78 Rotações

Alex Antunes: o Espírito que Anda em Penedo

Jards Anet da Silva, o Macalé, é uma contradição ambulante. De personalidade fortemente contestadora, não hesita em se dizer patriota, ordeiro, pontual e estudioso. Formado na melhor tradição da música popular e erudita, foi protagonista ou coadjuvante de alguns dos maiores distúrbios contraculturais da história do país. É parceiro de uma lista impressionante de magníficos poetas (Waly Salomão, Capinam, Torquato Neto, Vinicius de Moraes), cineastas (Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Arthur Omar), artistas plásticos (Hélio Oiticica, Lygia Clark), músicos (Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Maria Bethânia, Gal Costa, Moreira da Silva), gente de teatro (Zé Celso, Augusto Boal, Renato Borghi)… Mas seu papel na cultura brasileira nessas últimas quatro ou cinco décadas ainda é bastante incompreendido. Seu som, a meio caminho entre João Gilberto (no rigor e na originalidade das divisões e harmonias) e Jimi Hendrix (na irresistível desconstrução e erupção de energia), dificulta a tarefa de quem tenta rotulá-lo. Embora sua recém-lançada biografia no cinema, Um Morcego na Porta Principal, tenha dado um passo nesse sentido, nada em relação ao macunaímico Macalé parece unânime ou bem estabelecido. Fomos entrevistá-lo na linda cidade de Penedo, de colonização europeia, no interior do estado do Rio, frequentada por sua família há muito tempo. Macalé caminha pacificamente por lá e cumprimenta a todos – a única coisa um tanto belicosa nele talvez seja a combinação calça militar e camiseta com a Marilyn de Andy Warhol. No apartamento em cima da casa de sua mãe (que ele chama de “nave mãe”), Macao relaxa da labuta no Rio de Janeiro (ele chama seu pequeno apartamento no Jardim Botânico de “a cápsula”). Confiro discretamente sua biblioteca: entre dicionários, songbooks e enciclopédias de música e literatura política, saltam à vista autores como Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Jorge Amado, Glauber, Mautner, Paulo Emilio e Stanislaw Ponte Preta. Com enfoques diferentes, cada um deles teve uma preocupação em comum: entender o Brasil. Se é que isso é possível. Há também centenas de velhos vinis (notei muito soul e blues – e, durante a entrevista, Macao rolou Hendrix, Gal de 1969, Elvis, Caymmi), histórias em quadrinhos, uma profusão de objetos e memorabilia. E há uma coleção de anjos – que, claro, são vigiados por um Exu: Zé Pelintra está de olho.

Você gosta de quadrinhos, certo?
Eu tenho uma coleção na qual o Fantasma é o meu favorito, e não o Batman. Gosto da selva, da Caverna da Caveira, dos pigmeus protegendo…

Você é o “espírito que anda” em Penedo?
Sou, estou sempre lutando contra os piratas de Singh; e minha mulher é a Diana Palmer. Ela trabalha na ONU, na divisão de direitos humanos, sabia? [risos]

Como é que você escolheu essa metáfora do Batman em “Gotham City”, no Festival Internacional da Canção (FIC) de 1969?
Não fui eu, foi o [José Carlos] Capinam que escolheu. Ele fez um poema usando a linguagem de quadrinhos, o que era uma coisa moderna. O Batman é um fora da lei; na verdade ele faz a lei, na tentativa de ser um… defensor da sociedade gothancitense. O Capinam então usou isso com ironia: “cuidado, há um morcego na porta principal”. É uma loucura porque ele é um defensor, e, no entanto, cuidado! Porque ele é um horror também.

E você viu que essa imagem tinha uma força…
Não, a música só ficou forte mesmo com o arranjo do Rogério Duprat. Ela podia ser tocada com um banjo, tipo música caipira americana. Mas é aí que entra o tal arranjo – a abertura com toda a orquestra tocando o arranjo original do Nelson Riddle [cantarola o tema do Batman da televisão] na introdução. No ensaio, vimos escrito nesse ponto da partitura de todos os músicos “TOQUE O QUE QUISER”… Porra, cada um tocava qualquer coisa, e ficava uma cacofonia total. O Capinam trabalhava com propaganda e imprimiu a letra em um papel que dobrava e virava um morceguinho voador. Espalhamos morceguinhos por todo o Maracanãzinho. Estava tudo certo, mas, com a cacofonia, o tempo virou… Entramos [a banda], Os Brasões e eu com uma bata, e o Maracanãzinho completamente louco, o público fazendo assim [polegar para baixo] e vaiando. Resultado: de toda a parafernália do FIC, o que sobressaiu foi “Gotham City”. Entramos quase anônimos no festival e saímos dele famosíssimos, eu e o Capinam em todas as primeiras páginas de jornal. Foi incrível. Viramos heróis – aliás, anti-heróis no dia seguinte. Primeiro a gente queria soltar um morcego de verdade, mas, depois que proibiram o Hermeto Paschoal de tocar com porcos, desistimos do morcego real…

O Hermeto com os porcos no festival não foi anos depois?
Foi antes. Ou foi depois? Isso quer dizer que reincidiram na censura [risos].

Em compensação, “Gotham City” veio três anos antes de “Cabeça”, do Walter Franco, a outra grande provocação da era dos festivais… Aliás, “Gotham City” nunca entrou em disco nenhum?

Gravada por mim, não. Ficamos famosos depois desse caos, mas ninguém queria falar direito com a gente, todo mundo estava desconfiado, gravação nem pensar. Mas foi então que apareceu o João Araújo da RGE. Ele me convidou pra gravar. E eu fiz esse CD – nesse tempo, era a sigla de compacto duplo – com “Soluços”, “O Crime”, “Só Morto (Burning Night)” e “Sem Essa” (que eu regravaria em Contrastes). E aí não aconteceu nada [risos].

Em certo sentido, essa radicalidade não se realizou no álbum que você fez para a Gal Costa nesse mesmo ano?
O disco da Gal foi gravado com o Caetano e o Gil já no exílio. Não era pra ser obrigatoriamente ousado, mas entrariam músicas do Caetano, do Gil, do Capinam. E do Jorge [Mautner] e do Roberto [Nascimento]. De repente, ele adquiriu esse sentido. O produtor da Polygram, na época, era o Manoel Barenbein, que já tinha feito os Mutantes. Eu fiz a direção musical, fiz alguns arranjos, o Duprat fez outros, o maestro foi o Chiquinho de Moraes… E, claro, tem o som da guitarra do Lanny [Gordin], que é um gênio, um dos nossos gênios descaradamente desperdiçados. É engraçado porque a Gal sempre teve sua força… Mas com 18, 19 anos, ela era uma pessoa fechada, educada. E aí, quando botou os bichos pra fora… Ela, ao contrário da Bethânia, não tinha um compromisso com certa postura, a coisa do “Carcará” e tal. Então, a Gal caiu na radicalidade hippie, assumiu uma Janis Joplin. Na verdade ela tinha mais influência do Gil, que era um bom músico, do que do Caetano. Eles ficavam tocando e cantando sem parar. Eu gosto muito da Gal. Mas uma vez ligaram lá em casa pra perguntar o que eu achava de ela ter posado em uma fotografia com Antônio Carlos Magalhães, dizendo “meu paizinho da Bahia” e não sei o quê… Você está em casa e a imprensa o pega de surpresa com uma porra dessas. Respondi que ela era uma cantora legal, mas burrinha [risos]. Puta merda, que arrependimento ver essa resposta impressa. Mas ela é burrinha, a gente brincava com ela, sabe aquela burrinha inteligente? [risos] Sério, é carinhoso. Em 1969, ela teve a enorme coragem pessoal de enfrentar esse rojão, o que não é pouca coisa.

