espanhol, isto é, os autores do boom da América hispânica. Estes logo iriam se tornar mais canônicos e conhecidos do que qualquer autor brasileiro, até pela maior influência mundial do espanhol em comparação com o português. Mas, além de essa origem conceitual identificar o realismo fantástico apenas com os lados da América hispânica, não seria errado admitir que há uma particularidade no realismo fantástico desses nossos vizinhos, entre outros motivos por haver entre seus países uma realidade histórica mais comum, como a presença de avançados impérios indígenas (como os maias e os astecas) quando da chegada dos colonizadores espanhóis, a independência realizada via repúblicas e o esforço unificador de caudilhos populares, como Simón Bolívar.

O Brasil, portanto, não compartilha exatamente as mesmas raízes históricas em termos políticos e culturais; porém, no que há de essencial na macroeconomia, existem muitas similitudes entre nós e nossos vizinhos (como a colonização por uma potência ibérica e a preservação até hoje do subdesenvolvimento), e isso gerou condições socioculturais que deram base a um realismo fantástico não tão diferente daquele encontrado no aludido cânone hispano-americano. Com efeito, mesmo antes dos anos 1950, o Brasil já produzia obras que, se tivessem sido escritas em espanhol, poderiam facilmente ser consideradas pertencentes a esse realismo fantástico canônico, como Macunaíma e os contos de Murilo Rubião.

Assim, do mesmo modo que iremos encontrar acentuadas semelhanças, mas também importantes diferenças, entre a obra de cada autor específico do realismo fantástico hispano-americano, entre cada realista fantástico brasileiro e esses autores de língua espanhola também poderíamos encontrar diversas semelhanças e diferenças. Isso, no entanto, só poderia ser devidamente apontado caso a caso, com um trabalho mais minucioso de crítica comparativa entre obras individuais.

Então, em termos mais gerais, a maior diferença entre o realismo fantástico do Brasil e o do resto da América Latina é a maior fama canônica das obras escritas em espanhol, o que no fundo tem mais a ver com a penetração de mercado do que com a qualidade inerente das obras brasileiras em comparação com as hispano-americanas. 

Sobre o realismo fantástico no Brasil, quais autores se destacam nesse contexto e como era o ambiente que os estimulou a operar com esse gênero? É curioso, por exemplo, que Murilo Rubião e Dias Gomes (para falar um pouco dele) tenham recorrido a isso e trabalhado mais ou menos no mesmo período (Roque Santeiro é de 1965, data de Os dragões e outros contos etc.).

A rigor, no Brasil, algum tipo de realismo fantástico começa a existir no Romantismo, em poemas indianistas de Gonçalves Dias, embora de modo esporádico. Já a construção mais estruturada dessa tendência (ao mesmo tempo realista e fantástica) se inicia aqui com Machado de Assis, a princípio em contos e depois com a revolucionária invenção do defunto autor Brás Cubas. No começo do século XX, alguns naturalistas voltaram ao fantástico romântico, mas somente os modernistas, sobretudo Mário de Andrade, continuaram a produzir obras fantásticas de essência realista. Porém, o que se convencionou mundialmente chamar de realismo fantástico, aquele inspirado nos autores do boom hispano-americano, estreou no Brasil apenas com Murilo Rubião, que já nos anos 1940 passou a escrever pequenos contos insólitos que lembravam a lógica do absurdo presente em Kafka, o que também é uma presença destacada nos escritores da América hispânica, como Jorge Luis Borges. Nesse sentido mais convencional de realismo fantástico, além de Murilo Rubião, teríamos nomes como J. J. Veiga, João Guimarães Rosa, José Cândido de Carvalho, Jorge Amado, Ariano Suassuna, Érico Veríssimo e Moacyr Scliar – isso para citar somente os principais, isto é, os que foram mais aclamados por premiações e pela crítica especializada, além de serem dotados de algum reconhecimento popular.

