Colegas do meio e do peito
Não foi só 15 mil cruzeiros que, em 1978, Glauco faturou ao ser agraciado, pela segunda vez consecutiva, com o grande prêmio do Salão Internacional de Humor de Piracicaba: além da grana, o artista recebeu um convite para ir morar na capital paulista, bem no apartamento de um dos seus maiores ídolos, Henfil – o cartunista mineiro Henrique de Souza Filho, que integrava o júri do evento.
No ano seguinte Glauco já estava hospedado no Bunker – assim era chamado o tal do apartamento, que também abrigava o cartunista Nilson Azevedo e servia como ponto de encontro para outras figuras da cena artística e cultural paulista.
Desde 1977, Glauco vinha publicando seu trabalho esporadicamente na Folha de S.Paulo, e esse vínculo foi se firmando cada vez mais – principalmente a partir de 1984, quando o jornal passou a dedicar maior espaço para as HQs nacionais.
Seja no Bunker, seja na redação da Folha, seja lá onde fosse, Glauco firmou uma série de parcerias ao longo dos anos – e se dedicou a elas com o mesmo bom humor que colocava em suas tiras.
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O Bunker
O cartunista Nilson Azevedo fala sobre o tempo em que ele e Glauco viveram no apartamento de Henfil na capital paulista – carinhosamente apelidado de Bunker. Angeli e Laerte, que visitavam o local com certa frequência, também comentam o período
Depoimento do cartunista Nilson Azevedo, que morou com Glauco e o também cartunista Henfil no fim dos anos 1970 e início dos 1980:
“Tipo 6 horas da manhã, sou despertado por um sussurro vindo da porta de serviço, quase em frente ao meu quarto: era de novo Glauco, voltando de Ribeirão Preto, onde tinha ido ver sua namorada, Ju, como sempre fazia nos fins de semana. Mais uma vez, ele tinha perdido a chave do apartamento. Ele pedia que eu abrisse a porta em silêncio para não despertar o Henfil, que ficaria furioso.
Henfil, cujo apelido de infância era Tuneba, punha apelido em todo mundo. Laerte, por exemplo, era Dodô, o pássaro extinto por sua inocência. Glauco perdia a chave, o RG, e a cada vez Henfil lhe passava um sabão, como um pai ou um irmão mais velho fariam. Cadê a chave? Sumiu! Cadê o documento? Sumiu! Pronto, Henfil botou no Glauco o apelido de Doril.”
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Donde estás Glauco?
Os cartunistas Angeli e Laerte falam sobre a sua relação – afetiva e profissional – com Glauco
Depoimento de Jair de Oliveira, designer e ex-editor de arte da Folha de S.Paulo:
“Glauco todo dia desenhava o Geraldão com o pingulim de fora. E ereto, duro. Mandava para a direção e eles diziam: “tem de esconder o pingulim”. Ele não fazia. Eu passava para um dos ilustradores: “tem de pôr a tarja preta no pingulim”. No dia seguinte, mesma coisa. Chegou uma hora em que o diretor do jornal falou:
– Chega, vai! Deixa sair sem a tarja.”
Depoimento de Emilio Damiani, ilustrador e caricaturista que trabalhou com Glauco na Folha de S.Paulo e na revista Geraldão:
“Eu falava para todo mundo sobre o trabalho da Folha: ganha-se pouco, mas é muito divertido e estimulante, porque eles não regulam nada, não restringem nada. O Glauco é o grande responsável por isso, porque ele forçava a barra com o Geraldão. Ele desenhava da maneira como achava que tinha de ser, não se colocava nenhuma censura. Quer botar tarja, bota depois, mas eu não tenho nada a ver com isso. Isso acabava criando um clima, certa rédea frouxa para o trabalho dos ilustradores, que era tudo o que nós queríamos e de que precisávamos.”
Depoimento de Toninho Mendes, fundador da Circo Editorial – casa responsável pela publicação da revista Geraldão:
“Foi na Circo Editorial, entre 1984 e 1995, meu maior período de convivência com o Glauco, quando editamos os dez primeiros números da revista Geraldão e os livros Geraldão Espocando a Cilibina e Abobrinhas da Brasilônia. Trabalhávamos na redação da editora, onde ele desenhava as histórias e resolvíamos o conteúdo da revista. Nesse ambiente foram produzidas as dez edições, que surgiram das histórias longas de seus personagens.
A proximidade no cotidiano permitiu que descobríssemos quanto tínhamos em comum e a grande afinidade em relação a regras estabelecidas: como não havia regras em nossa existência, nunca nos preocupamos em contrariá-las, mas por instinto e índole éramos do contra. Partilhávamos também de afinidades espirituais e de uma convicção natural no sobrenatural e nas realidades paralelas e invisíveis. Isso nos aproximou ainda mais nesse e nos outros universos que concebíamos.
Assim como Van Gogh, Garrincha e John Lennon, o Glauco era uma força da natureza, um cometa que passou por aqui. E essa força da natureza, desconcertante e presente em todo o seu legado artístico e espiritual, permanece entre nós que por aqui ainda estamos.”