E esse disco dela (o álbum Gal, que vem depois de Gal Costa, os dois datados de 1969) foi entendido na época?
Digamos que “entender” era o último objetivo [risos].

Depois você viajou para Londres a convite do Caetano, não foi? Para gravar o Transa

Eu estava no Carnaval de 1970 na Bahia, na Praça Castro Alves, e então a Bethânia sai correndo pela multidão, dizendo “Macao, Macao, Caetano quer falar com você. Ele vai telefonar daqui a uma hora”. Era o tempo que eu tinha pra atravessar aquele mar de gente, ir até a casa dos pais do Caetano e atender. “Vou gravar outro disco e sem você vai ficar difícil. Fale com o Guilherme Araújo” – agente dele. “Meu querido, meu querido, você precisa vir aqui – tudo pago, carro, moraria com o Caetano. Vou mandar passagens pra você e Giselda (minha mulher), que precisam pegar esse avião”… O Caetano queria sair daquele clima de bode, de ter sido obrigado a sair do Brasil… O disco anterior gravado em Londres é lindo, mas tem um coração magoado. Ele queria dar a volta por cima, e eu fui escalado. Foi uma experiência maravilhosa, a gente se divertiu pra caralho. Lá tinha mesa de 16 canais, em 1970. No Brasil, tudo era gravado em dois canais, inclusive orquestra… Oba, canal à pampa! Só que na hora de mixar ficou uma bosta [risos]. A gente não conseguia juntar aqueles timbres todos, gravados um em cada canal, ficou um negócio esquisito. O técnico inglês ficava todo entusiasmado com a nossa originalidade, percussão, soluções de voz, assovio, tínhamos uma puta boa energia, era um bando de gente feliz apesar das circunstâncias. Mas ele também estava achando o resultado uma bosta. Achei melhor reduzir aquilo a quatro canais, e então ficou um puta disco.

Tinha muito brasileiro em Londres nessa época?
Tem muito brasileiro em qualquer lugar do mundo, principalmente cearense [risos]. Fui encontrar cearense sabe onde? No Sri Lanka. Naquela época, em Londres, as pessoas apareciam e se agregavam, em grupos de uns 40 talvez. O Mautner estava lá quando cheguei, mas não sei se estava quando fomos embora. No fim, o [artista plástico Antonio] Peticov estava preso, coitadinho, eu levava maçã pra ele, que estava usando roupa listrada como os irmãos Metralha. No festival de Glastonbury de 1971, estava toda uma patota, Gil e Sandra, eu e Giselda, Caetano e Dedé, Tuti e os músicos do Transa, [os cineastas] Neville D’Almeida, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Glauber Rocha e Helena Ignez e a filha deles, Paloma, Rosa, que estava com o Péricles e depois começou a namorar o Bressane… O Bressane era grandão e ficava com os pés pra fora da barraca.

Como foi essa história de Glastonbury?
Era uma grande fazenda, como Woodstock, um lugar com conexão com as pedras de Stonehenge. O Gil até tocou, eu toquei também. Foi lá onde conheci o príncipe de Orleans e Bragança, Dom Joãozinho, o fotógrafo, que se tornou meu amigo. Ele tinha uns 16 ou 18 anos talvez. Eu estava viajando de ácido, e aí um amigo meu me chamou: “vem cá conhecer João, o príncipe do Brasil”. Eu respondi: “oh, meu príncipe” [risos]. Anos depois, em uma praia de Paraty, eu estava com uma namorada atômica…

O quê?
Uma namorada que era física nuclear [risos]. Tinha uma escuna enorme, uma família e um cara com umas crianças na areia me chamando: “oi, Macalé, não se lembra de mim? O príncipe Joãozinho”. Eu reverenciei: “meu príncipe!”. Então ele me apresentou à família real brasileira, todos no convés da escuna, conversando… e comendo banana! Aquilo foi o máximo, a família real brasileira comendo banana [risos]. Acho que a monarquia no Brasil foi mais maluca e generosa do que o presidencialismo. Aliás, nunca teve tanto rei como no Brasil, todo mundo diz “meu rei”, rei Pelé, rei Adriano, rei Roberto Carlos, continuamos vivendo em uma monarquia com uns presidentes malucos. Não foi só dom João VI, ele foi o primeiro de uma linhagem. O Lula não é maluco? O Fernando Henrique não é louco? O Jânio Quadros não era completamente um caso psiquiátrico? O Collor? Sem falar dos militares, a nossa força regular brasileira. Eles ficaram 20 anos pirados até sacar que tinham de pular fora daquele pesadelo. Então quando houve o plebiscito [do sistema de governo], eu fui lá e disse “monarquia”! [risos]. Mas não fui só eu não, o Hugo Carvana, uma porrada de gente, de repente apareceu um monte de monarquista e ninguém entendeu nada [risos].

Mas vamos voltar a Glastonbury…
Então, estavam distribuindo ácidos de várias qualidades, nessa época a gente tomava quase um por dia. Tinha quem fosse careta, mas ficava no meio dos malucos, numa boa. O Caetano, por exemplo. E, em Glastonbury, eu e a Giselda saímos do mato – a gente estava transando – e demos de cara com um casal inglês lindo, os dois nus, com uma criança que parecia um anjo no colo. Sorrimos, eles sorriram. De repente, a mulher abriu a mão e ofereceu um monte de ácido. O apresentador do festival, no palco, dizia ao microfone: “atenção, senhores, não tomem o ácido rosa, o ácido rosa está estragado, tomem só o laranja e o azul”, aos berros [risos]. Os brasileiros estavam em algumas barracas em cima de um morro – só nós montamos nossas em cima do morro, os ingleses ficaram lá embaixo. Eu estava numa barraca pra dez pessoas, emprestada pelo [produtor] Cláudio Prado. Nessa hora, descansando da viagem de ácido, eu e uma amiga portuguesa, Lodo, comecei a ouvir uns gritos de “police, police”. Saí sem entender muito bem e vi o Gil em posição de lótus, no fundo da barraca pequena dele, com um monte de brasileiro lá dentro, uns dez, disfarçando [risos]. Só a Paloma Rocha, filha do Glauber, então com uns 10 anos, estava lá, enfrentando a polícia em inglês. Os policiais levaram a barraca embora e ficamos ao relento. Depois eu soube que na verdade era uma barraca militar, que o Prado tinha roubado no festival da ilha de Wight. Acho que foi no dia de São João. Gil pegou seu acordeom, eu estava com o violão, o pessoal com a percussão, então fizemos uma belíssima festa em torno da fogueira. Eu tinha sido enviado pra reclamar com o Prado. Ele disse que resolveria tudo. Lá pelas tantas, apareceu uma caminhonete com restos da montagem do palco, madeiras, telha, plástico. Fizemos uma coisa extraordinária: de lá de baixo, do caminhão até em cima do morro, montamos uma fila de gente, cada uma passando as coisas pro outro, e construímos um barracão. Só que ninguém teve coragem de dormir debaixo daquele barraco frouxo pra caralho. Então dormimos nos sleeping bags mesmo, todos com os pés voltados pra fogueira. Só o Glauber entrou e passou a noite inteira às gargalhadas, curtindo aquele barraco em Glastonbury. Passou a noite toda gargalhando alto. De manhã, já era o final do festival, e todo o vale estava cercado pela polícia, bombeiros, ambulâncias. O Gil naquela noite tinha começado a improvisar “o sonho acabou” e, no dia seguinte, tinha a música pronta: “Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou” [risos].