Dias Gomes poderia, de certa forma, ser incluído nessa lista, mas com a ponderação de que seus maiores feitos na linha do fantástico ocorreram por meio da dramaturgia de telenovela, o que implica uma contradição. Se por um lado a telenovela possibilita um reconhecimento mais imediato de público, pela centralidade da televisão na indústria do entretenimento de massas, por outro lado esse gênero de dramaturgia acaba redundando em uma menor aclamação da crítica acadêmica e das mais tradicionais premiações literárias (principalmente em relação aos demais autores citados ou aos congêneres da América hispânica).

De todo modo, o que estimulou tais escritores a refletir a realidade com o fantástico varia muito de autor para autor. Na maioria dos casos, é possível perceber a influência direta de grandes autores que se enveredaram pela literatura fantástica, como Cervantes, Goethe, Gogol, Kafka e Thomas Mann. Em outros casos, além dessa influência dos clássicos universais, há ao mesmo tempo a ressonância dos textos religiosos e da própria fé ou superstição, como ocorreu com João Guimarães Rosa. E também não podemos descartar, por causa do boom editorial hispano-americano, um senso de oportunidade mercadológica, já que, a partir de meados de 1950, as camadas cultas do mundo inteiro passaram a ler com voracidade o realismo fantástico produzido em nosso continente.

Não obstante, o ideal do ponto de vista artístico era que o escritor não escolhesse o fantástico por mero arbítrio subjetivo, mas, sim, por uma necessidade estética essencial: pelo fato de enxergar no fantástico o único meio de configurar uma obra de arte mais profunda e reveladora da realidade. Esse ideal também se pode observar em diversas obras de escritores brasileiros.

Em suma, os principais nomes do realismo fantástico no Brasil são vários, assim como é variado o que levou os escritores a produzir esse tipo de literatura.

Você destaca a relação entre realismo fantástico e política. Isso é algo que ocorre com Dias Gomes (para citá-lo outra vez), que foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tratou de temas sociais etc. García Márquez também abrange a política no seu trabalho. Gostaria que comentasse essa imbricação.

Nos países da América Latina, onde o subdesenvolvimento gera condições socioeconômicas frágeis, é quase inevitável uma vinculação da arte autêntica com as ideologias partidárias, dada a importância da conjuntura política para os destinos individuais da maioria dos cidadãos. Na vertente do realismo fantástico, essa vinculação também ocorre com frequência. Por vezes, o uso do fantástico deixa menos explícito o tema de fundo político; no entanto, outras vezes, quando o escritor é mais engajado, o elemento fantástico aparece justamente para ressaltar os problemas sociais do país – cuja interpretação, via de regra, depende de determinada visão ideológica (mais ou menos socialista, comunista, liberal etc.). Em outras palavras, o fantástico pode traduzir em formas mais plásticas e evidentes as estruturas que determinam a vida do povo, trazendo à tona todo o espectro de questões sociais, das mais óbvias às mais ocultas.

Por causa de tudo isso, não é nada raro que haja uma estreita ligação entre os artistas e escritores e os demais intelectuais e políticos que buscam retratar e interpretar a nação. Os partidos comunistas, em especial, durante muitas décadas do século XX foram em vários países um dos centros mais influentes de pensamento. Era com os camaradas de partido que os artistas e intelectuais se reuniam para investigar o passado e propor horizontes para os destinos de seus respectivos países. No Brasil não foi diferente, e qualquer tentativa de leitura sobre os rumos brasileiros, desde que realizada de forma intelectualmente séria e honesta, passava pela discussão das teses propostas pelo antigo PCB (o chamado “partidão”), seja para acatar, seja para discordar.

Além dessa premência intelectual dos partidos comunistas no século XX, era natural que um autor ou artista preocupado com o povo do seu país acabasse colocando para si mesmo, de modo sério, a questão do socialismo, ainda mais em um país perpassado por desigualdades tão brutais quanto o Brasil. E, após tentar entender algo das premissas socialistas, o artista ou o intelectual decidiriam se deveriam ou não se filiar a algum partido, sendo os partidos comunistas um destino natural, dada a sua luta secular contra as injustiças sociais.

Inevitavelmente, a literatura produzida por autores que decidiram se filiar acabaria de um jeito ou de outro sendo influenciada por essa filiação – ou ao menos pelas discussões em torno das principais teses marxistas ou das vertentes anarquistas, socialistas etc.

