Gregori Warchavchik, retratista
É de conhecimento público a paixão do arquiteto modernista Gregori I. Warchavchik (Odessa, atual Ucrânia, 1896 – São Paulo, 1972) pela fotografia e pela técnica que a circunscreve. Mas não é fácil encontrar as referências e as conexões que possam esclarecer sua relação com o movimento fotográfico paulistano entre as décadas de 1940 e 1950.
Warchavchik desembarcou no Rio de Janeiro aos 27 anos de idade, no início de 1923 – auge da vanguarda modernista experimentada pela Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo –, e encontrou um terreno fértil para suas ideias centradas nos arquitetos Walter Gropius, Le Corbusier e Mies van der Rohe. Deixou-se contaminar pela atmosfera modernista que predominava nos circuitos que passou a frequentar e logo se estabeleceu comercialmente. Sempre manteve boa convivência com a imagem fotográfica, uma vez que sua atividade na arquitetura e construção demandava registros documentais para subsidiar arquivos e divulgar seus projetos.
Em 1927, casou-se com Mina Klabin, irmã de Jenny Klabin, esposa do pintor Lasar Segall. Filhas de um rico industrial da elite paulistana, facilitaram a inclusão do arquiteto no grupo modernista – formado por Paulo Prado, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Villa-Lobos e Di Cavalcanti, entre outros. No ano seguinte, concluiu o projeto de sua residência, localizada à Rua Santa Cruz, na Vila Mariana, considerada a primeira casa modernista do Brasil. A partir dos anos 1930, aprofundou seu interesse pela atividade fotográfica e, na década seguinte, já participava com alguma frequência das atividades do Foto Cine Clube Bandeirante, fundado em 28 de abril de 1939.
É aqui que nasce a necessidade de pesquisar mais sobre o seu trabalho fotográfico e verificar sua presença no movimento fotoclubista paulistano, considerado bem-sucedido e responsável pela moderna fotografia brasileira – a chamada Escola Paulista de Fotografia. Em conversas informais com Luiz S. Hossaka (falecido em 2009), museólogo e fotógrafo que dedicou 59 anos de sua vida ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), e Thomaz Farkas (falecido em 2011), um dos mais ativos fotoclubistas na década de 1940, tive conhecimento que sua paixão pela fotografia também se estendia para as câmeras, as lentes e outros acessórios, para além de sua função, uma vez que eram objetos com design sofisticado, eficiente e muitos deles bastante arrojados. Sua paixão pelo design permitiu que conseguisse reunir um bom conjunto de peças que contam a história da fotografia da primeira metade do século passado. A coleção foi exibida em 1996, no Centro Cultural São Paulo, por ocasião do seu centenário de nascimento, na mostra Warchavchik 100 anos.
Warchavchik construiu seu laboratório de fotografia em sua residência, talvez como um anexo da Casa Modernista, mas que foi posteriormente desmontado. É possível perceber sua participação mais efetiva no Foto Cine Clube Bandeirante durante toda a década de 1940. Pesquisas que realizei nos boletins editados pelo clube me possibilitaram traçar um rápido roteiro das suas atividades no local. Ele não participava dos seminários, das excursões que eram realizadas nos finais de semana, muito menos dos cursos internos. Não há registros de sua presença nesses eventos, mas, por outro lado, constatamos que suas fotografias foram selecionadas para os diversos salões promovidos pelo clube.
Em 1947, o número de sócios ativos no Foto Cine Clube Bandeirante era 238. A edição do Boletim N˚ 1 é de maio de 1946 e, em todas as edições subsequentes, publicava-se a relação dos novos associados. Warchavchik, seguramente, entrou para o clube como associado logo nos primeiros anos de atividade. Sua participação mais efetiva se deu nos salões nacionais e internacionais. O clube, após uma discussão e seleção interna, inscrevia as fotografias que disputariam as medalhas dos salões. Também havia uma espécie de ranking dos melhores associados, que era regularmente publicado nos boletins. Em 1947, por exemplo, Warchavchik se classificou em 27º lugar; em janeiro e abril de 1948, em 37º e 39º; até praticamente desaparecer do ranking dos 40 melhores associados pontuados. Isso apenas constata seu crescente desinteresse pelas atividades do local, já que suas fotografias desapareceram dos salões e do ranking.
No boletim de abril de 1949 foi lançada a campanha da sede própria e verificamos que Warchavchik colaborou, adquirindo sete cotas. No mesmo ano, integrou a subcomissão técnica, que provavelmente iria avaliar as condições do imóvel adquirido, bem como seu potencial para futuras reformas a fim de atender as necessidades do clube. Em paralelo, foi intensa sua participação nos primeiros salões organizados. Em 1943, no II Salão Paulista de Arte Fotográfica, participou com três retratos – Amor Paterno, Retrato do Professor F e Óculos do Papai, sendo que este último recebe menção honrosa; em 1944, no III Salão Paulista de Arte Fotográfica (Internacional), além da capa do catálogo – Autorretrato –, participa com Meu Filho, O Nosso Samba e Bonecos; em 1945, na edição seguinte, participa com Juventude, Sra. D.C., Nosso Adolpho, Venceu e Instante de Calma; em 1946, participa com Gaiatos no 5˚ Salão Internacional de Arte Fotográfica de São Paulo; em 1947, com Fogo Apagado e Marjory; no VIII Salão, em 1949, com Veterano. Mais uma vez, é perceptível seu preogressivo desinteresse pelas atividades fotoclubistas.
