“Vinte anos de trabalho, estudos, observações, pesquisas, experiências. Chegamos a compreender o que seja um espetáculo ao ponto de podermos propor novos espetáculos, novas maneiras de fazer o espetáculo. Mas o teatro é muito complexo; para harmonizar tudo isso,nós chegamos ao ponto de poder privilegiar um determinado aspecto em detrimento de outro, para criar uma determinada expressão. Mas gastamos 20 anos para chegar a dominar a linguagem complexa do boneco, como teatro-total, no interior do qual se articulam tantas expressões – da dramaturgia, da literatura, da música, das artes plásticas, do movimento – e fazer tudo se harmonizar, resultando numa síntese, na unidade do espetáculo.”
Álvaro Apocalypse
GIZ – TEATRO BRANCO OU ANTITEATRO
Uma conquista significativa foi o entendimento e o domínio da questão do espaço no teatro. Nota-se que, até hoje, a maioria dos grupos não tem nenhuma ideia da importância do espaço, da composição. Nesse sentido, o Giramundo pôde avançar com segurança: formado por artistas plásticos, o grupo já trazia o conhecimento de todas as questões de espaço, da estrutura de composição (como de resto, as questões de ritmo, luz, cor, etc.), o que possibilitou grandes avanços, conceituais e técnicos, do espetáculo enquanto visualidade.
Analisa Terezinha Veloso:
Começamos com um castelinho, a tenda tradicional de A Bela Adormecida, depois, fizemos um furo e pusemos a cabeça para fora, com o Saci Pererê; em seguida, saímos lá de dentro, viemos cá para a frente, mantendo a tenda atrás; abrimos a cortina e usamos a parte debaixo do palco (Baú). Mais tarde, retiramos a tenda e saímos todos, gente e bonecos (El Retablo de Maese Pedro).
Acrescenta Álvaro Apocalypse:
Trabalhamos assim, muito tempo. Foi difícil assimilar estas mudanças, são anos, inclusive para iluminar. Já em El Retablo de Maese Pedro, tínhamos o palco, a janela de baixo e os cenários laterais, pela primeira vez chegamos até a frente no proscênio, quase junto do público, nós víamos as pessoas, podíamos sentir sua respiração, o brilho dos olhos, mas, como estávamos na sombra, elas não nos viam.
A peça Cobra Norato trouxe experiências novas, em todos os sentidos: o manipulador andando no palco, as figuras flutuando no espaço negro, a combinação de várias técnicas construtivas e de manipulação. A montagem de As Relações Naturais também exigiu novas soluções espaciais. O Guarani começa com o palco vazio, aparecendo os elementos; o cenário vai sendo montado pelos manipuladores, à medida que se desenvolvem as cenas.
Trabalhamos muito tempo de uma forma linear; o público à nossa frente e nós deslizando da esquerda para a direita. Alguns momentos recuamos, como no Auto das Pastorinhas, por se tratar de um espetáculo fundado na expressão popular e na tradição. A gente avança, adquire conhecimentos, mas ao mesmo tempo sente uma nostalgia tremenda daquele bonequinho encantador que era levado dentro da mala. Tiradentes, de 1992, foi pura nostalgia, paixão pelo boneco.
Em 1988, Álvaro Apocalypse sentiu que era chegada a hora de promover uma nova virada, uma revolução decisiva, questionando, inclusive, o próprio caminho que o Giramundo vinha, até então, trilhando. Isso seria possível com a oficina proposta para o Festival de Inverno da UFMG, que, naquele ano, buscava uma nova afirmação ao ser realizado em Poços de Caldas, em momento de grande ebulição criativa.