Como o caráter mágico, fantástico, desvela? Sei que a tese trata disso, mas, se puder nos dar um panorama… A questão pode também ser posta assim: o que o realismo fantástico alcança que o realismo ele mesmo não consegue?

Essa é uma questão complexa, o que, de fato, exige mais trabalhos minuciosos, como uma tese de doutorado, porque cada caso é um caso. Em suma, não existe fórmula simples para explicar por que o fantástico pode chegar mais longe do que um realismo autêntico. Afinal de contas, nem sempre o fantástico é realista, e muitos autores profundamente realistas jamais sentiram a necessidade de usar o fantástico (caso do Tolstói).

Como panorama geral, podemos dizer que o fantástico sério tem uma aptidão para revelar a realidade porque, na realidade capitalista, a essência é ocultada das aparências, e o fenômeno da alienação provoca, no cotidiano das pessoas, efeitos mais absurdos e fantásticos do que se uma mesa começasse a se mexer possuída por um espírito (para usar o exemplo que o próprio Marx apresenta em O capital, ao conceituar o que é o “fetichismo da mercadoria” – tirando a palavra fetiche de feitiço, aliás). Assim, para retratar certas situações, o fantástico se mostra bastante adequado e realista. No entanto, se é de fato mais apropriado e profundo do que um realismo de tipo normal, aí depende de cada obra específica.

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Televisão e novelas

Dias Gomes criou novelas com elementos e personagens que marcaram não só a memória do público, mas a história da televisão brasileira. O autor fez parte de uma geração de dramaturgos que propuseram um teatro político e popular, mas que se deparava sempre com uma plateia de elite. Segundo o próprio Dias, essa contradição se desfez na televisão, porque foi na TV que ele viu a representação de todas as classes sociais e camadas culturais. Foi com a irreverência, o absurdo, o fantástico e a enorme noção das condições sociais do Brasil que o dramaturgo criou sucessos como O bem-amado, Saramandaia e Roque Santeiro.

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"O Odorico e o Zeca Diabo, por exemplo, têm vida própria. São incontroláveis. Eu apenas transcrevo o que eles me mandam fazer, mais nada. Eles têm uma absoluta autonomia, são personagens que, devido justamente às grandes interpretações dos atores, têm vida própria. Não só esses dois, como outros também, Dirceu Borboleta, as irmãs Cajazeiras [...]. Durante tantos anos no ar, fazendo parte praticamente de uma população, eles já são criaturas humanas reais."

Dias Gomes [entrevista à TV Cultura, 1983]

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O bem-amado: primeira novela em cores e alvo da censura

O bem-amado, trama que foi adaptada do teatro para a televisão em 1973, entrou para a história da teledramaturgia brasileira por ser a primeira novela em cores do Brasil e a primeira a ser exportada para diversos países. A identificação do público com o prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, foi imediata, tanto que seus discursos e neologismos ecoam até hoje.

Outros personagens como Zeca Diabo, Zelão das Asas, irmãs Cajazeiras e Dirceu Borboleta também permanecem atuais na memória dos brasileiros, surpreendendo a profecia do próprio Dias Gomes, que dizia que a televisão, em geral, tem um grande poder de impacto imediato, mas não fica na memória. Tamanho sucesso, porém, não fez a obra passar ilesa pela censura federal, sendo necessário, para que fossem ao ar, ter os textos aprovados e realizar edições mesmo após as gravações.

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Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) no seriado O bem-amado (Foto: TV Globo/Nelson di Rago)

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Sátira à exploração política e comercial da fé em "Roque Santeiro"

O mesmo aconteceu com a primeira versão de Roque Santeiro, umas das mais populares telenovelas do dramaturgo, que nasceu da adaptação da peça O berço do herói. A comédia política, que fala sobre democracia e hipocrisia, foi adaptada para a televisão em 1975. Com cerca de 30 capítulos já gravados, também foi alvo da censura e impedida de ser exibida na Rede Globo.