Você tem outras histórias boas envolvendo ácido?
Teve a festa de aniversário da [atriz] Maria Gladys na nossa casa em Londres. No meio dos preparativos, apareceu um ponche cheio de ácido, e alguém me disse que era segredo. Mas avisei o Caetano, pois ele não pode tomar nada, nem fumar, beber, cheirar, injetar, porque receia pirar de vez. Quando soube do que iria escapar, ele disse “meu Deus, meu Deus”. Mais tarde, a festa ficou louca, claro, as pessoas ficaram se desconstruindo [risos]. A professora de inglês do Caetano, que tinha passado a tarde por lá e acabou ficando, estava parada falando com a porta. Quando abri essa porta, ela saiu na carreira e nunca mais apareceu. E tinha um cara, o Marcelo. Fiquei muito preocupado com ele. Saímos por Londres e acabamos no Museu de Cera da Madame Tussauds, uma coisa não muito inteligente se você está viajando de ácido. Aí aconteceu. Ficamos olhando e rindo, até que eu me apaixonei pela Branca de Neve, uma mulher linda dentro de um esquife. Mas tinha um detalhe, um mecanismo que fazia a respiração mais leve. Ou não tinha mecanismo nenhum, e eu é que estava vendo a respiração dela. Eu, doidão e apaixonado, ultrapassei a fita, cai de boca no caixão, abracei e comecei a chorar, chorar. Aí veio o guarda e disse: “Mas não pode entrar aí”; e o Marcelo: “Desculpe, seu guarda, mas ele está muito emocionado”. Rapá, pra me arrastar do caixão da Branca de Neve foi uma merda.

Na sua volta para o Brasil, você lançou dois discos pela mesma gravadora, a Polygram. Até então as coisas não estavam muito complicadas…
Não. Só no segundo, o Aprender a Nadar, é que eu tive um problema com a capa. O Lino de Paula, um chargista maravilhoso, fez a caricatura. Mas me mostraram a capa pronta. E eu tinha pedido pra ver antes. Ficou aquela coisa: “ah, mas agora já está pago, fica difícil” e tal. Então pedi cartolina branca, tinta vermelha, cola, uma caixa de fósforos e um fotógrafo. Botei a cartolina no chão do departamento de arte, lambuzei de cola, joguei a tinta e botei fogo em tudo. Tanto que saíram gritando: “Macalé está botando fogo na Polygram, Macalé está botando fogo na Polygram”. E eu expliquei que não era nada, só estava fazendo “contra a capa” [risos]. Depois, nas lojas, o disco era exposto virado pra esse lado que eu fiz, não o da frente. Isso foi feito inspirado pelo Hélio [Oiticica], pela Lygia Clark, pelo Rubens Gerchman, pelo Roberto Magalhães [os quatro citados, artistas visuais]. Vendo esse pessoal, você se liberta, não fica só nesse negócio do jabá, da rádio, do mercado, não sei o quê… bum! Você estoura o negócio.

Em certo sentido, você se considera influenciado pelas artes plásticas, pelo cinema…
Eu só saquei o que era a música de verdade quando fiz a trilha do Amuleto de Ogum. Nele o Nelson [Pereira dos Santos] me deixou totalmente livre. E, no Morcego, ele diz: “É a melhor trilha sonora de um filme meu”. Bacana ele ter falado isso. As pessoas têm de ter coragem pra dizer realmente o que acham, com sinceridade, com honestidade, da sua própria obra e da obra dos outros, sem maledicência, sem escrotidão, sem neurose. Inclusive, deve ter muita saúde mental pra olhar o outro e a obra dele. Eu não tenho tanta, mas me esforço pra caralho.

Fale mais de sua relação com o cinema.
O Amuleto de Ogum foi gravado em Duque de Caxias e em São João do Meriti. Eu faço o violeiro cego que narra a história. Filmamos no trem uma sequência em que matam alguém, um bicheiro. Aí eu comecei a gravar o ruído dos trilhos [imita], tinha um ritmo. Quando parou, fui conversar com o maquinista e vi que ele era uma espécie de músico, pois produzia ruídos no trem e se divertia com isso. “Se eu não me divertir 24 horas aqui, eu enlouqueço”, ele disse, e me mostrou vários barulhos. Tem o coração do trem, os ruídos do trem parando, a respiração [vai imitando um por um], o apito… Então gravei tudo em partes separadas, montei uma bateria no estúdio de cinema, chamei o Edison Machado, botei três charros de maconha e disse “assiste aí e grava”. Ele assistiu à cena várias vezes e depois tocou bateria em cima. Ficou fantástico. Esse filme ganhou vários prêmios.

O Roy Budd, na trilha do Get Carter, com o Michael Caine, também faz uma abertura em que a música se mistura com o ritmo do trem. E o Miles Davis disse que a rítmica da trilha do Jack Johnson partiu desse som do trem nos trilhos…

Preciso ouvir essa trilha, que não conheço. Eu fui daqueles que ficaram esperando o encontro jamais ocorrido de Miles Davis com Jimi Hendrix… Mas voltei a trabalhar com o Nelson no Tenda dos Milagres, adaptado do Jorge Amado, em que fiz a trilha e interpretei o jovem Pedro Archanjo.

O Aprender a Nadar já tinha umas faixas com sonoplastia, umas vinhetas bastante ousadas para um disco de música brasileira.
Não era nem experimentalismo, era numa procura meio inconsciente. “Meu nome é Jards Macalé Anet da Silva/ou melhor… da selva/ou pior… da Silva”, isso foi tirado de uma carta do Gil, em que ele escreveu: “nada faltará aos Jards Anets da vida, da selva, da Silva”. E o Waly Salomão dizia: “vamos fazer um trabalho que tenha uma marca”. Então ele chamou de “morbeza romântica”, que eu não sabia o que era e nunca perguntei [risos]. Mas as pessoas queriam saber e eu comecei a dizer que era morbidez mais beleza. Um dia, muito tempo depois, o Waly me disse: “Macalé, não é nada disso [imitando a voz de Waly], Morbeza romântica é… morbeza romântica”. E eu durante anos dando aquela explicação enorme, mentindo. O lançamento desse disco foi fantástico, pois eu consegui fazer a Polygram alugar uma barca da Cantareira. Botamos som e demos uma festa. Lancei o disco na barca e me lancei na baía da Guanabara [risos]. Eu não sabia que isso se chamava performance, eu queria era fazer uma coisa impactante. Mas claro que tinha um barco ao lado pra me resgatar – a ideia é maluca, mas eu não sou doido [risos]. E funcionou, no dia seguinte, eu estava de novo em todos os jornais.

Engraçado, antecipa a festa que os Sex Pistols deram no barco no Tâmisa…
Isso não é nada, a foto da capa de Contrastes também antecipa a de John e Yoko em Double Fantasy [risos].

Pois é, esse é um bom assunto. Conte a história de por que o CD não saiu com a capa original.
Na capa do vinil, estou beijando a [atriz e escritora] Ana Maria Miranda, que era minha mulher na época. E eu fiz a gentileza de pedir autorização pra reutilizar a imagem. Não precisava ter pedido. Ela é cearense, sabe. Não deixou. Eu devia ter peitado essa… Mas eu não quis briga, virava confusão, talvez tirasse a atenção do disco e ficasse só na polêmica da capa. Então a rapaziada da [gravadora] Dubas foi lá e botou fogo, literalmente. Queimou a metade dela da foto. Ora, tem a letra de “Sem Essa” no disco: “E fazer um álbum de fotografias/Pra depois queimar, lembrar, queimar”. Eles me perguntaram: “o que você acha, Macalé?”,  e eu disse: “Não acho nada, eu preferia a capa original”.

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macalé por macalé

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com as mãos frias
mas com o coração queimando
tô amando
tô passando
tô gravando

 

em 78 por segundo rotações
vou seguindo por segundo
vou sorrindo por segundo
vou servindo por segundo

devagar…
grave UM DISCO devagar
grave UM NOME devagar

“78 Rotações” (Jards Macalé e José Carlos Capinan), do álbum Jards Macalé (1972)

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Discografia Perene

Patrícia Palumbo é jornalista especializada em música e meio ambiente. No rádio, apresenta os programas Vozes do Brasil e Hora do Rush, ambos premiados pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). É autora de dois livros de entrevistas: Vozes do Brasil, volumes 1 e 2.