Ao embarcar para a cidade, conta Álvaro Apocalypse que nem sabia ao certo o que iria fazer, havendo apenas uma certeza: seria o contrário do peso de O Guarani, diferente de tudo que até então haviam feito:
Resolvemos fazer uma descontração, uma brincadeira. Simplesmente eu fui com a cara e a coragem para Poços de Caldas, com a equipe e o equipamento, sem a menor ideia do que faríamos. Fiz uma série de croquis ligeiros, de imagens absolutamente aleatórias, não tinha nada a ver e passei a trabalhar alguns conceitos, alguns deles bastante vagos, como o dos amores dos feios – porque o amor é tão bonito, tão bom que só acontece com gente linda e maravilhosa, do contrário não se consuma – então nasceu a ideia do amor de dois urubus, a sereia velha que ainda tenta seduzir; o diabo velho que instrui o diabinho; a família corroída pela rotina.
Assim foi construído Giz, um antiteatro que abolia a dramaturgia e revertia toda a experiência anterior do Giramundo: o que era preto ficou branco, o que era pequeno ficou grande, o que era escondido ficou desvelado, o que tinha sentido passou a não ter. Os bonecos imensos, feios, eram dependurados em cabides, o que limitava sua ação, num ato de crueldade para com o próprio teatro expondo ao público a sua incapacidade de agir, algo becketiano; os manipuladores, vestidos de branco, ficavam o tempo todo expostos à luz (que nos espetáculos ocultos anteriores é elemento de exclusiva propriedade do boneco/personagem), “vencendo a tensão de sentir o público lhe comendo com os olhos, porque você não está ali pra isso, quem está é a marionete, o boneco é que faz o espetáculo.”
Giz foi um belo exercício de espaço, de colocação. E avalia Álvaro Apocalypse:
Da primeira janelinha que abrimos até ocupar abertamente o espaço, mudou o comportamento do pessoal, na maneira de entrar no palco, não é a postura corporal, simplesmente, mas um modo de encarar e ocupar o espaço, de utilizar os vazios. Mas gostaria de avançar ainda mais, ocupando o espaço aéreo, que é muito bonito, mas muito caro, pois demanda uma série de procedimentos muito complexos.
O título do espetáculo só foi definido às vésperas de sua apresentação, no encerramento do Festival. O texto do programa de estreia destila ironia: “Giramundo prazerosamente apresenta Giz, uma bela e frágil história que, com um sopro, espirro ou trapo pode deixar de existir.”
Mas o estranhamento produzido por Giz representava para Álvaro Apocalypse a confirmação do acerto de suas intenções. A opinião dos segmentos mais tradicionais da crítica, daqueles que ainda desejavam ver o Giramundo refazendo as trilhas do encantamento mágico de Cobra Norato, era a de que o grupo, desprezando tantas e fantásticas conquistas, tinha partido para fazer um não-teatro. Giz não tinha estrutura dramática, ação. Os bonecos horrendos expunham as vísceras do teatro, anulando toda possibilidade de “beleza”.
O antiteatro, a metalinguagem que é Giz, realiza-se em quadros, e a sua ação se desenvolve, não como ação dramática, vivida pelos personagens, mas como ação de sua própria exposição, ideia que recebeu reforço da música composta por Eduardo Álvares e Ernst Widmer, uma estranha sonoridade articulada com as imagens dentro da estrutura espacial, como um subtexto que preenche a ausência do texto “dramático”.
Em Giz também se radicalizam o humor e a aguda ironia, eco do que se vê na obra do artista plástico Álvaro Apocalypse, principalmente nos desenhos dos anos 1960 e pinturas dos 1980, em que ele expõe por metáforas aspectos da realidade brasileira, as mazelas da sociedade e da política. O quadro final de Giz é exemplar. Uma figura monstruosamente gigantesca e grotesca – a figura de um político conhecido, desmesuradamente deformado pela gula, pela insaciabilidade de poder e comida –, vai avançando pelo palco, montado sobre miúdos e fragilizados hominhos. E expondo sua retórica e sua gula, sob os aplausos delirantes da turba visível, ele responderá (comendo tudo o que lhe está próximo) com o gesto peculiar, reafirmando seu descarado desprezo pela humanidade.