Roque Santeiro foi ao ar somente em 1985, com coautoria de Aguinaldo Silva, regravações e outro elenco. A novela bateu 100 pontos de audiência e imortalizou personagens como Sinhozinho Malta, Viúva Porcina, Professor Astromar e Mocinha. Críticas ao coronelismo, ao patriotismo, ao falso moralismo e à religiosidade da sociedade burguesa brasileira, além da sátira à exploração política e comercial da fé popular, estão entre os temas discutidos na obra, que entrou para a lista de grandes sucessos de Dias Gomes.

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Roque Santeiro (José Wilker) e Viúva Porcina (Regina Duarte) na novela Roque Santeiro (1985/1986) (Foto: TV Globo/Nelson di Rago)

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Saramandaia e o realismo fantástico

Em Saramandaia, Dias misturou o real com o absurdo na fictícia cidade de Bole Bole. A obra apresenta personagens com características peculiares, entre eles um professor que se transforma em lobisomem, um homem com asas e uma mulher que explode de tanto comer. A variedade dos tipos exóticos representados na novela permitiu ao autor tratar de questões sociais, políticas e culturais da sociedade brasileira.

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Dona Redonda (Wilza Carla), que explode de tanto comer, na novela Saramandaia (1976) (Foto: TV Globo/Acervo)

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Personagens que expressam o Brasil

Mesmo aqueles que nem sequer haviam nascido na época de novelas da TV, como O bem-amado, Roque Santeiro e Saramandaia, trazem em seu DNA a memória de Odorico Paraguaçu e seu palavreado absurdamente rebuscado; o barulhinho inconfundível, parecido ao de uma cascavel, que faziam as pulseiras e o relógio de Sinhozinho Malta; as asas de João Gibão; e o jeito espalhafatoso da Viúva Porcina, entre outros. Dias Gomes, na verdade, entendeu o Brasil e foi com base nesse entendimento que fez personagens capazes de cativar gerações de brasileiros.

Neste vídeo, o cenógrafo José Dias, o cineasta Cacá Diegues, o diretor teatral Antonio Mercado, o ator Rui Rezende, a escritora Nélida Piñon e o ator Lima Duarte comentam algumas das criações emblemáticas de Dias Gomes – como Roque Santeiro e Zeca Diabo – e destacam aspectos potentes de sua escrita.

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"São muitos, a população que criastes, Sr. Dias Gomes, gente simples e sofrida. Deles é esta festa, bem a merecem. Axé, Sr. Dias Gomes, eu vos digo em língua da Bahia, axé."

Jorge Amado [discurso de recepção de Dias Gomes na Academia Brasileira de Letras, 1991 (leia completo)]

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Para além do autor: Dias Gomes e seus personagens | Publicação

Esta publicação dá vida a famosos personagens do dramaturgo, como Odorico Paraguaçu, Zé do Burro, Viúva Porcina, Branca Dias, Dulcineia Cajazeira e professor Astromar Junqueira. Para tal, atores e atrizes foram convidados a personificar as criações em suas próprias versões e trazê-los para o presente. O resultado traz diálogos fantasiosos cujo conteúdo pode até parecer verdade, mas é mera ficção.

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Encontro de gerações

por Sergio Guizé

Foi logo na infância meu primeiro contato com a obra de Dias Gomes. A novela era tão importante na época e tão presente na vida dos brasileiros que eu, uma criança, jurava que vivia em Asa Branca e que nosso herói era Roque Santeiro. 

Depois, em 1998, quando comecei a fazer teatro em Santo André (SP), assisti à peça O santo inquérito. Ela é de 1966 e até hoje continua sendo montada por levantar discussões de temas tão atuais – como o revisionismo, que busca relativizar os horrores da ditadura brasileira –, mesmo sendo uma peça que retrata um tribunal de Inquisição português do século XVI. Esse é um dos artifícios do autor para se livrar da censura e criar tramas de cunho político, usando o lúdico e o humor como armas contra a ignorância dos opressores. 

Isso é o que eu viria a conhecer depois por realismo fantástico – com origem alemã, utilizado na América Latina como genuíno movimento literário, mas também para denunciar as atrocidades cometidas pelo capitalismo, como a exploração do homem pelo homem e a injustiça social. Saramandaia (1976) falava bem desse universo, em que cada personagem era uma alegoria. João Gibão tinha asas, que representavam a liberdade. Dona Redonda explodiu de tanto comer, simbolizando o egoísmo e a avareza.