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SIM
NÃO

mas PODE SER QUE SEJA,
de repente.

“Dente no Dente” (Jards Macalé e Torquato Neto).

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Pilares

Patrícia Palumbo é jornalista especializada em música e meio ambiente. No rádio, apresenta os programas Vozes do Brasil e Hora do Rush, ambos premiados pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). É autora de dois livros de entrevistas: Vozes do Brasil, volumes 1 e 2.

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Alex Antunes: Música é uma coisa livre

A segunda sessão da entrevista se deu no dia seguinte. Antes, fomos a Resende, a cidade mais próxima de Penedo, na tentativa de Macalé comprar um fusca, porque “fusca sobe parede”, segundo o músico. “Se eu comprar uma Mercedes, não vou chegar aqui em cima”. A viagem a Resende é pelas Macalíneas, também conhecidas como Viação Aérea Jovial. Na verdade, trata-se do carro do taxista Renato Soares, ex-piloto de jato das Aerolíneas Argentinas e da Lan Chile, atualmente “motorista, segurança, amigo e ministro das relações exteriores” de Macalé em Penedo. Eles andam pelas ruas fazendo fumaça, falando absurdos em inglês, francês e portunhol. Em Resende, chegamos a uma incrível oficina exclusivamente para fuscas: brancos, azuis, vermelhos, dourados, cinza… O que Macao testou é um fusca do Itamar (1995) prata, única dona. O carro anterior do artista foi totalmente consumido pelas chamas, quando ele deixou o carro escorregar de ré em uma valeta na mata e deu partida com a gasolina derramando. “Eu quero ouvir a buzina”, berra Macalé, “se a buzina for uma merda, não compro”. Voltamos à cidade de Penedo com Macao ao volante do fusca, aproveitando para passar pelas portas das casas de Luiz Melodia, de Malu Mader, do hotel onde Baby Consuelo e Pepeu Gomes ficavam antes de subir a serra para Visconde de Mauá. Depois voltamos a Resende para devolver o fusca. Ele não se entusiasmou muito com o carro. Voltamos para casa com alguns artigos, inclusive as pilhas para os relógios de Macalé – que se revelariam pilhas um tanto misteriosas.

Fale sobre o show e álbum O Banquete dos Mendigos.
Esse é um projeto político [destaca a palavra]. Fizemos em comemoração dos 25 anos da Declaração dos Direitos Humanos, em plena ditadura. Eu queria distribuir o disco nas escolas. Em reunião na casa do Chico Buarque, escolhemos os artigos mais barras-pesadas da declaração pra que fossem lidos entre as apresentações. Era até engraçado. A gente dizia: “esse não, esse é muito burguês” [risos], e então virou uma carta subversivíssima. “Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”, “ninguém será submetido à tortura”, dito assim no meio do governo Médici, em 10 de dezembro de 1973, na presença do representante da ONU, com o museu lotado por 4 mil pessoas e cercado pela polícia. Quem participou foi Milton Nascimento, Chico Buarque, Edu Lobo, Jorge Mautner, Dominguinhos, Gal, Paulinho da Viola, Raul Seixas, MPB4 (na verdade o MPB3, porque o Magro estava gripado) e mais gente… Depois o disco chegou a ser prensado, mas foi proibido. Ficou indo e vindo entre a RCA e a censura, até que eu e o [letrista e parceiro] Xico Chaves fomos lá. O Xico conhecia um cara que tinha estudado com ele e virado censor. O amigo dele burocrata disse: “sabe aqueles caras naquela outra sala?”. Cinco caras estavam em volta de uma vitrolinha. “Isso tudo é SNI [Serviço Nacional de Informação, o serviço secreto da ditadura militar], acho bom vocês irem embora”. A gente se picou, deixou a porra lá, os caras estavam ouvindo o Banquete dos Mendigos! Depois chegou o telex “proibido para todo o território nacional” e alhures. Eu ainda tenho esse telex. Nada a ser feito a não ser esperar. Até que em 1979 foi liberado, fizemos uma tiragem com uma nova capa, e eu e o Xico demos uma grande festa na Quinta da Boa Vista. A essa altura, pessoas desconhecidas começaram a ligar dizendo que jogariam bomba, todo mundo lá iria pelos ares. Eu telefonei pro planalto e disse o que estava acontecendo. Eles responderam que também queriam saber quem está fazendo aquilo. Então colocamos uns seguranças escondidos. A gente não sabia mais se o pipoqueiro era o pipoqueiro, se aquele cara da cadeira de rodas era deficiente mesmo, ficou um negócio louco, mas ficou legal. Distribuímos um caminhão de doces nesse dia pro pessoal da área, doces e direitos humanos. Mas não demorou muito e eu fui preso em Vitória do Espírito Santo, fazendo o projeto Pixinguinha com o Moreira da Silva. Mais tarde, nesse dia, quando vieram me soltar, o delegado disse: “você tem as costas quentes – mas eu ainda te pego”. Minha única parceria com o Moreira da Silva ficou sendo o samba “Tira os Óculos e Recolhe o Homem”, a frase que esse delegado disse quando me prendeu. Eu era casado com a Maninha, a Maria Eugênia Pereira, filha do governador de Minas Francelino Pereira, aquele que disse que “a ARENA é o maior partido do ocidente” [risos]. Depois descobri o que aconteceu. A Amália Lucy Geisel, filha do presidente Geisel, era uma pessoa legal, que gostava de artes e ficou como madrinha do projeto Pixinguinha. O Roberto Parreira, que era o presidente da Funarte, telefonou pra ela e disse: “prenderam o Macalé!”. Então ela ligou pro pai. E o nosso presidente Ernesto: “Mas quem é Macalé?”. Então o Geisel ligou pro Figueiredo, que era chefe do SNI, e mandou parar com a confusão, porque estavam sumindo com as pessoas…

A Amália é que era a musa do Chico, no verso “Você não gosta de mim mas sua filha gosta”?
Ele não diz, mas era.

E o Banquete nunca mais saiu depois de 1979?
Eu passei um tempo da minha vida tentando lançar em CD, mas não adiantou. A RCA fingia que tinha perdido os papéis, ou então tinha perdido mesmo [risos], alguns participantes do disco morreram: Raul, Gonzaguinha, agora o Johnny Alf…

De onde surgiu a ideia do Banquete?
Eu queria fazer um show no MAM [Museu de Arte Moderna] e falava com o diretor da Cinemateca, Cosme Alves Neto, e com a diretora do museu, a Heloisa Lustosa. Eles me disseram que a ONU queria um negócio de direitos humanos, e talvez eu pudesse fazer alguma coisa junto. O meu primeiro show, chamado Sorriso Verão, foi no MAM. Eu começava cantando em uma privada, de pijama, com um jornal policial sangrento na mão. A sala tinha dois cenários, um de cada lado, o da privada e o outro, que tinha um elevador de carga, parecido com uma parede. Todas as cadeiras estavam de frente à parede, era genial. Em seguida, uma porta era aberta, eu saia do elevador e ia sentar na privada, no outro cenário. Então, todo mundo tinha de virar sua cadeira, e os últimos, lá atrás, viravam a primeira fila. Aquele ruído das cadeiras [imita ruídos de objetos sendo arrastados] era muito engraçado.

