trilha sonora para teatro
Delirium Ambulatorium (Surto)
Por Jards Macalé
Conheci Lygia Clark através de Hélio Oiticica, é claro, e logo nos tornamos amigos. Era o ano de 1967 e comecei a frequentar sua casa na Rua Prado Júnior, em Copacabana, quase Leme. Também através de Lygia e Hélio fui conhecendo (pessoalmente) Rubens Guerchman e Roberto Magalhães. Rubens me convidou a fazer a trilha sonora do filme sobre seu pai – um artista gráfico barra-pesada – e Roberto fez o cartaz da primeira comemoração do dia 7 de setembro em Brasília pós ditadura. Era uma bandeira brasileira sofisticadíssima, sem a frase “ordem e progresso”. Anos depois perguntei a ele se podia transformar aquela bandeira em cenário para um show meu. Ele aquiesceu e até ajudou a fazê-la maior. Ainda hoje, volta e meia, eu a uso.
Em 1982, Lygia estava imersa em experiências terapêuticas corporais. Já tinha pulado da moldura há muito e sua experimentação encontrava o corpo humano como suporte. Convidou-me a participar usando objetos que representavam os quatro elementos da natureza: água, terra, fogo e ar. Com eles, fazia o que chamava de “preencher os buracos do corpo”: sensibilizava as “zonas mortas”, tornando-as vivas e fazendo com que o corpo, estimulado pelos objetos, se tornasse inteiro.
Passei dois anos entregando meu corpo ao colchonete cheio de areia (terra), onde ela passeava com os elementos-objetos (água, fogo e ar), preenchendo os “buracos”, sensibilizando-os. Saía das sessões leve e pleno. Inteiro.
Diante das pressões políticas e das dificuldades de trabalho, entre outras questões, surtei em 1981. Um dia vesti a bata branca que Jorge Amado havia me dado para fazer o personagem de seu livro Tenda dos Milagres (Pedro Arcanjo, os olhos de Xangô), que Nelson Pereira dos Santos estava filmando. Coloquei os colares do santo e, com a espada de meu pai (oficial da Marinha de Guerra do Brasil), fiz discursos libertários pelas ruas do Rio.
Vendo que eu não estava lá muito bem, Maninha, minha mulher na época, e meu amigo Xico Chaves (artista plástico e performer) me levaram até Lygia. Pediu que me deixassem com ela, dizendo que telefonaria para eles assim que eu retornasse à “normalidade”. Deitou-me no colchonete de areia e sumiu do quarto. Lá pelas tantas voltou com uma xícara de chá de camomila e disse: “Tome este chazinho, este calmante (Lexotan) e procure relaxar”. Como Lygia tem o mesmo nome de minha mãe, transferi para ela o sentimento de proteção materna.
Já sonolento, eu a vi trepada numa cadeira colocando um pano na janela para quebrar a luz. Não tinha cortina e a luz da tarde era forte. Desceu da cadeira e sumiu de novo. Apareceu com um livro e disse: “Vá lendo este livro que você vai melhorar”. Era o Poema Sujo (escrito em 1976), de Ferreira Gullar. Saiu deixando a porta entreaberta: “Qualquer coisa, chame”. Comecei a ler. O poema era barra-pesadíssima. Adormeci.
Passei dois dias dormindo. Quando acordei ela estava sentada na cadeira ao pé da janela lendo o livro que me dera. Sorriu para mim: “Como está se sentindo?”. “Bem”, respondi. “Vamos à cozinha que vou fazer um cafezinho.” Enquanto fazia o café ela me falou sobre o grave problema dentário pelo qual estava passando, reclamando do preço do dentista e dizendo que tinha de vender algumas obras para pagar o tratamento. “Vou telefonar para sua casa e pedir que venham buscá-lo; sente-se em condições?” Respondi que sim e acrescentei: “Peça que tragam roupas, porque não vou sair de bata e colares por aí”. Ela riu.
[Originalmente publicado na Continuum. Acesse.]
lygia clark e jards
mãe estética
Por meio de Oiticica, Jards conheceu a artista plástica Lygia Clark, outra grande influência em sua carreira – e em sua vida. Filho de uma Lygia, Jards acabou sendo “adotado” por outra. “Ela se tornou a minha mãe estética.” Certa vez, durante um espetáculo de Tom Jobim no Canecão, no Rio, a história de amor por ambas as figuras maternas ganhou um momento especial. “Levei as duas, minha mãe Lygia e minha mãe estética Lygia. Antes do show, fui lá atrás pra falar umas besteiras, conversar. Aí me arrumaram uma mesa central, um pouco afastada do palco, e eu me sentei entre as duas. Tom Jobim, meu amigo, mas muito do sacana, começou a apresentação. E lá pelas tantas, quando ficou sozinho ao piano, ele disse: ‘Essa’, com aquela voz, ‘essa é para as Lígias.’” Assim que o maestro tocou os primeiros acordes de “Lígia”, Jards não resistiu e caiu no choro. “E as duas Lygias me consolando… Foi um momento histórico pra mim, maravilhoso, mas sentimental demais. Depois vi que, porra, eu poderia não ter chorado tanto e jogado uma pedra no Tom Jobim e no piano pra ele não me sacanear assim! Não estava combinado, pô.”
Mais tarde, em 1974, Jards dedicaria o disco Aprender a Nadar a Lygia Clark e Hélio Oiticica.
(Trecho do perfil de Jards Macalé escrito pelo jornalista Paulo Terron para a publicação impressa desta Ocupação)
Seção de vídeo
“macaleia”, de hélio oiticica
Em 2010, na exposição “Hélio Oiticica – Museu é o Mundo”, o Itaú Cultural expôs na Casa das Rosas a obra “Macaleia” (1978), parte da série Penetráveis — espaços de vivência sensorial criados pelo artista, uma homenagem a Jards.
reger um trem
“Participei profundamente, tanto como ator e escrevente, da trilha sonora dos filmes ‘Amuleto de Ogum’ e ‘Tenda dos Milagres’. Em ‘Amuleto’ cheguei a reger um trem na Baixada Fluminense.
[…] estava de nagra (gravador portátil especial para cinema) entre a máquina e os vagões colhendo sons de rodas em trilhos de trem. Cada vez que as rodas passeavam na junção dos trilhos faziam ritmo que aproximava do batuque de candomblé… tchudum/ tactungumtac/ tchudum… […] E o trem começou a resfolegar, gemer nas curvas, espaços e ritmos variados alternavam, postes e casas passando na beira da via férrea abriam espaços sonoros. O trem começa a parar na estação, chia, guincha, harmônicos de ferro fazem acordes, desreprime-se… sssssschuuuuuu… ssssssss… ccccccccchhhhhaaaaaaaaaaaa. […] Amigos: Melhor que reger a Orquestra filarmônica de Nova York é reger uma Composição da Rede Ferroviária Federal (RFF) em Duque de Caxias!!!”
(em “A província Makalé na bacia do Prata”, publicado na Folha de S.Paulo em 2 de maio de 1982. As ênfases são nossas.)