Trilogia Mundo Moderno

Trilogia Mundo Moderno

Recompor o Giramundo, após tantos eventos dolorosos, exigiu de seus integrantes esforço e coragem. Imbuídos da força que animara o grupo por mais de 40 anos de muito trabalho e da crença de que estava em suas mãos o desafio de dar continuidade ao extraordinário legado deixado por seus criadores, renovaram suas forças e iniciaram o novo ciclo do Giramundo.

É assim que retomam o projeto de Pinocchio, que Álvaro deixara inacabado e, ao oferecê-lo ao público, surpreendentemente renovado, estão convictos de que inauguravam um novo Giramundo, com as lições de seu “passado”, reforçados com o propósito de avançar na trilha das ideias e inovações.

Com Pinocchio forjavam uma nova agenda de criações. E, ao consultar uma literatura passivel de ser adaptada ao teatro de bonecos, no formato que o Giramundo estava tomando, encontraram sugestões mais que interessantes em obras nascidas no século XIX e que indicavam situações perfeitamente adequadas para suscitar questões atuais.

Assim, com Pinocchio, de Carlo Collodi, Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne e Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, conformaram sua Trilogia Mundo Contemporâneo e puderam enfeixar um ciclo de histórias fascinantes, confirmando a bem sucedida experiência da Trilogia Brasil, na qual o Giramundo havia magistralmente abordado aspectos de nossa cultura.

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Coração do Pinocchio menino [detalhe]. "Pinocchio", 2005. | acervo Giramundo

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Garras e Pinocchio. "Pinocchio", 2005

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PINOCCHIO

Pinocchio foi o último sonho de Álvaro Apocalypse, seu testamento simbólico, ao qual caberia aos seus continuadores dar vida e alma, na forma de um espetáculo envolvente e misterioso, reinventando pela história de Carlo Collodi as mesmas fascinantes aventuras que humanizaram o boneco e o condenaram a viver a humana circunstância.

Há um sentido evidente nesse projeto que Álvaro começou a desenvolver. Nos estudos iniciais, nos croquis das figuras, nas indicações do roteiro , no esboço da dramaturgia, nas sugestões do caráter dos personagens achavam-se latentes o sentimento de que a vida se rebelava contra as imposições do tempo, contra as circunstâncias que fragilizavam, dia a dia, a humana composição, e a sua crença de que era possível, pela arte, reverter o destino.

O teatro, por seu caráter efêmero, seria, no entanto, uma forma de realizar a permanência. E a marionete, na sua proliferação de formatos, de gêneros (como o Giramundo comprovou ser possível) haveria de ser este lugar paradoxal do passageiro e da permanência.

O “novo” Giramundo retoma esse projeto inacabado traduzindo a dimensão criadora que nele se achava pulsando e busca introduzir novos ritmos e novas ideias, capazes de avançar em propostas que irão garantir mais que a sobrevivência, a continuidade em alta voltagem daquela impulsão inventiva que mobilizara o grupo em suas criações.

Fazer Pinocchio era um projeto antigo do Giramundo, mas não simplesmente como “redução” infantilizada, o propósito era produzi-lo na forma original em que o autor o concebeu, com certa sofisticação de ideias, como a metáfora do “homem moderno”. Haveria de ser um espetáculo que não tivesse a intenção de puro entretenimento para crianças, mas que, subjacentemente, construísse situações a serem absorvidas por adultos capazes de perceber para além das aparências que a fábula em suas tradicionais versões apresenta.

Esse primeiro desafio que o Giramundo ousou enfrentar sem a orientação de Álvaro exigia clareza de propósitos na condução de todo o processo de criação e de produção.

Com a certeza de que o passo à frente deveria ser dado com firmeza e consciência, Beatriz Apocalypse, Marcos Malafaia e Ulisses Tavares, apoiados pela equipe bastante sintonizada com aqueles propósitos, foram desenvolvendo o “seu” Pinocchio, encaminhando-o para uma feição já afinada com ideias que foram surgindo na direção da contemporaneidade – tanto na interpretação da história como na forma de contá-la, uma vez que já haviam assimilado e desenvolvido vários recursos da tecnologia audiovisual, com a qual obtêm efeitos convincentes.

A intepretação dos personagens, a fixação das figuras, tão conhecidas da história de Collodi, fogem do convencional e surpreendem pelo inusitado: o Mestre Gepetto, por exemplo, tem a forma de um armário falante e atuante. E as peripécias do boneco, mesmo que, sem de todo fugir do original, ganham proporções, sentidos e características modernas, com um certo tom de crueldade.