Você se meteu em alguma outra mobilização política?
Uma vez fui ao escritório do [Oscar] Niemeyer em Copacabana. Pintou um violãozinho velho, o Niemeyer pegou o cavaquinho e começamos a tocar “Brasileirinho” [cantarola um “Brasileirinho” meio torto]. Chegou o Darcy Ribeiro, de camisa aberta, calça branca, chinelão, visitando o Niemeyer pela primeira vez depois de voltar. O Darcy entrou, olhou em volta e disse: “Porra, Oscar, e você sabe lá tocar essa bosta?” [risos]. Foi assim que conheci o Darcy, e partimos pra compor a “Sinfonia Popular Leonel Brizola” – feita com o [sociólogo e escritor] Gilberto Vasconcelos. Mas o Brizola, em campanha, não ouvia. Esquecemos, por pura animação e patriotismo, que na hora da campanha fica um bando de marqueteiro em volta, querendo controlar a jogada. E a gente não estava ganhando nada, muito pelo contrário. O Darcy foi lá e disse que o homem não estava em condições de ouvir. Nós gravamos com Os Cariocas, Luiz Melodia, Orquestra Tabajara, o próprio Gilberto cantando rap… Mixamos isso tudo com aqueles discos de folclore da Funarte e ficou o máximo. Só que os marqueteiros não perdoaram, a sinfonia permanece inédita.

Entre a gravação e o lançamento do Banquete, você fez Contrastes, em 1977.
Sim, a convite da gravadora Som Livre. O João Araújo estava lá e chamou alguns artistas – o Alceu, o Melodia. Gosto muito de orquestração. Pegar a alma da música e vesti-la pra desfilar por aí… Então, no Contrastes chamei Paulo Moura, Severino Araújo, Wagner Tiso, Julio Medaglia, um time da pesada. E está todo mundo na foto da contracapa, os músicos, os técnicos, uma multidão. O Guto Graça Melo estava na produção. Pro filme Tenda dos Milagres eu tinha escrito o “Choro de Archanjo” e quis reunir a formação original da Orquestra Tabajara pra tocar um arranjo do Severino. Era uma orquestra de 30 e tantas pessoas, e eles não se reuniam fazia sete anos, todo mundo chorou na gravação. Então eu estava lá no aquário, e o Severino passando o arranjo com a Orquestra, quando entra uma figura e diz: “Tem de suspender tudo e esvaziar o estúdio, porque o Boni precisa fazer uma gravação já”. Porra, eu tinha reunido a Orquestra Tabajara, e o Boni estava expulsando a gente do estúdio?  “Como é que é?!” Eu disse: “Vai dizer pro Boni que neste estúdio ninguém entra e ninguém sai até a gente acabar de gravar a faixa. Considere esse estúdio sequestrado”, e “bum!”, fechei a porta e tirei o interfone do gancho. O técnico perguntou: “e agora o que é que eu faço?”. Você faz o que eu mando, oras [risos]. Por sorte gravamos de prima, na primeira tomada já saiu tudo.

Outro disco com uma história enrolada é o Let’s Play That, que ficou uns bons anos na gaveta…
Eu e o Naná [Vasconcelos] somos amigos há muito tempo. Eu estava ensaiando no Maracanãzinho a orquestração de “Gotham City” e de repente entra uma pessoa lá, começa a tocar os tambores e pergunta: “posso tocar com você?”. Era o Naná. Ficamos muito amigos. A gente passava horas e horas na vila onde eu morava, em Botafogo, tocando berimbau e guitarra, acompanhando um disco do Jimi Hendrix [risos]. Em 1983, consegui um patrocínio do dono do Ponto Frio, que era namorado de uma amiga minha, pra gravar, eu e o Naná, voz, violão e percussão. Convidamos o Roberto Guima, um músico muito talentoso que tocava clarinete e morreu jovem, afogado, uma bobagem… Gravamos tudo assim, olho no olho. A letra de “Let’s Play That” foi escrita a pedido do Naná, e, segundo o Torquato, coloquei música clássica nela [risos]. Então, no disco, a coisa desse trio se realizou. Mas não negociei o teipe até surgir um selo pequeno do interior de São Paulo, de Porto Ferreira, o Rock Company, em 1994… Quero ver se agora sai pela Biscoito. Mas antes estou fazendo um DVD com o [cineasta experimental] Arthur Omar…

Como vai ser?
Posso dizer que não será um DVD normal, mas não quero adiantar nada. A gente está pensando, conversando. O Morcego foi o lado A, é um bom documento, mas não é inovador como cinema. Quero fazer o lado B. Não vou entrar na saturação da forma já existente. Se aparecer alguma coisa que tenha vitalidade, poesia barra-pesada, desprendimento, uma atitude mais arejada…

Mas seus trabalhos mais recentes, para a Biscoito Fino, são mais comportados do que aqueles antigos.
Não é isso. Uma vez Vinicius de Moraes me deu um poema pra musicar, o “Mais que Perfeito”. E saiu uma seresta linda, profundamente brasileira, clássica até. Não sei explicar como sai. No momento, estou fazendo pequenos temas melódicos e harmônicos complexos. Como vou explicar o que é isso, o que baixou em mim? Eu ouço muito Satie, e ele fez as Gimnopedies, aquelas pequenas peças pra piano. Então digo que são as Macalepedies [risos] e pronto. Música é uma coisa livre, e a gente precisa exercer essa liberdade, porra.

No Morcego, o Gilberto Gil faz uma distinção entre músicos que dialogam com o mercado, como ele, e gente que deixou a carreira correr meio ciclicamente, como você… O que acha disso?
Acho que é bobagem [risos]. Eu não tenho carreira, tenho correria. Se eu estivesse respondendo ao mercadão, aí, sim, ia ficar na pobreza. Na pobreza do que interessa, da essência da coisa.

Você não achou legal o Gil ter sido ministro?
No início, eu achei um símbolo genial. Porra, um dos nossos chegou ao poder, com uma vivência de músico. Mas tem aquelas reuniões intermináveis, viagens… O Gil enrolando a língua daquele jeito, ele enrola todo mundo: “porque quando de repentemente, da pérspectiva das nuances das peripécias, tá me entendendo, meu filho?” [imita Gil com perfeição]. O Gil é mais inteligente que o Caetano nesse negócio de política, pois é mais barroco que o Caetano. O Gil é barroquíssimo, ele leva todo mundo na saliva. É um grande músico, canta pra caralho, mas acho que esse negócio do ministério o estragou um pouco.

Não é uma implicância sua?
Veja, eu faço arte. Não no sentido de ser sacralizado, mas de que eu só boto algo pra fora quando eu tenho algo a dizer.

Mas também não tem certo conforto masoquista em ser um gênio incompreendido?
Eu não gosto dessa incompreensão, não. O Glauber, por exemplo, era um gênio, mas era um perigo. Só depois de o cara morrer e não poder mais responder é que acha o seu lugar… Eu, aos 65 pra 66 anos, estou guardando dinheiro pela primeira vez na vida. Neste mês faço dez shows. Enfim, cada um tem seus seguidores no Twitter.

Você tem um Twitter?
Eu tenho tudo, só não me lembro da senha [risos].

Sua volta, digamos assim, começou com a redescoberta do “Vapor Barato”.
Nos anos 1990, o Waly dizia “o mundo ficou careta de novo”, tudo voltou ao que era antes e pior. E “Vapor Barato” foi navegado por aí… Começou com o filme do Waltinho [Salles], Terra Estrangeira. A Fernandinha [Torres] me contou que ficava cantando a música no set o tempo inteiro. Quando o Waltinho precisava fechar o filme com uma música, ela disse: “Mas eu já estou cantando a música o tempo inteiro”. E ele colocou aquela gravação da Gal, genial, a coragem da Gal com aquela voz, porra, que coisa. E aí o Rappa veio e pum! E “Vapor Barato” pimba! Interessante. Eu dizia ao Waly: “como essa música hippie e datada estourou bem no seio da caretice?”. Nos shows, essa é a música que eu começo a cantar e a plateia já vem junto.

