Para adentrar na ilha, é preciso atravessar as águas.
É preciso ouvir o vento, reverenciar o tempo.
Para conhecer Lia, é preciso ouvir o que o mar nos diz.
É preciso ouvir o que ela nos canta de lá.
Convidamos você a ocupar cada poro de seu corpo com a beleza e a potência dessa mulher e artista imensa que é Lia de Itamaracá. Desejamos que cada imagem, som, texto e ideia cheguem até você como um sopro, como uma brisa que vem do mar. E que esse vento possa também assanhar seus cabelos e pensamentos. Esperamos que o balanço da ciranda lhe traga muitas perguntas e algumas respostas sobre a mulher, a música, a artista e a ilha que ela traz no nome.
Mergulhar nas águas de Lia é conhecer um pouco mais sobre uma parte fundamental da história do Brasil. Lia é única e muitas. É um batalhão de inúmeras vozes e sons. Farol. Tradição viva e pulsante. Uma reinvenção constante.
Lia é o tempo, é a natureza em movimento. Como quem navega, desejamos bons ventos e um mar abundante.
Pedimos licença e saudamos as forças de Lia de Itamaracá.
Seção de vídeo
Por que precisamos falar de Lia de Itamaracá?
“[Lia de Itamaracá] é uma artista que simboliza a cultura popular, o que temos de mais brasileiro e o que, ao mesmo tempo, rompe com os limites que, geralmente, são colocados aos artistas que se inserem nessa dimensão que chamamos de popular”, afirma Michelle de Assumpção, jornalista, biógrafa da homenageada e uma das cocuradoras da “Ocupação Lia de Itamaracá”.
Neste vídeo, Michelle e Alessandra Leão, cantora e também cocuradora da mostra, falam da importância de Lia e da ciranda, atreladas ao sentimento de pertencimento cultural.
Depoimentos gravados em fevereiro de 2022, de forma remota.
Um domingo de sol com Lia
por Michelle de Assumpção
“Lia! Ô Lia!” Os vizinhos já esticavam a cabeça para fora dos portões para saber quem tanto chamava pela figura mais famosa da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco. O domingo e o sol de quase meio-dia deixavam a rua deserta. Estranhamos que tivesse saído para fazer qualquer coisa na rua. Ainda mais porque Beto, o seu produtor, avisara da minha visita a fim de fazer mais uma entrevista com ela. Àquela altura, a biografia da artista, encomendada pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), já estava bem adiantada. No entanto, sentia falta de captar uma Lia que não vemos no palco, nos filmes ou nos tantos depoimentos dados a jornais, emissoras de TV, periódicos diversos etc.
Depois de muito chamar o seu nome sem retorno, dei uma volta até a rua de trás e entrei na casa de Chica, a sobrinha que Lia criou como se fosse filha. As casas têm acesso uma à outra e, pelo quintal de Chica, cheguei ao de Lia. O som alto do brega que Toinho escutava me fez continuar quase gritando, mesmo já dentro da casa. “Cadê Lia, Toinho?”, perguntei. “Tá aí dentro, não?”, respondeu o marido, dando um gole na cerveja e voltando ao papo com os amigos. Foi a primeira vez que entrei na casa da artista. Era quente, simples, colorida e de poucas mas valiosas lembranças.
Na meia-parede que separa a sala do único quarto, destacava-se um retrato amarelado e quase apagado pelo tempo. É o único registro que Lia guardou de Dona Matilde da Conceição, a mãe que a amamentou até os 7 anos de idade. Dona Matilde foi a segunda esposa do agricultor Severino Nicolau Correia do Nascimento, com quem teve sete filhos. Lia veio ao mundo no dia 12 de janeiro de 1944, em uma casa na Praia do Sossego. A mãe sustentava a prole com os produtos do plantio de Severino: batata-doce, inhame, macaxeira, amendoim e tudo mais que ele levava quando visitava as crianças. Certo dia, decidiu se separar de vez do homem – e ficou sem as providências.
Ela passou a buscar no mar o alimento para os filhos. Voltava com o cesto cheio de ostras, mariscos e caranguejo. Lia credita sua força e vitalidade aos caldos e ensopados que a mãe preparava. Depois, cansada de trabalhar ao sol para ter o que dar de comer aos filhos, Dona Matilde aceitou quando a chamaram para o serviço doméstico na casa de Santino de Barros Monteiro, proprietário de um extenso coqueiral na orla da ilha, que fez fortuna extraindo e exportando seus frutos. Lia dividia os serviços dessa casa com os seus irmãos (para onde todos se mudaram). Fazia as refeições à mesa, com toda a família do patrão – que chamava de “painho”. Sentia-se, com isso, parte daquela família.
Lia morou e trabalhou na casa até os 25 anos de idade, quando decidiu ir embora com um namorado para Igarassu, município vizinho de Itamaracá. Voltou pouco tempo depois de uma decepção, decidida a investir em seu sonho de menina: ser uma cantora famosa.
Repassava essa primeira parte da história de Lia na memória enquanto seguia pela ilha à sua procura. Fui ao mercadinho onde ela costuma fazer as compras. Passei no bar de Dona Rosa. Nada de Lia. Depois, ao longe, a vi caminhando contemplativa, voltando da praia. Sentamos mais uma vez ao bar de sua amiga e pedimos uma água de coco.