No nosso remake da novela, feito em 2013, tivemos o privilégio de poder contar com o uso de efeitos especiais e muita tecnologia, o que facilitou bastante o trabalho. E, lógico, não precisávamos driblar a censura. Sempre pensava: “Quero ver fazer isso na época da ditadura!”. Inclusive, na época das gravações, tive a oportunidade de ficar hospedado no mesmo hotel que Juca de Oliveira. Tentei por dois dias, entre o café da manhã e o jantar, criar coragem quando o encontrava para falar com ele, mas minha timidez não me deixou dizer nada. Até que, no terceiro dia, ele mesmo chegou até mim e disse: “Sei que quer falar comigo”. Aproveitando logo a deixa, perguntei: “Como foi fazer realismo fantástico no Brasil da ditadura militar através de um personagem que tem asas?”. Ele me respondeu: “Não importa se é realismo fantástico ou mágico, a época em que vivíamos nem se o personagem tem asa ou rabo. Tem de fazer de verdade e entregar o que está sentindo. O ator só precisa fazer de verdade”.

 

Sergio Guizé é ator. Fez parte do elenco de telenovelas como O outro lado do paraíso (2017-2018) e Êta mundo bom! (2016). Na segunda versão de Saramandaia (2013), fez o papel de João Gibão.

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Discurso do Professor Astromar por Rui Rezende

Neste vídeo, o ator Rui Rezende volta a interpretar um dos personagens mais marcantes de sua carreira: o Professor Astromar Junqueira, da novela Roque Santeiro (1985). Na obra, baseada na peça O berço do herói, escrita por Dias Gomes em 1965, o intelectual vivido pelo artista costumava declamar discursos memoráveis para o povo de Asa Branca.

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Personagens inesquecíveis

Zé do Burro

“Padre, andei sete léguas pra vir até aqui! Deus é testemunha. Ainda não comi hoje e não vou comer até que abra a porta.”

Odorico Paraguaçu

“É uma alegria poder anunciar que prafrentemente vocês já poderão morrer descansados, tranquilos e desconstrangidos, na certeza de que vão ser sepultados aqui mesmo, nesta terra morna e cheirosa de Sucupira.”

Branca Dias

“Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo... Eles não dizem... Só acusam, acusam!”

Viúva Porcina

“E foi então que, naquele dia, estava eu na beira do rio lavando minhas roupas de viúva quando de repente meu ex-marido, o falecido Roque Santeiro, me apareceu, caminhando sobre as águas com uma luz vermelha e brilhante a lhe sair do peito, e me disse: sobre essa pedra erguerás uma catedral.”

Professor Astromar

“Coragem esta, aqui representada em efígie pelo mais ilustre varão de todos os teus berços, Roque Santeiro!”

Dulcineia Cajazeira

“De uns dias para cá, anda esquisito, desconfiado, deu para andar me seguindo... Nem tem ido caçar borboletas!”

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Trilha sonora de “Roque Santeiro” marcou época e fez jus ao sucesso da novela

por Juliana Ribeiro

As trilhas sonoras de novelas marcaram época no Brasil e ganharam destaque para além das telas. Bastava ouvir uma música para, de imediato, lembrar da abertura de uma trama, do casal principal ou daquele personagem mais marcante. Um dos grandes responsáveis por todo esse sucesso é Mariozinho Rocha, produtor e diretor de produção musical da Globo por mais de 30 anos.

Ele, que sempre trabalhou com música, aceitou a missão a convite do diretor Daniel Filho. Na época, dividia-se entre o trabalho na produtora Polygram e o “frila” na emissora carioca. Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes e Agnaldo Silva, foi a primeira novela com trilha feita por Rocha. “Felizmente, meu primeiro trabalho na emissora foi coroado de um supersucesso. Então, para mim, foi muito marcante”, diz.

Segundo Mariozinho, a trilha sonora de Roque Santeiro foi a terceira mais vendida (de novelas), somando cerca de 1,2 milhão de cópias e ficando atrás apenas de O rei do gado (1996), com 1,6 milhão, e Tieta (1989), que ultrapassou 1,5 milhão em vendas. No disco da trama de Dias Gomes entraram músicas interpretadas por artistas como Elba Ramalho, Sá e Guarabyra, Wando e Roupa Nova, que embalaram as histórias dos moradores da fictícia cidade de Asa Branca.