Isso chega a se refletir nos direitos autorais?
Toda a mobilização da Sombrás que deu no projeto Pixinguinha, ou o Banquete dos Mendigos, começou com a questão dos direitos autorais. Já briguei muito por isso. Com o Rappa, deu uma crescidinha, mas depois volta ao normal: R$ 100,27, R$ 128,20… [risos]. Há um momento em que se vai viver a própria vida e se esquece dessa coisa dos direitos autorais, que não chegam jamais. Eu coloquei no crédito automático e nem tomo conhecimento.

Você se considera um cara fácil de trabalhar?
Eu sou, se não tiver crise.

Que crise?
Qualquer uma [risos]. Eu me sinto em plena guerra, o tempo inteiro. Meu pai me levava pra passear no porta-aviões. Não tenho medo de militar, só dos piores. Aliás, tem uma história engraçada. Sou amigo do maestro da banda da Aman [Academia Militar de Agulhas Negras, em Resende], que tem 120, 130 componentes. Quando namorava a Ana de Hollanda, fomos lá com minha mãe. Mas a Ana tem paranoia de militar, é irmã do Chico Buarque [risos], e não queria entrar em quartel de jeito nenhum. No fim, entramos. Primeiro, o maestro homenageou minha mãe, tocando “Carinhoso”. Depois, pra a Ana, tocou “A Banda”, do Chico. Ela ficou encantada, chorou, até o maestro teve de disfarçar a emoção. Eu tenho esse espírito organizativo, de disciplina, entranhado em mim. Se alguém chega em meu território, deve entrar no meu barato. No território dos outros, eu faço o possível pra acompanhar. Só faço questão de horário. Eu ando na hora legal brasileira, e não transijo. Desrespeitar o tempo é perigoso.

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Maldito/Bendito

Patrícia Palumbo é jornalista especializada em música e meio ambiente. No rádio, apresenta os programas Vozes do Brasil e Hora do Rush, ambos premiados pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). É autora de dois livros de entrevistas: Vozes do Brasil, volumes 1 e 2.

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Punk e Samba, Humor e Agressão

Lourenço Mutarelli é curador, junto ao Itaú Cultural, e cenógrafo desta Ocupação. Quadrinista dos mais importantes do país, trabalha também como escritor, dramaturgo e ator. É autor do romance O Cheiro do Ralo, da trilogia de quadrinhos O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto e A Soma de Tudo (partes 1 e 2) e do álbum Mundo Pet.

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playlist +70

Ouça outra playlist de canções macaleias no Álbum Itaú Cultural, blog de música do instituto. A compilação tem 11 faixas e faz parte da série +70, que aborda cantores e compositores veteranos da música brasileira. Acesse!

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Alex Antunes: Furo de Reportagem

Nesse momento, Macalé, falando e trocando as pilhas dos relógios da casa ao mesmo tempo, descobre que os relógios não voltaram a funcionar, mesmo com as pilhas novas. Começa então uma viagem estranhíssima – Macao parece realmente preocupado com o fato de nenhum relógio em sua casa marcar as horas certas, logo com ele, um cara pontual. “Será que o tempo parou?”. Por via das dúvidas, resolvemos parar por ali também. Quando saímos, na sala da mãe de Macalé, ouvia-se um piano. Era a própria Dona Lygia que o tocava. Aos 89 anos, está com as mãos um pouco prejudicadas, mas ainda soa bem. “Ouve só, bicho”, diz Macalé, “ela está tocando ‘Poema da Rosa’, a minha parceria com Brecht – um poema que o Boal traduziu e eu musiquei”. A terceira parte da entrevista deu-se no dia seguinte, meu terceiro – e último dia – em Penedo.

Como é essa sua campanha pela inclusão do amor na bandeira brasileira?
Eu, como um bom ex-aluno do Colégio Militar, jurei bandeira. E, quando você jura, você jura. Simbolicamente jura. Então, jurei a bandeira, e minha relação com o Brasil é… eu não digo patriótica, porque não é esse o sentido, mas no Brasil estou em minha casa. Lendo o dicionário de símbolos, comecei a pesquisar a história da bandeira, a história da república e pimba! O lema original era “amor por princípio, ordem por base e progresso por fim”! Porra, eu me perguntei, “quem foi o filho da puta que cortou o amor por princípio? O que é isso?”. Imagina um erro na bandeira com a palavra amor. Primeiro, seria a única no mundo. Segundo, gerações no Brasil nasceriam sob a égide do amor por princípio, o que melhoraria um pouco a psique da rapaziada… Resolvi então fazer uma campanha solitária. Foi quando ouvi a música “Positivismo”, do Noel Rosa [cantarola]: “o amor vem por princípio, a ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim/Desprezaste esta lei de Auguste Comte/E fostes ser feliz longe de mim”. O Chico Alencar, que era do PT e agora é do PSOL, entrou com um projeto de lei pra mudar a bandeira. Agora está no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça. Mas mexer em símbolo nacional é barra-pesada. Quem também teve essa ideia de botar o amor na bandeira foi o Darcy Ribeiro, quando era senador. E não aconteceu nada, sumiu tudo, ninguém sabe onde foi parar o projeto. Também tinha um cara maravilhoso em São Paulo, o Carlito Maia, que defendia a inclusão do amor, uma porção de gente. Mas vamos fazer umas ações em relação a isso, pode esperar…

Como você começou na música.
Minha formação foi assim: nos 1950, 1960, a Rádio Nacional estava no seu auge. Fui copista da Orquestra Tabajara de Severino Araújo, um mestre. Fui aprender a ler e escrever músicas copiando partituras. Tem a grade, que é toda a orquestração, e o copista faz as partituras independentes pra cada instrumento. Eu ia até a Rua Mairink Veiga, na Rádio Nacional, pra distribuir as partituras que tinha copiado nas estantes dos músicos. Em seguida, eu me sentava na plateia pra ouvir, em minha fantasia, o arranjo que tinha escrito e que, na realidade, eu tinha copiado [risos]. Assim aprendi uma noção de harmonia, de arranjo de metais, de percussão, tudo.

Como você conseguiu esse trabalho?
Eu era amigo do filho do Severino, o Chiquinho Araújo, em Ipanema. Ele tocava bateria e eu violão. Fizemos um grupo chamado Dois no Balanço, que foi aumentando até chegar a Sete no Balanço. Isso deve ter sido em 1960, 1962. Estava estudando na Pró-Arte: orquestração com o Maestro Guerra Peixe, teoria com a Esther Scliar – uma mulher fantástica –, orquestração e regência com o Mário Tavares… Estudei violoncelo… E também violão com o Jodacil Damaceno, que estudou com o Turibio Santos. Pedi pro maestro Edino Krieger, então diretor da Orquestra Sinfônica Nacional, que me deixasse copiar Brahms, Beethoven, pra aprender os instrumentos todos. Eu e meu amigo Dori Caymmi, em Copacabana, a gente com 17, 18 anos conhecia as pessoas mais incríveis, ouvia os sons mais incríveis na vitrolinha.

E como você entrou no espetáculo Opinião, em 1965, com a Bethânia?
O Roberto Nascimento, que era meu parceiro musical, tocava com a Elizeth Cardoso, a Divina, e a Elizeth gravou nossa música…

Você foi gravado pela Elizeth?
Foi a minha primeira gravação. Mas o Roberto, que ia tocar com a Elizeth, me pediu pra substituí-lo no Opinião. A Bethânia chegou ao mesmo tempo da Bahia, pra substituir a Nara Leão. O pai dela então mandou o Caetano pra tomar conta, vieram os dois. E eu convenci minha mãe a deixar a Bethânia ficar hospedada em casa. O Caetano já me conhecia, tinha passado pelo Rio em 1958, pra fazer a sonorização de um filme do Alvinho Guimarães, o cara que depois faria a capa do Transa, e tinha falado de mim pra Bethânia. Naquela ocasião, eu quase fui pra Bahia estudar com o Smetak, com o Koellreutter, era forte o negócio lá. Então, em 1965, a Bethânia ficou lá em casa e o Caetano nas proximidades. Algumas pessoas tinham uma coisa experimental muito forte, era época de ebulição criativa, uma rapaziada… o Hélio [Oiticica], o Glauber, o Leon Hirszman, o Nelson [Pereira dos Santos], o Joaquim Pedro [de Andrade], o Bressane… Tropicália é um termo do Hélio, registrado em 1958. O que o Caetano e o Gil fizeram foi um pensamento dentro desse pensamento.