Marcos Malafaia, na apresentação da Trilogia Mundo Contemporâneo, adverte:

Pinochio parece incompreendido. Envolto em nebulosas aventuras sob uma chuva infindável, ora fugindo de bandidos ora buscando desesperadamente uma fome sem sentido, este personagem misterioso permanece enclausurado, como condenado na simplicidade colorida das interpretações, que o transformaram no mais famoso dos bonecos. Mas talvez o Pinocchio de Carlo Collodi ainda surpreenda. Desencravado de uma madeira mágica, passada de mão em mão até a acolhida do Velho Gepetto, emerge de um trabalho perfeito, quase um milagre, tornando-se aparição fantasmagórica, fatalmente destinada a agruras, que finaliza seu périplo transformando-se num menino de verdade. A história se completa mas não termina, ao contrário, estilhaça-se nos mil poros abertos (…)

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A fadinha morta. "Pinocchio", 2005. | acervo Giramundo

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Seção de vídeo

Bonecos Quadro a Quadro

Ulisses Tavares, um dos diretores do Giramundo, fala sobre animação de boneco, as especificações e as diferentes técnicas, que levam em consideração mecânica, peso e ergonomia de cada boneco.

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Pinocchio foge de Gepeto (still de vídeo de animação). "Pinocchio", 2005. | técnica: sombra / acervo Giramundo

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Cartaz do espetáculo "Pinocchio", 2005. | acervo Giramundo

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Cartaz do espetáculo "Vinte Mil Léguas Submarinas", 2007 | acervo Giramundo

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VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS

Por suas caracteristicas de fantasia e aventura, a história criada por Júlio Verne oferece todos os ingredientes adequados à composição de um espetáculo de grande dinamismo, no qual as especificidadess do teatro de bonecos podem ser evidenciadas, exploradas e levadas às últimas consequências.

A  decisão de adaptar e encenar essa história demonstra a ousadia dos diretores do Giramundo em enfrentar as dificuldades de dar à estrutura narrativa fluência e capacidade de convencimento, em cenários tão diversos e complexos e com personagens e situações  bem caracterizados. Demonstra também a intenção de vencer os desafios que a produção iria exigir na composição da ambiência, conscientes de já possuírem repertório técnico suficiente, como os recursos eletrônicos. Os desafios acabaram sendo vencidos de maneira surpreendente, confirmando o que Júlio Verne, com sua clarividência, afirmou:  “Tudo o que um homem pode imaginar, outros homens poderão fazer”.

Utilizando esses recursos, o Giramundo conseguiu criar cenários e situações, com ações simultâneas em planos diferentes, acentuando a fantasia e o humor, sem descuidar de oferecer momentos de suspense, na trilha do romance original.

O espaço da superfície e o abismo do mar revelaram-se perfeitamente possíveis naquele palco, graças à engenhosidade que sempre caracterizou as jornadas criativas do Giramundo.

Se, em produções anteriores, Álvaro Apocalypse já havia demonstrado o quanto a fértil imaginação dos criadores – com o concurso do espectador – pode transformar em algo maior aquilo que é apenas alusão ao real,  ao introduzir questões metateatrais, em Vinte Mil Léguas Submarinas,  as situações espaciais e de tempo são radicalizadas  por meio de recursos mais sofisticados.

É certo que as soluções exigidas pelo texto haveriam de ser alcançadas por malabarismos técnicos, mecânicos e, mais ainda, como será em Alice, pela exploração dos recursos das novas mídias eletrônicas, que são utilizados com perfeita adequação, em função da narrativa.

Sem se ater fielmente ao texto e mesmo sem se servilizar inteiramente à narrativa do escritor francês, o Giramundo logrou contar, com humor e de maneira convincente, a história do Capitão Nemo e seu submarino Nautilus, introduzindo personagens e situações apropriadas a explorar as condições fantásticas e absurdas do teatro de bonecos.

As várias técnicas utilizadas, das tradicionais às inovadoras, com recursos multimídia, a trilha sonora adequada à atmosfera romântica oitocentista, mas apontando para uma ambiência contemporânea, fez do longo espetáculo como que o culto e a recuperação de um dos mais imaginativos autores da literatura.

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Beatriz Apocalypse (manipuladora) e Alice. "Alice no País das Maravilhas", 2013. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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Cartaz de "Alice no País das Maravilhas", 2013. | acervo Giramundo

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O julgamento de Alice. Alice e Dor Mouse. "Alice no País das Maravilhas", 2013. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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NOVAS INVENÇÕES PARA ALICE

Com As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, sua mais recente produção, o Giramundo fecha a Trilogia Mundo Contemporâneo de maneira significativa.

É visível a intenção de fazer das três produções um conjunto alusivo ao mundo atual, pela via da metaforização das histórias criadas nos fins do século XIX, quando o mundo – a Europa, especialmente – vazado por conflitos de toda ordem, pretendia tornar-se o “moderno”. As histórias de Collodi, Verne e Carroll estão carregadas de simbolismo, de alusões a questões relevantes da sociedade do “século das invenções”, perfeitamente aplicáveis ao cenário contemporâneo.

