“A gente não leva o boneco, é o boneco que nos leva. Então até o próprio nome do grupo Giramundo é isto: nós somos condenados a girar o mundo, porque os bonecos nos carregam.”
Álvaro Apocalypse
SEM MAIORES PRETENSÕES
As primeiras experiências foram realizadas em Lagoa Santa, pequena cidade próxima a Belo Horizonte. Em sua casa de campo, o casal Terezinha e Álvaro montou uma pequena oficina com recursos mínimos: os materiais eram basicamente martelo, serrote, arame, prego, papel, cola, madeira e retalhos de tecido, com os quais o grupo foi aos poucos conformando alguns bonecos, ainda toscos, porém cheios de encanto. Trabalhavam apenas aos sábados e domingos, uma vez que as atividades na Escola de Belas Artes lhes tomavam toda a semana. Mas, em breve, uma primeira experiência teatral com os bonecos já podia ser feita para um público muito especial: as filhas, os sobrinhos, os amigos – uma boa plateia –, habituados às animadas reuniões de fim de semana, na casa de Lagoa Santa. “Não alimentávamos maiores pretensões” – afirma Álvaro Apocalypse, relembrando aqueles idos de 1970 – “queríamos apenas divertir a meninada, com uma brincadeira diferente. Mas o sucesso foi imenso, e a novidade foi passada de boca em boca . E a cidade toda queria ver.”
Júlio Varella, empresário e produtor do Festival de Inverno da UFMG, encantado com o trabalho, sugeriu que produzissem um espetáculo infantil para apresentação no Teatro Marília, de Belo Horizonte, do qual era, à época, administrador. Aos poucos a ideia foi entusiasmando todos e, em breve, já tinham um projeto em discussão: montar A Bela Adormecida. Esse maravilhoso conto de Perrault oferecia todos os ingredientes mágicos, sedutores, para o voo da imaginação e da fantasia, possíveis a um espetáculo com bonecos e que ainda hoje encanta o público infantil e mesmo o adulto.
Naquela improvisada oficina, criam, então, o primeiro boneco, originalmente uma fada que, mais tarde, recebeu bigodes e armadura, subindo ao palco no dia 5 de maio de 1971 como guarda do castelo da peça A Bela Adormecida, encenada no Teatro Marília, em Belo Horizonte. Nascia o Giramundo, de forma modesta, mas com grande entusiasmo e o aplauso do público. Eram bonecos bastante toscos, do gênero vara, montados sobre cabos de vassoura e com articulações simplíssimas. Mas, como aferiu Cristina Ávila, já usavam o texto “explorando ao máximo a inteligência e a lógica infantis, muitas vezes menosprezadas com textos adaptados, de baixíssima qualidade pela distorcida intenção de torná-los acessíveis”.
LOUCAS AVENTURAS NO REINO NEGRO
O sucesso de A Bela Adormecida junto ao público confirmou o acerto de opções técnicas e conceituais do Giramundo, no direcionamento de suas atividades criativas com o boneco. Os experimentos iniciais sinalizaram as possibilidades de movimento e manipulação do boneco de vara, muito mais amplas do que o boneco de luva, o fantoche, praticado largamente nas escolas, com sentido didático, e popularizado pelo teatro de feira. Para o Giramundo, o boneco de vara pareceu mais adequado às suas perspectivas de criação por aceitar grandes estaturas e permitir variadas caracterizações, do personagem mais solene ao caricato, além de uma manipulação mais ágil e vocabulário gestual bem preciso.
O segundo espetáculo – As Aventuras no Reino Negro – avançou alguns passos em direção a melhores soluções técnicas e expressivas da manipulação e da produção do espetáculo como um todo. O texto de Álvaro Apocalypse foi escrito exatamente com intenção de explorar certas expressões específicas do boneco. A narrativa trata de questões cruciais – dentre elas, a questão ecológica, então na ordem do dia, com a realização da conferência de Estocolmo –, apresentando a luta do bem contra o mal numa perspectiva menos maniqueísta, mais inteligente, mantendo as tensões do conflito como linha condutora da trama, cujos exageros permitidos pelo gênero contribuíam para maior fluência e melhor fruição da história como espetáculo. Essa cuidadosa produção contou com a colaboração de grandes atores do teatro mineiro para a gravação do texto: Arildo Barros, Jota D’Ângelo, Mamélia Dorneles, Regina Reis e Joaquim Costa . O músico José Adolfo Moura, que ao longo da história do Giramundo reaparecerá com outras fundamentais contribuições, criou os efeitos especiais e o tema musical. Mais uma vez, o Giramundo recebia os aplausos de plateias de todas as idades.