No Morcego, há cenas bacanas de você abraçado com a Bethânia nas ruas do Rio…
Eram seis e meia da manhã em Ipanema, a gente vinha de uma noite muito louca.

Você namorou a Bethânia?
Namorei. Mas a gente gostava mais da música. Namorar era uma consequência.

Você namorou a Gal?
Não, a Gal namorou a Bethânia [risos].

Fale da “patota” do Solar da Fossa…
O Solar da Fossa era uma hospedaria em Botafogo, na verdade se chamava Pensão Santa Teresinha. Durou de meados da década de 1960 até o começo da década de 1970, acho. Era um tremendo ponto de encontro. O [artista tropicalista] Rogério Duarte morou lá, o Paulinho da Viola também. Eu não morava lá porque eu tinha mãe [risos], mas a gente fez um trio, o Rogério no violão, o Paulinho no cavaquinho e eu no violoncelo.

Tinha nome esse grupo?
Não tinha, mas hoje eu chamaria de Os Esdrúxulos [risos]. É interessante como o Paulinho tem um lado experimental, uma curiosidade, e também essa coisa arraigada do samba… Mas ele se arrisca, nos seus choros, por exemplo. Só que ele é uma pessoa sensata [risos]. Pensando nos sambistas, Cartola, Nelson Cavaquinho, agora a gente está acostumado, mas aquelas melodias são coisas incríveis, criativas. E eles também são sambistas de verdade.

E como você se equilibra nessa coisa de ser tão sambista e tão contracultural ao mesmo tempo?
Porque o samba é a contracultura [risos]. Eu treinei meus ouvidos e aprendi que música é uma coisa aberta, generosa, qualquer forma de som. E, com seu ouvido, você vai regulando o som que quer ouvir. Pois quando se quer ouvir um som se ouve. Ele está dentro da cabeça. Esse bando de informações dessas formas de música é a carteira de identidade dos povos. Eu não escolho ser brasileiro ou ser americano, meu ouvido não escolhe isso, meu ouvido quer música. Como eu me desenvolvi até chegar a ponto em que qualquer som do mundo é música, o tempo inteiro, então sou organicamente sambista, como sou organicamente rock ‘n’ roll, como sou organicamente bolerista… é música. O nome da forma tanto faz, interessa é que o som chegue, mesmo em forma de silêncio, que é sua forma máxima [tom eloquente]. Acho isso, você pode achar outra coisa [risos].

Vamos a um assunto polêmico. Como foi seu afastamento dos baianos?
Ah, os baianos [suspira]. Não aconteceu nada com os baianos.

Mas e a sua briga com o Caetano?
Foi porque não botaram crédito no disco Transa. Não botaram nada, apenas “Caetano Veloso – Transa”. E os caras que ralaram fazendo esse trabalho tão bacana, Tuti Moreno e Áureo de Souza, percussão e bateria; Moacyr Albuquerque, baixo; eu e o Caetano violão e voz; e eu com os arranjos e a direção musical? Aí a “transa” vingou no som, mas não vingou como obra.

Mas não tem uma capa original com os créditos?
Não tem nenhuma. Eu não ia ficar brigando à toa e malucamente com o Caetano por causa dessas coisas. E a decisão nem foi de ninguém. O cara mandou a arte, justamente o Alvinho Guimarães, que conheci com o próprio Caetano em 1958, os dois apresentados pelo Torquato. O Caetano pediu que ele fizesse a capa e o cara fez um abajur [risos], vá pra puta que pariu [risos]. A gente estava voltando de fora, e o crédito é trabalho: “pô, quem fez isso aí, chama o cara”. É uma demo de seu trabalho de produtor. Eu boto o nome de todos, até o nome da cachorrinha da mulher do Julio Medaglia [risos], a Joaninha, que foi até o estúdio gravar “Cachorro Babucho”. Mas confesso que não pagamos o cachorro, ele acabou latindo de graça.

Um colecionador me garantiu que as primeiras três ou quatro edições do Transa têm os créditos completos…
Mas não tem. A primeira não tem e a última também não tem crédito nenhum. Tem em alguma das primeiras, que é um papelzinho preto solto, com os créditos e tal.

E aí você brigou com o Caetano por causa disso…
Eu briguei formalmente por causa do crédito e aí começou o pau. O Caetano lá pelas tantas dizia coisas, como sempre diz, e vinham me perguntar. Em uma reportagem daquelas: “Caetano diz que no Rio de Janeiro só tem plumas e paetês”, eu respondi: “mas quem trouxe as plumas e paetês pro Rio foi o seu Caetano Veloso” [risos] – ficou nessas coisas. Então um dia no aniversário da Marieta Severo, na casa dela, ele passou por mim e disse “sabe que estou com saudades de ouvir você cantando?”. Porque ele fez o tal do Cê, que é a sonoridade do Transa. Ele levou aquele timbre pro , tanto que eles falam “essa é uma homenagem a Macalé” e não sei o que lá. Quando eu soube dessa eu disse: “bom, o rapaz está melhorando, vamos conversar”. Aí eu fui ao show dele e tal, gostei… Eu gosto do Caetano, independentemente da briga. Nessa confusão toda, tem horas daquela coisa meio torta, como quando o Caetano me chamou de canalha publicamente, mas aí eu não me movo e a babaquice vai passando [risos]. Porque eu abria minha boca pra falar e era um acontecimento. Um negócio maluco. Virou uma discussão séria e não é tão sério assim, às vezes o Caetano é um debochado tamanho que parece sério, e as pessoas acreditam.

O Caetano chamou você de canalha por quê?
Os xingamentos não têm mais força. Quem se incomoda de ser chamado de “patife”? [risos]. E de “filho da puta”? Mas “canalha” ainda tem certo apelo. O Caetano me chamou de canalha na polêmica do cachê do Paulinho da Viola na homenagem ao Tom, no réveillon de 1996, quando ele ganhou menos que Gil, Gal, Chico, Caetano e Milton.

E o Paulinho tinha razão?
Não tinha, na verdade eu entrei na discussão só de sacanagem [risos].

E como foi a história do “Rio sem Tom”?
Isso foi um disco promocional que fiz pra Continental, já na década de 1980, com “Blue Suede Shoes”, como preparação pro 4 Batutas & 1 Coringa. Acontece que eu fui à praia uma vez, não ia à praia fazia muito tempo. Era outono, um desses veranicos… e notei a água muito suja. Foi meio o início dessa poluição terrível. Aí passou uma camisinha de vênus usada boiando, bem no meu nariz, puta que pariu… Lá atrás depois passou uma seringa com agulha, e até um sanguinho lá dentro… E finalmente um cagalhão deste tamanho, mas um cagalhão mesmo, um toletão [risos].  Aí eu pensei, quer saber? Fiz a música, peguei o “Samba do Avião” do Tom e peguei Caymmi, “o dengo que a nega tem” virou “é dengue que o Rio tem” [risos]…

Mas não teve a ver com uma música do Tom, “Águas de Março”, ou alguma outra, ser usada em campanha publicitária?
Não tem nada disso! Pelo contrário, eu botei o Tom como a salvação, tanto o Tom quanto o Caymmi são a coisa bela do Brasil, do Rio. “Vamos a la playa/conjuntivite hepatite cistite”, aquele horror, mas de repente entra “minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro” e é positivo. Só que alguém veio assim com maldade, como você veio também. Estava voltando da praia pelo Jardim de Alah, aí eu cruzo com o Tom disfarçado, chapelão deste tamanhão, um toalhão, na maior, passando incógnito [risos]. E ele me diz: “ah, Macalé, andam dizendo que você fala mal de mim por aí”. “O quê? Eu, Tom?”, e aí começou uma conversa louca. “ah, já sei, eu fiz uma música em sua homenagem e estão dizendo que é contra você – ô, Rio de Janeiro filho da puta”. “E que música é essa?”. Então eu cantei a música pra ele e, na parte do “minha alma canta”, ele abriu os braços como o Cristo Redentor e cantou junto. Ele sacou. É uma homenagem.