“Uma coisa engraçada é que o Roupa Nova não queria gravar ‘Dona’, mas, como éramos muito amigos – até o nome fui eu quem dei ao grupo –, disseram: ‘Vamos fazer esse favor para você, a gente não está gostando muito, não, mas a gente não pode negar esse favor para você’. E hoje é um sucesso extraordinário! Duvido que eles façam shows sem cantar essa música”, revela.

Neste bate-papo exclusivo com o Itaú Cultural (IC), Mariozinho Rocha conta como foram selecionadas as canções de Roque Santeiro e relembra os personagens e as histórias curiosas dos bastidores. Confira na íntegra.

Mariozinho, sabemos que você foi um dos responsáveis pela trilha sonora de várias novelas da TV Globo. Como foi o início de sua carreira nessa área?

Na verdade, sempre trabalhei com música. Na época eu era produtor da Polygram, se não me engano. Tinha saído da EMI, fui para a Polygram e aí recebi um convite do Daniel Filho, que perguntou se eu queria fazer a trilha sonora de uma novela, e falei “Tudo bem”. Não era uma coisa que atrapalhava – pensei que não atrapalhava – o meu dia a dia na gravadora, então topei. Fui lá, conversei com o Daniel, depois com o Paulo Ubiratan, depois com o Boni. Eu era um freelancer, não era contratado fixo da Globo, fui contratado para fazer apenas aquela novela [Roque Santeiro]. Alguns anos depois, o Boni me chamou para assumir a direção musical da TV Globo, incluindo todas as novelas, minisséries, vinhetas, tudo.

A trilha sonora de Roque Santeiro (1985) foi um grande sucesso. Essa novela foi marcante para você, de alguma forma?

Sem dúvida! Roque Santeiro foi muito marcante. Primeiro pelo fato de ser a primeira novela, a primeira vez que eu estava trabalhando para a TV Globo junto com Boni, Daniel, Paulo Ubiratan – só fera! E o sucesso que a novela fez foi muito grande, assim como a trilha. Felizmente, meu primeiro trabalho na emissora foi coroado de um supersucesso. Na verdade, eu nem esperava que fosse tanto sucesso assim, mas graças a Deus deu tudo certo. Daí, acabei fazendo outras e outras, até me tornar diretor musical da Globo, a convite do Boni. Então, para mim, foi muito marcante, sem dúvida.

Como acontecia a seleção do repertório de uma novela? As músicas podiam ser encomendadas especialmente para determinado personagem, por exemplo?

Uma vez definidos a novela, o diretor e o produtor, eu recebia a sinopse, que era, de certa forma, uma coisa fria. Quando recebi a de Roque Santeiro, eu ainda não tinha falado com o Paulo Ubiratan, que era o diretor, e estava escrito assim: Viúva Porcina, mulher determinada e coisa e tal. Imaginei uma bruxa toda de preto, com guarda-chuva e véu! Fui conversar com o Paulo para saber destrinchar cada personagem e buscar a música que se adequasse mais a cada um deles, e o Paulo explicou: “Não, Mariozinho. Primeiro que ela não é viúva, é uma mentira, uma mentira enorme! E ela é over, não tem nada de viúva tradicional, de preto; pelo contrário, ela usa uns laçarotes, é uma mulher muito poderosa, determinada, então tem de ser uma música que acompanhe esse temperamento dela”.

No caso do Professor Astromar, que era apaixonado pela Mocinha – personagem de Lucinha Lins – e que tinha um negócio de lobisomem, eu me lembrei logo de Zé Ramalho. Falei: “Zé, queria que você fizesse uma música assim, assim e assim, falando desse negócio, mas queria que você cantasse daquele teu jeito que, de vez em quando, para e fala”. O Zé entendeu muito bem a proposta, tanto que, no dia em que ele foi gravar, chegou todo de preto – também não precisava exagerar [risos]. Então, cada personagem era destrinchado com o diretor, pelo menos com Roque Santeiro foi assim. Não era com o autor; o meu contato era com o Paulo Ubiratan, e aí eu ia buscando.