DIÁRIO DE UM TÍMIDO FORASTEIRO
Diário de um Tímido Forasteiro é uma viagem ao subconsciente, vertigem a bordo de algumas ideias nascidas do encontro do diretor do Giramundo com o teatro, reinventado pelo dadaísmo, e certas experiências surrealistas.
Tomando como inspiração para o roteiro o conto “Recado do Morro”, de Guimarães Rosa, constrói uma sucessão de quadros de tonalidade dadaísta, encapada pela ironia já presente em produções anteriores. Apropria-se de Freud, citado inclusive com a construção de sua imagem, como presença recorrente, e segue o roteiro de suas mitologias. O novo projeto quer ir mais além da exposição da estrutura do espetáculo, como foi em Giz, a intenção agora é expor a estrutura do boneco, a textura e a cor da madeira, as dobradiças, as articulações, a engrenagem interior, mas principalmente a própria especificidade do gênero.
Descarnados, os personagens apresentam suas vísceras de pregos, arames e paus; perdem os volumes e expõem seus vazios; os rostos em planos simultâneos como uma pintura cubista, o corpo como caixas neoconcretas, em que formas e palavras substituem carnes e músculos. Uma viagem exploratória ao fundo do poço e, ao mesmo tempo, à realidade do objeto como ser do espetáculo.
Ao mesmo tempo em que utiliza a técnica como um meio de obter o movimento, considera-a também expressão, porque ela em si tem a sua beleza mecânica, tal como os dadaístas “que fizeram experiências belíssimas com teatro de marionetes, buscando incorporar a técnica ao espetáculo”.
A primeira apresentação de Diário de um Tímido Forasteiro, em fins de julho de 1988, no encerramento do Festival de Inverno da UFMG, consistiu de mais uma prestação de contas da Oficina, uma vez que o espetáculo, na verdade, apenas começara a tomar corpo.
Nessa sua primeira versão, síntese das ideias surgidas no desenvolvimento dos trabalhos da oficina, carregou-se no tom crítico das estruturas política e social, a compulsão consumista, simbolicamente encarnada pela proliferação das instituições culturais, tomadas como produto. A ironia perpassa todo o texto (desconexo), acentuando a ação “dramática”.
LE JOURNAL – MÚSICA EM MOVIMENTO
Em 1992, teria sua versão definitiva, com a revisão do roteiro, modificações dos textos e de figuras, inclusão de novos “personagens”, fazendo integrar ao espetáculo os componentes do grupo O Grivo – Trio de Improvisação Contemporânea – que, manipulando suas “máquinas sonoras”, estabelecem uma articulação natural com a cena, na medida dramático/visual.
O espetáculo com o título Le Journal teve três ensaios abertos em Belo Horizonte, como preparação para sua estreia no Festival Musiques en Mouvement, em Charleville-Mézières, França, em outubro de 1992.
Tempos depois, Álvaro iria apropriar-se dessa experiência para produzir Diário de um Louco.
Seção de vídeo
A importância da música no espetáculo
DIÁRIO DE UM LOUCO – GOGOL EM CENA
Com o título O Diário monta a versão definitiva, estreada em 1997, para a qual Álvaro se apoiou mais efetivamente no texto de Gogol, ousando na concepção dos personagens e dos cenários.
Espetáculo mais emotivo e poético, as inovações propostas fazem com que o cenário funcione também como personagem, com movimentos, falas e intervenção na história. Utiliza vários tipos de estrutura e de manipulação, inclusive uma minúscula marionete movida por controle remoto.
As diferenças de escala, do monumental ao mínimo, atuando conforme necessário, enquanto projeções do inconsciente do personagem, nos diversos estágios de sua loucura progressiva, apontam para uma concepção do teatro contemporâneo, que virá a ser repetida em produções posteriores.
A música do espetáculo foi composta e gravada por Tim Rescala.