Dá para acreditar, vendo esse quadro com o Tom aí na sua parede. Por falar em homenagem, vamos falar do 4 Batutas, em que você gravou Paulinho, Lupicínio, Nelson Cavaquinho e Geraldo Pereira. É um belo álbum…
É, ficou com outra voz, outra pessoa, diferente das minhas coisas anteriores.

Esse disco é respeitoso, não tem o elemento de deboche…
Nenhum disco meu tem deboche. Tem humor. Humor e sacanagem frontais [risos].

Quando falo em deboche, penso na sua interpretação de “Princípio do Prazer”, no festival Abertura…
Ah, sim, mas aquilo é um chorinho na realidade. Tirando toda a confusão, se você for ver, é um choro brasileiro.

Um choro contracultural?
Ficou louco porque comi rosas e maçãs, toda aquela encenação, mas em princípio é a maior pureza [risos]. Aconteceu o seguinte: pela primeira vez, eu cantei só com o violão. O violão e a camisa do flamengo. Aí a música foi classificada, e eu não queria repetir o arranjo. Então conversei com o Oberdan [Magalhães], grande figura, o fundador da Banda Black Rio: “vamos botar um arranjo legal, mudar tudo, a gente tem só dois dias, então vamos lá formar uma banda”. E mudamos tudo. Eu queria tocar prato, tktchktk, tipo o Donga. A Clementina de Jesus estava lá no festival, então eu bati na porta dela no hotel e disse: “faz um favor pra mim, eu estou querendo tocar prato” – fui com o prato e com a faca na mão [risos]. E ela: [imita a voz grossa da Clementina] “veio falar com a pessoa certa, eu aprendi com o Donga”. Bicho, eu fiquei tocando prato, violão, foi uma noite engraçada e o samba rolou, tatchkatunda. No dia seguinte, no festival, peguei meu prato e faca e fomos passar o arranjo novo. Eu estava meio titubeante, mas ficou bonito. Só que a televisão não dá comida, você fica o dia inteiro à disposição, aquela tensão, “não saia agora pois é ensaio”, e não comemos nada. Aquela fome filha da puta, e eu reclamei não sei pra quem. Quando estava na coxia, prestes a entrar no palco, veio uma moça e me botou uma maçã na mão. Tipo, porra, até que enfim pintou um rango. E, quando eu ia entrando, veio um cara correndo e me botou uma rosa na mão. Coloquei as duas, a maçã e a rosa, dentro do prato – e ficou legal, a coisa já estava se fazendo, porque meu negócio é o improviso. Cantei a primeira parte da música e, quando a banda começou a improvisar, comecei a comer a maçã. Lá pelas tantas, inventei de comer também a rosa [risos]. Não contente com isso, no entusiasmo, eu esqueci o tempo do improviso e, na hora de cantar de novo, estava com a boca cheia de rosas e maçãs. Então foi aquela cusparada pra cima da câmera. Em seguida, peguei o prato e a faca pra tocar, perdi a dimensão da força e quebrei o prato, acabou a música, acabou o prato, e até hoje eles botam o teipe no Multishow [risos]. Isso ficou falado… Teve duas manifestações que achei interessantes. Uma foi a da minha mãe: “Eu não lhe disse pra não comer de boca aberta?” [risos]. A outra aconteceu quando eu estava olhando uma vitrine; chegou uma mãe e uma criancinha deste tamanhinho, eu olhei pra a criança e sorri, então ela fixou o olhar em mim, puxou a saia da mãe e disse: “mãe, esse não é o moço que come flor na televisão?”. Aí eu pensei: “estou salvo”, foda-se [risos]. Esse festival tinha o Walter Franco, com “Canalha”… canalhaaa [canta]…

“Canalha” era em outro festival, nesse era o “Muito Tudo”. Ele jogou dados invisíveis com o Julio Medaglia. Tinha o Melodia, o Mautner cantando “Bem-te-Vi”, o Djavan…
O Caetano estava lá cantando a música do Jorge Ben de bustiê…

Não me lembro disso, essa não está no disco do festival. Ontem você estava contando que comprou a câmera super- 8 em 1969, no Festival da Selva, em Manaus…
Eu e o Capinam compramos nossas câmeras. Passei as décadas seguintes filmando, até a câmera desaparecer em 1987. Usei alguma coisa desse material nos meus espetáculos Cinemacalé. Cinemacalé 1 foi editado por mim e pelo Arthur Omar, com cenas dos longas em que apareço. O Cinemacalé 2 foi editado com o Sami Abujamra, com os filmes e material em S8. O Cinemacalé 3 vou fazer, é o lado B, com sexo, drogas e rock ‘n’ roll.

Mas você não filmava sexo, certo? Talvez drogas?
Filmava! Sempre filmei as minhas trepadas. Só não mostro porque acho desrespeito às moças… E algumas trepadas eu só gravei. Algumas eu destruí a pedido das moças, e outras devolvi. Mas ainda tenho muitas cassetes de trepadas.

Você é mulherengo? Faz referência a várias esposas e namoradas nesta entrevista.
O amor da minha vida é a música. Primeiro a música, depois tudo que vier eu traço [risos]. Aliás, tudo que vier também não, não é qualquer nota [risos]. Foram dez, agora de olho na décima primeira.

Quem é?
Digamos que é a neta de uma amiga minha.

Tem suruba também nos seus filmes?
Exterminei uma suruba maravilhosamente. Essa história de suruba é muito chata, enfiam o dedo em você, põe o pau no seu ouvido, a xoxota no seu olho, nada a ver, é um horror [risos]. Uma vez eu cheguei e estava pronta a suruba. Aí nego ficou grilado: “o Macalé não gosta de suruba” e tal [risos]. Em vez de dar um esporro, fui pelado até o meio da cama, no meio daquele monte de gente, e fiquei quieto. Então foi saindo todo mundo de fininho, e eu acabei com duas na cama. O resto sumiu. Ficou de um tamanho confortável essa suruba [risos].

Você conhece as músicas do Serge Gainsbourg com ruídos reais de sexo, com a Jane Birkin? Está no álbum Melody Nelson.
Não, não. Quero ouvir. Eu tenho material suficiente pra gravar um disco solo de trepadas, chamado Foda-se, naturalmente [risos]. Por outro lado, tenho orgulho de ter gravado o único peido em disco comercial da indústria fonográfica brasileira [risos]…

Onde está esse peido?
Está em Contrastes, na música “O Passarinho do Relógio” [cantarola o trecho], entra o ruído da descarga e aí vem o peido… É a primeira vez na vida que comento esse assunto, esse é o furo da sua reportagem.

Então você creditou o cachorro, mas não deu crédito para o peido [risos]. Dê uma última declaração, para não acabarmos exatamente nesse assunto…
Aqui vai então uma frase paranoica com que o Glauber costumava se despedir: “Não diga que me viu, para a sua segurança pessoal” [risos].