Quando eu encontrava a música pronta, maravilha! Foi o caso da “De volta para o aconchego”, de Elba Ramalho. Eu, casualmente, passei na Polygram, no estúdio, e o Dori Caymmi estava botando o violão na música em que ela já tinha posto voz e tudo, com o Marcos Mazzola, que era o produtor dela na época. Quando ouvi, disse: “Meu Deus, isso é a chegada do Roque Santeiro, a volta dele. Me arruma, pelo amor de Deus, uma cópia disso aí!”. Na época, era fita cassete; me arrumaram a fita e mostrei ao Paulo, que adorou.

Encomendei a abertura ao Morais Moreira, porque naquela época estava difícil achar tipos de música que coubessem no universo daquela novela especificamente. Então, a maior parte foi encomendada, acho que talvez uma ou duas já estavam gravadas e se adaptavam à novela. É por aí, mais ou menos. Enfim, as coisas foram sendo feitas assim, com um pouco de sorte também, sem dúvida.

Três sucessos da trilha sonora de Roque Santeiro são de Sá e Guarabyra, incluindo “ABC do Santeiro (Roque Santeiro)” eDona”, gravada pelo Roupa Nova, que se tornaram músicas atemporais. Existe alguma história por trás dessas escolhas?

Roque Santeiro era uma novela meio atemporal, um microcosmo brasileiro. Era em uma cidade do interior, de pessoal pagando promessa. Daí me lembrei de Sá e Guarabyra. O Sá é um tijucano, não é aquele cara cosmopolita, e o Guarabyra é de Bom Jesus da Lapa (BA), uma cidade de peregrinos que era tudo: tinha avião, tinha carro, mas também tinha aquela coisa de procissão, da veneração, enfim… Achei algo que eu procurava em Sá e Guarabyra, tanto que eles têm três músicas na novela, sendo duas cantadas por eles, que são “Verdades e mentiras” e a própria “ABC do Santeiro (Roque Santeiro)”, e “Dona”, gravada pelo Roupa Nova – magistralmente, por sinal.

E uma coisa engraçada: o Roupa Nova não queria gravar “Dona”, mas, como éramos muito amigos – até o nome fui eu quem dei ao grupo –, disseram: “Vamos fazer esse favor para você, a gente não está gostando muito, não, mas a gente não pode negar esse favor para você”. Hoje é um sucesso extraordinário, e duvido que eles façam shows sem cantar essa música.

Existe alguma curiosidade de bastidores da novela ou história que o público nem imagina que tenha acontecido?

Vou contar uma história sobre aquele chocalho do Sinhozinho Malta. Na verdade, temos de dar crédito também a outras pessoas, como o Aroldo Barros, sonoplasta excelente, uma pessoa admirável e muito competente. Na verdade, aquela brincadeira com o chocalho do Sinhozinho Malta surgiu de um problema de áudio. Ele usava muitas pulseiras, e acho que eles trabalhavam com microfone de lapela, escondido ali, e, quando o Sinhozinho Malta chacoalhava o braço, com o “Tô certo ou tô errado?” – que era o bordão dele –, aquilo dava uma interferência no áudio. Daí o sonoplasta falou: “Mariozinho, estamos com um problema aqui, vou ter de tirar o áudio nessa hora ou diminuir bastante, tentar limpar, cortar os agudos ou a gente vai ter de botar alguma coisa em cima disso aí para poder abafar ou, então, o Paulo regravar”.

Como é que eu iria chegar para o Paulo Ubiratan ou qualquer diretor e dizer: “Olha, está tendo um problema de áudio por causa das pulseiras, então tem de regravar a cena”. Eles iriam me mandar para aquele lugar, e com toda a razão! Eu disse para o Aroldo que a gente tinha de dar um jeito. Aí, ele achou no arquivo de som um chocalho de cascavel, som de maracá. Quando ouvi, eu disse: “Perfeito, vamos em frente, mas não vamos falar com ninguém. Assim some com o defeito, e vou falar para o Paulo não chacoalhar mais as pulseiras ou evitar fazer perto do microfone”. E assim ficou sendo a marca registrada do Sinhozinho Malta.