ANTOLOGIA MAMALUCA
O espetáculo Antologia Mamaluca é criado em 1994, a partir de poemas satíricos do mineiro Sebastião G. Nunes que, desde fins dos anos 1960, constrói uma obra multifacetada e única no panorama da poesia brasileira. Em seus poemas, produz a síntese do visual e do verbal, utilizando técnicas da publicidade, apropriando-se de processos e imagens recorrentes do mundo contemporâneo, do cotidiano, do jornalismo, da ilustração de almanaque, de antigas publicações científicas e de informação. A obra de Nunes é sempre carregada de alta voltagem de ironia, sarcasmo e erotismo, mantendo ao fundo a carga trágica e poética.
O autor havia reunido seus poemas híbridos nessa Antologia, na qual se evidenciava toda a sua visceral provocação, atirando com frequência sobre o boncostumismo da classe média. Na variedade de linguagem, do poético e dramático, em formato de sonetos ou de contos mínimos, de narrativas científicas, de falsas peças publicitárias, em que o elemento visual, o desenho, a fotografia em alto contraste, as apropriações de imagens vão sendo destruídas e reconstituídas sempre com uma nova significação, e quase sempre levada ao escracho provocador.
Álvaro já era, desde décadas, um entusiasmado apreciador dessa obra estranha e forte, e naquele momento ela caía como uma luva na linha de suas investigações técnico-formais e conteudísticas.
Depois de criar Relações Naturais, de Qorpo Santo, Giz e Ubu Rei, as sugestões da Antologia de Sebastião Nunes era a obra que melhor respondia à sua vontade e necessidade de expressar, com radicalidade, mas também com humor, seu sentimento do mundo, sua visão desencantada do mundo contemporâneo, tanto na sua medida macro, da grande política, das guerras e da crueldade, das insolúveis questões do poder e da ambição desmedida, como no aspecto micro e localizado em seu ambiente, a sociedade pequeno burguês, o mundo amorfo da classe média embalada nos apelos e nas insinuações subliminares da mídia, cada vez mais alienada e ao mesmo tempo tão amarrada a tradições e concepções de falsa moral.
Utiliza todo o extenso repertório técnico adquirido, como um bom teatro de variedade de feiras e circos ambulantes, com os manipuladores ocultos nas sombras, ou à vista, contracenando com os personagens, com bonecos e figuras que vão desde o teatro de sombra ao tecnológico; o teatro negro, as marionetes de fio e de luva, o pequeno palco/caixa, ao espaço livre; a conexão dos espaços simultâneos, dialógicos, nas diferentes escalas do mínimo ao monumental, numa construção de episódios que se sucedem em ritmo alucinante, sem trégua, nos quais o erotismo, o grotesco, o escatológico tornam quase irrespirável o clima em que os temas se desenvolvem. Uma trilha sonora também híbrida, acentuando as falas gravadas por atores afinados com as intenções do autor, poemas e textos falados na mesma tonalidade das imagens contribuíram para que o espetáculo causasse surpresa, espanto, desconforto ao público e à crítica, nos Festivais em que foi apresentado.
MARCAS DE UMA EVOLUÇÃO NATURAL
O Giramundo havia se afastado muito de seu caráter original, mas continuava, mesmo assim, surpreendendo como anteriormente.
Essa série de espetáculos, alguns exigindo produção complexa, dá testemunho da evolução do Giramundo, do tradicional ao contemporâneo, e comprova a capacidade do diretor em enfrentar questões técnicas e de expressão, com resultados que o colocam entre os mais profícuos e importantes criadores nessa área de teatro, no mundo.
As experimentações que, junto a Terezinha e Madu, foram sendo feitas nos processos de criação e montagem dos diferentes espetáculos, sempre respondendo às suas exigências formais, iam gradativamente oferecendo ao Giramundo uma feição que o diferenciava dos demais grupos em atividade no país e no exterior.
Com o domínio absoluto da expressão gráfica e plástica, e tendo desenvolvido com segurança todas as questões de “funcionamento” – no que diz respeito a mecânica e a expressão do movimento e da manipulação –, surpreendia com sua habilidade de tornar visíveis, pelo desenho e pela pintura, os personagens e os ambientes de cada espetáculo, passando aos técnicos de produção todos os detalhes de articulação, movimento e forma de manipulação e, mais ainda, fazendo-os capazes de imaginar e tornar realidade espetáculos que ultrapassam os conceitos tradicionais.