Em Pinocchio era a busca de uma reconfiguração do homem numa sociedade perversamente moralista, que incute lições de falsa moral para garantir o lugar do poder, mas também, em seu sentido subjacente, aponta para uma jornada em busca de sabedoria e iluminação espiritual.

Em Vinte Mil Léguas Submarinas, Verne cria a sociedade do futuro, repleta de máquinas e coisas inventadas para seu conforto e para suas conquistas. Em sua delirante fantasia premonitiva, constrói o cenário que hoje nos é familiar, defendendo a ciência sem deixar de colocar à vista os conflitos que dela emergem e se tornam cada vez mais intensos, sem maiores perspectivas de solução.

Em Aventuras de Alice no País das Maravilhas, a história criada para entreter crianças possui também a outra face da moeda, a ser mais bem identificada pelo leitor adulto, capaz de entrever, nas frestas das aventuras vividas pela menina, outros sentidos que levam o leitor a identificar as condições psicológicas e sociais da época em que foi escrita e projetá-las na tela contemporânea.

Com Alice, o Giramundo avança ainda mais em suas pesquisas e experimentações de linguagem – em termos de dramaturgia e visualidade –, compondo uma “quase ópera”, com o ritmo da aventura original e explorando a fantasia ao extremo, acentuando o encanto e a surpresa propostos pelo enredo de Lewis Carroll.

Apoiado por uma grande equipe de profissionais de primeira linha da cena mineira, alcança o patamar de excelência de produção em todos os seus aspectos, sem perder sua identidade, ao contrário, reforçando-a.

O texto, sem trair o original, traduz para nosso tempo os embates, as aflições e os conflitos da protagonista e seus companheiros de aventura. A interpretação  ajusta-se na melhor medida ao caráter de cada personagem, e a sincronia entre fala e movimento dá alma aos bonecos. O formato corresponde ao dos espetáculos anteriores e avança ainda mais, com soluções que surpreendem.

O ator que “rege” a história e contracena com Alice é também o parâmetro para a percepção das transformações às quais a heroína é submetida. São várias as “Alices”, sempre encantadoras, em diferentes dimensões, confeccionadas para indicar as diversas situações que vive. Há uma empatia perfeita entre ator e boneco (sentida fortemente pelo espectador, cúmplice da história), acentuada pelo texto introduzido na história e sua interpretação, protagonizando cenas de afetividade e emoção.

A trilha musical, com várias canções especialmente compostas para o espetáculo (por John Ulhoa e Fernanda Takai, integrantes da banda Pato Fu), com seu ritmo e sua sonoridade expressiva, conduz as cenas, contribuindo para a certeira dinâmica do enredo, em consonância com os recursos audiovisuais de projeção em diferentes planos. São numerosas as peças criadas para projeção, textos que fluem sobre a cena, imagens que se deslocam, se metamorfoseiam, se agigantam e se apequenam, como a permear as situações incontroláveis da protagonista em meio àquele lugar de malucos.

É exemplar o efeito convincente de sua descida na toca do Coelho, que, pela projeção de formas em vertiginosa ascensão, cria a impressão de que a personagem descamba realmente das alturas para o fundo do túnel – segundo estudiosos, a metáfora do rito de passagem da criança para a adolescência.

Em toda a sua extensão, o espetáculo realiza-se com acentos de encanto e surpresa. Os episódios são marcados por invenções técnicas que sublinham a qualidade artesanal dos bonecos, figurinos, complementos e objetos. A escolha adequada de cada técnica para as diferentes versões de Alice e dos demais personagens, a manipulação bem resolvida, a música envolvente ajustam-se perfeitamente à situação cênica. A introdução do personagem-autor, Lewis Carroll, amplia o sentido do enredo, numa alusão ao momento da criação da história. No papel do escritor, em intervenções pontuais na narrativa, Beto Militani é uma presença convincente na construção da ponte entre o real e a fantasia.

Como em antigas criações do grupo, tem sido fundamental a contribuição de músicos, técnicos e atores para a qualidade dos espetáculos do Giramundo: o diretor e atores do Grupo Galpão, na preparação de atores e na interpretação das falas dos personagens; os integrantes da banda Pato Fu, com suas composições, interpretação e trilha sonora.

Há muitos anos, a artista plástica Sandra Bianchi tem sido a responsável principal pela modelagem e pintura dos bonecos, com a participação de vários outros artistas e técnicos, empenhados em manter o padrão de qualidade de sua execução. Madu, sempre que convocada, tem dado sua preciosa assistência e orientação para a construção dos bonecos, oferecendo a experiência acumulada desde a criação do Giramundo.

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Lewis Carrol, a rainha e o rei de copas. Espetáculo "Alice no País das Maravilhas", 2013. | técnica: pantin / acervo Giramundo

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Lewis Carol (ator) e as personagens (bonecos). Espetáculo "Alice no País das Maravilhas", 2013.