Também realizei uma busca nas edições da IRIS – Revista Brasileira de Foto e Cinematografia, editada a partir de janeiro de 1947. Desde o primeiro número, vemos o nome Gregori Warchavchik como membro da “comissão patrocinadora”, ao lado de Norberto C. Mafra, Horácio de Cintra Leite, Maria Cecília Ráo e Francisco de Almeida Salles. Sua participação no corpo técnico editorial da revista desaparece a partir de 1950.
Portanto, é notável sua participação, na década de 1940, nas atividades promovidas pelo Foto Cine Clube Bandeirante. Curiosamente, sua fotografia nada tem a ver com a arquitetura, pois privilegia quase sempre o retrato. Como fotógrafo amador, tornou-se um retratista sensível. Explora o retrato em toda a sua dimensão técnica e estética. Sua formação cultural, particularmente nas artes visuais, permite realizar um trabalho rigoroso com a luz, um enquadramento leve, mas com aproximações que o colocam numa posição de alguma familiaridade ou de intimidade com o retratado. Os retratos são de amigos e conhecidos, além dos parentes.
A revista IRIS número 13, de fevereiro de 1948, traz um comentário – sob as iniciais N. F., presumivelmente de Nicolau de Fovitzky, diretor da publicação – sobre os retratos de Warchavchik que participaram do VI Salão: “Fogo Apagado é estupendo como retrato, sendo porém um pouco prejudicado pela composição. Marjory é notável, diáfano e macio como um pastel de Boucher ou de Watteau”. As duas últimas referências citadas são pintores da corte francesa do século XVIII, François Boucher (1703-1770) e Antoine Watteau (1684-1721).
Os retratos de Mário de Andrade e René Thiollier, bem como o retrato denominado Óculos do Papai, evidenciam um tratamento único: um enquadramento fechado, centrado no rosto do fotografado e com o foco crítico. Esse foco crítico revela sua visão sensível e se torna uma espécie de imprecisão intencional e controlável. Mostra também um controle técnico sobre o processo e uma direção de cena: tenta evitar a frontalidade e propõe uma leitura mais difusa e aberta, à medida que os olhares são quase sempre dispersos, algo um pouco distante das convenções disseminadas no movimento fotoclubista.
O Foto Cine Clube Bandeirante oferecia, com alguma frequência, cursos técnicos de laboratório e também cursos temáticos, como de paisagem, natureza-morta e retrato, entre outros. Esses cursos e as diversas matérias que vemos publicadas nos boletins ditavam regras e propunham modelos sobre um fazer fotográfico específico que era de interesse da diretoria do local. Era sua proposição para estabelecer uma gramática mínima para os associados. Muito provavelmente, Warchavchik não participou dos cursos porque parece que já detinha algumas noções sobre a arte fotográfica. E é justamente por esse motivo que seus retratos não obedecem às convenções e se propõem intencionalmente ruidosos – por exemplo, pelo delicado desfoque em diversos deles.
Paradoxalmente, essa “leveza do foco” também o aproxima esteticamente dos retratos pictorialistas que predominaram no clube durante seus primeiros anos, quando a preocupação era dar às imagens um caráter mais artístico, particularmente aos retratos, e se distanciar do resultado direto propiciado pela boa técnica fotográfica. Essas questões são continuamente debatidas – por exemplo, em abril de 1948, quando a revista IRIS põe a discussão sobre o que seria melhor, a imagem “perfeitamente nítida” ou a difusa, com o “flou estético”. Warchavchik procurou se afastar dessas proposições que expressavam uma estética realista, ora deixando o retratado muito à vontade diante da câmera, ora incorporando pequenos ruídos, como o foco crítico ou a insinuação de um movimento espontâneo.
Por isso mesmo, preferimos entender seus retratos mais como transgressores, distantes dos cânones do clube e mais próximos de uma vanguarda – mesmo que tardia, em relação aos procedimentos difundidos décadas antes na Europa. Afinal, Warchavchik foi um intelectual que tem seu nome associado à racionalidade modernista, e, no clube, no final da década de 1940, os jovens Thomaz Farkas e Geraldo de Barros, entre outros, estavam buscando uma fotografia mais elaborada, mais sofisticada, inclusive distante do retrato. Suas fotografias, muitas vezes, se aproximavam da abstração mesmo tendo o mundo visível como referência. Warchavchik, cuja arquitetura era revolucionária, ao fotografar, procurava pontuar nos personagens de seus retratos algum índice de subjetividade, se utilizando de estratégias como a direção de cena e a exploração das possibilidades técnicas dos equipamentos que dispunha.
Em 1925, ele publicou, no Correio da Manhã, o primeiro manifesto da arquitetura modernista no Brasil, e, entre as diversas críticas elaboradas por ele, a que faz ao ornamento é a que mais tem relação com sua fotografia: “Detalhe inútil e absurdo, imitação cega da técnica da arquitetura clássica; tudo isso era lógico e belo, mas não é mais”. Com isso, fica claro que seus retratos não trazem ornamentos desnecessários; são diretos e deliciosamente íntimos. Seus retratos também revitalizaram os conceitos de sujeito e objeto, já que seu enquadramento fechado não se atinha a certas maneiras codificadas de entender a perspectiva e propiciava ao espectador uma nova experiência. Estar diante de um de seus retratos é uma possibilidade de expandir nossa percepção visual, seja pelas aproximações, às vezes exageradas, seja pelos pequenos distúrbios experimentais. Entender a fotografia como um dos signos da modernidade é buscar entender e refazer os diferentes movimentos e procedimentos criados pelo artista.
Rubens Fernandes Júnior, pesquisador e curador de fotografia