Álvaro Apocalypse ofereceu uma contribuição preciosa, tanto para a equipe do Giramundo como para o teatro de bonecos em geral. Os conhecimentos adquiridos ao longo de anos de pesquisa, de experimentações e trabalho, de concepção e produção, foram passados a alunos, nas oficinas do Festival de Inverno, a artistas já profissionais, em enriquecedora interlocução, em colóquios, seminários, na própria oficina de produção do Giramundo e por meio de numerosas publicações. Deu também expressiva contribuição como cenógrafo, figurinista e criador de bonecos e objetos cênicos, para vários espetáculos de importantes grupos teatrais, no Brasil e no exterior. Nesse sentido, não houve “segredos” guardados, pois todo o acervo de experiências e práticas foi sendo compartilhado com quem desejasse ingressar nesse universo mágico que é o teatro de bonecos. Vários artistas formados na “bancada” de produção do Giramundo acabaram formando seus próprios grupos e criando espetáculos independentes, mas geralmente decorrentes do aprendizado com Álvaro Apocalypse.
Os desenhos de Álvaro, detalhando os processos de confecção dos bonecos, os figurinos, os cenários, são obras de arte, com a mesma qualidade artística de suas criações de desenhista e pintor.
No final da década de 1990, o Centro Cultural da UFMG reuniu um conjunto desses projetos numa exposição na qual se evidenciaram essas qualidades, oferecendo ainda oportunidade para o público conhecer o processo de criação de cada espetáculo.
A FLAUTA MÁGICA: A FÁBULA MOZARTIANA
A convite da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o Giramundo empreendeu uma de suas maiores aventuras criativas: a montagem da ópera A Flauta Mágica, de Mozart, em sua versão integral, para comemorar os 200 anos da morte do compositor.
Ao enfrentar esse novo desafio – a terceira experiência com a montagem de uma ópera – o Giramundo retomava um gênero no qual, mais do que nas experiências anteriores, haveria de se achar potencializadas as razões essenciais do teatro de bonecos.
A Flauta Mágica aborda temas fascinantes para um encenador que transita pelas esferas do fantástico – como Álvaro Apocalypse – e oferece ao teatro de bonecos a oportunidade para conduzir às últimas consequências essa fantasia, com amplo leque de possibilidades de enfoque e interpretação.
O libreto de Schikaneder é, mais do que um conto de fadas, a glorificação da Franco-Maçonaria, regido ora pela luz, ora pela sombra, assumindo, através de seus fantásticos personagens – solenes ou cômicos –, a tarefa de divertir e refletir sobre os mistérios da vida, da morte e do amor. A música de Mozart, atingindo a maturidade, resume a genialidade do compositor, condensando séculos de experiência na sua juventude de 30 anos, capaz de fazer aparentar deliciosamente simples uma estrutura musical altamente elaborada: consegue “ser simples na complexidade e complexo na simplicidade”, como assinala o maestro David Machado.
Álvaro Apocalypse e o Giramundo dedicaram-se totalmente ao projeto, transformando a Oficina num verdadeiro canteiro de obras – preenchido, o tempo todo, pela sonoridade das vozes e da orquestra –, num afã impressionante, em que todos os integrantes do grupo, e diversos artistas e artesãos contratados, empreenderam a realização desse espetáculo impressionante, com um entusiasmo jamais visto.
A proposta de Álvaro Apocalypse era a de idealizar as figuras – tanto as das personagens, como as figuras adicionais e os cenários – que foram surgindo na prancheta, nascidas de uma imaginação delirante. Tomando a monumentalidade como partido, toda a estrutura do espetáculo haveria de se submeter à escala, ampliando, em consequência, as dificuldades técnicas, cujas soluções iam aos poucos sendo encontradas, às vezes por mecanismos altamente complexos.