Engraçado que, depois, vários artistas começaram [com isso]. O Zé das Medalhas fazia um gesto com a cabeça, e a gente botou uma abertura de porta toda vez que ele fazia aquele cacoete, e isso pegou também, não tanto quanto o maracá do Sinhozinho Malta, mas pegou. A gente percebeu que alguns atores, não vou citar nomes, começaram a fazer algumas coisinhas para ver se marcavam também, mas aí já era demais, já tinha dois marcantes. Cada um fazia uma gracinha com a cabeça ou com o pé, sei lá, para ver se a gente engolia essa história e botava alguma gracinha nisso, mas não rolou. Foi só mesmo a do Sinhozinho Malta, que foi para consertar um erro, um defeito, e a do Zé das Medalhas.

Nas novelas, geralmente eram lançados dois discos: um nacional e outro internacional, certo? Mas com Roque Santeiro foi diferente, sendo disponibilizados para o público dois discos nacionais, fato inédito até então. Por que isso aconteceu?

A decisão foi, de certa forma, óbvia. Porque naquela história não caberia nada internacional, ficaria muito forçado. Poderia ser se fosse uma música de cena, alguém dançando, lembrando de alguma coisa, mas seria uma música, duas no máximo, talvez mais instrumental. Foi a primeira vez que saíram duas trilhas nacionais, porque não tinha cabimento ali fazer uma trilha internacional. Então, quando falei isso para a direção, todos, obviamente, toparam na hora, e assim foi feito. Mais tarde, com algumas novelas, como Tieta e O Rei do gado, também não caberia nada internacional, por ser de um universo muito brasileiro. Por isso, a decisão foi tomada por razões óbvias.

Quais canções você considera de maior destaque e que foram mais marcantes na trilha de Roque Santeiro?

É um pouco difícil destacar – primeiro que destacar uma só seria injusto. A própria música “ABC do Santeiro”, de Sá e Guarabyra, foi muito marcante. A do Zé Ramalho também foi muito marcante. “Dona”, sem dúvida, tanto que até hoje toca por aí. A da Elba, “De volta para o aconchego”, que marca a chegada do Roque na cidade, também. A do Sinhozinho Malta, que é de Dominguinhos com Chico Buarque, “Bom demais”. A música do Wando, “Chora coração”, que era o tema da Mocinha, personagem de Lucinha Lins. Eu destacaria essas, sem querer cometer nenhuma injustiça, porque todas serviram seu propósito. Alguns personagens ficaram mais fortes – isso é natural em uma novela, em uma história –, uns crescem, outros se mantêm, e outros, às vezes, até desaparecem.

Essa trilha sonora ficou entre as mais vendidas de novelas?

Foi, sem dúvida, uma novela de grande vendagem, mas não a de maior vendagem. A maior foi O rei do gado, depois foi Tieta e a terceira Roque Santeiro, mas todas passaram de 1 milhão. Roque Santeiro, se não me engano, vendeu mais de 1,2 milhão de cópias. Época boa! Se fosse lançar hoje, iria vender duas, mas o streaming está aí para isso.

As músicas que tocavam nas novelas foram bem marcantes para o público. Tanto que basta tocar uma canção ligada a algum personagem para ativar a memória afetiva de imediato. Você considera que as trilhas sonoras foram importantes para a música nacional?

Não há dúvida de que as trilhas sonoras das novelas da Globo, especificamente, foram muito importantes para a música brasileira e até para a internacional, porque as trilhas internacionais vendiam muito, quase sempre mais que as nacionais, porque, na verdade, eram hit parade. Imagine se uma rádio, naquela época, tocaria alguma coisa brasileira espontaneamente? Claro que não! Era muito difícil. Então, teve um papel importante. Hoje não acredito mais que esse papel subsista, porque não só as novelas perderam um pouco da força, mas, consequentemente, as trilhas também. Não sei como é que são feitas hoje e não estou querendo aqui criticar ou me vangloriar de alguma coisa; apenas eu estava no lugar certo na hora certa. E a coisa deu certo.

 

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