A concepção do espetáculo só seria definida depois de longos e profundos estudos, tanto da música e do libreto, da ópera em si, como de uma vasta bibliografia de apoio – tratados abrangentes das mais diversas áreas, coleções iconográficas, além de gravações em discos, vídeos e filmes.
Explicando a decisão tomada para a encenação, Álvaro Apocalypse conta:
Certa vez, no México, presenciei uma chusma de operários em um canteiro de obras se extenuarem numa trabalheira febril para desenterrar uma colossal cabeça de serpente talhada em pedra pelos antigos astecas. O interessante era ver que o formidável monstro renascia da terra, através do trabalho de diminutos e frágeis seres humanos, descendentes, talvez, das mesmas criaturas que tiveram força e fé para criá-lo. O que eu acho particularmente fascinante nas antigas esculturas é sua imobilidade e silêncio. São corpos decepados, colossos jazendo por terra, olhares perdidos e distantes. Perdida a fé que os criou, esquecidos, soprados por areia e ventos, se fecham na pedra de que são feitos.
Continua Apocalypse:
No fervedouro que foi a oficina, olhando a argila ainda informe sendo moldada, mãos de madeira presas no torno, fibra estalando nas formas, papel colado secando ao sol, olhos de resina boiando na água, corpos desconjuntados sobre as mesas, uma profusão de armas, botas, túnicas, sandálias e asas ocupando todos os espaços, ouvindo o infernal barulho das máquinas, vendo a azáfama e a agitação do pessoal, aquela visão do México me veio à memória diversas vezes: estávamos desenterrando o mito e iríamos recompô-lo.
Daí situarmos o enredo de A Flauta Mágica numa distante Idade Média, em época um pouco anterior àquela em que as esfinges, faunos e centauros se afundaram terra adentro, para sempre. Sendo mais preciso: no ano 1.100 do Planeta Pedra. Neste planeta lunar de cenário megalítico, onde tudo é silêncio e imobilidade, espera-se que alguma coisa, um hálito, um sopro, insufle vida nestes personagens míticos de olhares distantes. Espera-se o sopro de uma flauta mágica…
Quando os bonecos ganharam vida, com o sopro daquela flauta inventada por Mozart, reconstruída por Álvaro Apocalypse em sua complexa produção (primeiro no palco do Teatro Municipal de São Paulo e depois em Campinas, Curitiba e Belo Horizonte), consumava-se um ato de verdadeira magia. Orquestra, coral, solistas, iluminadores, maquinistas e uma grande equipe de manipuladores conduziam à culminância a energia criadora que viera de duzentos anos atrás e, passando pela prancheta, pelos balcões, pelas máquinas da oficina, pelas mãos amorosas do Giramundo, num processo fascinante de construção, e viviam no teatro sua celebração final.
Em São Paulo, as récitas alternadas em alemão e em português (versão realizada pelo maestro Sérgio Magnani) levaram grandes multidões ao Teatro Municipal, provocando toda sorte de reação, pela estranheza e pelo ineditismo da encenação. Mesmo entre os solistas – alguns estrangeiros –, tendo que atuar à sombra, após as tensões extremas dos ensaios e certas dificuldades de adaptação, houve ao final o reconhecimento de que estavam atuando no verdadeiro espaço mágico de Mozart.
Comentando a estreia de A Flauta Mágica, Luís Antônio Giron escreveu na Folha de São Paulo, de 19-07-92:
Embora tenha havido erros, os cantores, o Grupo Giramundo e os músicos conseguiram enfrentar criativamente Mozart. Isto é um feito quase sem precedentes no Municipal. Para não dizer milagroso (…) Álvaro Apocalypse carrega a ópera pelo primitivismo. Os cantores são subtraídos dos gestos automáticos a que estão habituados. Os bonecos – estáticos e monstruosos – não agem feito atores, mas potencializam as atitudes histriônicas do canto lírico. A montagem demonstra que, em ópera, cantores são a sombra de si mesmos e seus gestos vazios podem dar lugar à automação. Os cenários monumentais (rochas, ícones egípcios, colunas) e a variedade dos bonecos reforçam o argumento do espetáculo: a música, somente ela, manuseia os cordames das marionetes e dá sopro à ação. O público deve ser seu duplo silencioso.
TRILOGIA BRASIL: MITOS E REALIDADES
Reconhecendo a grande contribuição cultural e a capacidade criativa do Giramundo, a Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura de São Paulo, volta, em 1992, a convocar o Grupo para mais um trabalho de grande significação: a montagem de um evento que compreendesse uma “leitura” de três momentos fundamentais de nossa História, comemorando três efemérides: os quinhentos anos do Descobrimento da América (1492), os duzentos anos da morte de Tiradentes (1792) e os setenta anos da Semana da Arte Moderna (1922).
Já possuindo o repertório do Giramundo dois espetáculos afinados com as ideias apresentadas, O Guarani, que trata da relação do branco europeu com o índio, nos primórdios da colonização (início do século XVI), e Cobra Norato, leitura do poema de Raul Bopp, obra significativa do período heroico do nosso Modernismo, Álvaro Apocalypse propôs a criação de um espetáculo sobre Tiradentes, completando assim a Trilogia Brasil. Ao mesmo tempo em que aprofundava o sentido da proposta do patrocinador, possibilitava a criação de um conjunto de obras com o qual o Grupo iniciaria a montagem de um ambicioso projeto de Teatro de Repertório.
UM PROJETO: TEATRO DE REPERTÓRIO
O sucesso permanente de A Bela Adormecida, de 1970, reeditado em 1978 e remontado em 1991, já acenava ao Giramundo a possibilidade de montar seu Teatro de Repertório, projeto ambicioso de recuperar todas as suas produções para recolocá-las em cena, alternando os espetáculos em temporadas, tanto em seu próprio teatro, a ser construído em Belo Horizonte, como em turnês pelo país e no exterior.
A experiência da temporada paulista da Trilogia Brasil acena para essa perspectiva como forma de firmar a imagem do Teatro de Bonecos como expressão artística capaz de manter o interesse de uma faixa cada vez maior de público. Nesse sentido, o Giramundo, em sua nova fase iniciada em 2004, haveria de produzir seus mais recentes espetáculos, como uma outra sequência, que denominou Trilogia Mundo Moderno, constituída pelos espetáculos inspirados em conhecidas obras da literatura universal: Pinocchio (Collodi), Vinte Mil Léguas Submarinas (Júlio Verne) e Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll). O Teatro de Repertório, possibilitando apresentações regulares de espetáculos diferentes, supriria, por outro lado, o reduzido número de grupos de teatro de bonecos que atuam nos palcos brasileiros, ao mesmo tempo em que constituiria um incentivo ao surgimento de artistas e grupos interessados nesse rico campo de criação artística.
PEDRO E O LOBO
Em 1993, o Giramundo coloca no palco Pedro e o Lobo sobre poema sinfônico de Sergei Prokofiev.
O compositor criou esta peça com fins pedagógicos, e o espetáculo do Giramundo mantém o propósito original do autor de ensinar as crianças a distinguir os sons dos instrumentos musicais, ao mesmo tempo em que seduz o público infantil com uma história cheia de suspense e surpresas, com bonecos encantadores e com a efetiva presença e interação dos manipuladores.
Como já vinha acontecendo, e agora com uma presença mais acentuada, os manipuladores se tornam personagens, atores, contracenando com os bonecos de pequena dimensão, criando uma sintonia entre eles e interação com o público.
Como na maioria dos espetáculos do Giramundo, em Pedro e o Lobo a música era gravada, mas os diálogos eram interpretados ao vivo. O espetáculo tem sido apresentado para as mais diversas plateias e corre o país, sempre com imenso sucesso. Em fins de 2014, fez duas apresentações em Belo Horizonte, com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.