Ela contou que decidiu dar uma volta na praia por conta da zoada da aparelhagem de Toinho, um hábito quase sagrado aos domingos. Naquele dia, porém, a música atrapalhava a sua concentração. Precisava decorar uma composição nova para o disco Ciranda sem fim, em fase de gravação em um estúdio do Recife, sob a direção do inventivo DJ Dolores. A ciranda estava dando trabalho: a letra era extensa e havia mais variações do que estava acostumada a cantar.
“Lia, você será sempre a rainha da ciranda, mas, no seu show, canta maxixe, coco, maracatu… Então, antes de qualquer coisa, você é uma cantora. Até bolero, quando quer, você canta no palco. Agora, você vai fazer isso em estúdio, com os músicos e os instrumentos certos do bolero”, pontuou Beto. Lia, mais tranquila e confortável, explicou: “Não que eu vá deixar de ser cirandeira ou mudar minha estrada, mas quis mudar um pouco para ver se podia ir mais além”.
Não existia ciranda na Ilha de Itamaracá antes que a própria artista começasse a promovê-la. A ideia de ser cirandeira veio com uma música que estourou nas rádios de todo o país em 1969: “Essa ciranda quem me deu foi Lia”, na voz de Teca Calazans, capixaba radicada em Pernambuco. Os seus quatro primeiros versos diziam: “Eu estava na beira da praia / ouvindo as pancadas das águas do mar / Essa ciranda quem me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá”. Foi o suficiente para Lia empoderar-se, sentir-se personagem e criadora da composição.
Decidida a cantar cirandas, começou a frequentar o Pátio de São Pedro, lugar que abrigou disputados festivais ao longo dos anos 1970. Lá, arregimentou músicos, dançarinos, repertório e, em 1974, fez a sua estreia no palco. Um início de carreira notável, pois, contrariando a tradição mantida até os dias de hoje entre os mestres cirandeiros, Lia não compunha, tampouco improvisava. Ela chegou quebrando as regras do gênero e recusando os limites colocados aos artistas da chamada cultura popular. A sua ciranda era da tradição, mas também do espetáculo.
O sucesso quase instantâneo materializou, na Lia da Ilha de Itamaracá, a personagem criada pelo Mestre Baracho, verdadeiro autor da famosa canção. E foi resultado também da magia provocada por sua imagem e por seu som: uma negra retinta de 1,80 metro de altura, sorriso largo e voz que atravessa os ouvidos para ficar gravada junto às nossas memórias mais antigas. Um canto de sereia que seduz por um misto de nostalgia e inocência, com um chamado à brincadeira e à união.
O convite para o primeiro disco veio na sequência, enquanto trabalhava como cozinheira, o que lhe garantiria o sustento e a futura aposentadoria. A rainha da ciranda foi lançado em 1977 e consagrou a sua imagem como a maior referência do gênero em todo o país. Ela virou uma espécie de embaixadora da ciranda e passou a fazer shows em diversas capitais brasileiras, geralmente em eventos ligados ao turismo. Aos finais de semana, após preparar as peixadas e outras iguarias do mar no bar Sargaço, na orla de Jaguaribe, ela assumia o microfone e mandava ver na ciranda, para a diversão dos veranistas da ilha.
Lia também passou, depois, pela cozinha de uma escola. Trabalhava em dois turnos como merendeira e, diariamente, preparava o alimento de cerca de 300 jovens. Sentar com ela em uma tarde, em Itamaracá, é testemunhar o resultado dessa relação de afeto e troca de saberes que promoveu durante todos os anos em que comandou as panelas e a ciranda. “Ô meu fio, painho tá bem?”, pergunta a um ex-aluno que passa. “Ensinei tudinho a dançar ciranda quando estava na escola”, orgulha-se.
Os anos que se seguiram ao lançamento do primeiro disco foram de maré baixa e seca. Ela sofreu com a falta de apoio e a invisibilidade, quase abandonou a carreira. Conheci Lia de Itamaracá – de quem ouvia falar pelas famosas rodas de ciranda na ilha, sem nunca ter ido a uma – nos bastidores do festival Abril pro rock (ApR), em abril de 1998.
O manguebeat havia descortinado o universo das culturas populares: o maracatu, o coco e a ciranda. O festival era fruto desse movimento, um caldeirão das novas tendências e experimentações que atraía profissionais da música de todo o país. Depois da noite memorável no ApR, Lia estampou a capa de importantes cadernos culturais e inaugurou uma nova fase em sua trajetória. O segundo disco, Eu sou Lia, foi lançado dois anos depois, seguido de uma turnê pelo Brasil e na Europa, onde o álbum foi editado e distribuído por um selo de world music. Uma resenha no The New York times a chamou de “diva da música negra”. Em 2008, como resultado de alguns anos de shows, participações em projetos de artistas variados da música brasileira e uma interação maior com outros gêneros populares, gravou o terceiro disco, Ciranda de ritmos.
A música de Lia alcançava um público cada vez maior e diverso. A sua voz apropriou-se de sua história e ela não era mais somente música, dança ou gastronomia. Era também cinema, fotografia, poesia e manifesto político. Em 2019, quando lançou o seu disco mais recente, Ciranda sem fim, Lia subiu ao palco também para receber do reitor e de professores dirigentes de diversos departamentos de estudos da Universidade Federal de Pernambuco o título de doutora honoris causa. As suas múltiplas linguagens e os saberes de uma vida toda dedicada à cultura estavam sendo reconhecidos e celebrados.
Naquele domingo na ilha, enquanto ouvia Lia comentar sobre as novas músicas, a nova banda e a próxima turnê (que a pandemia não deixaria acontecer), entendi que a sua força se projetava para além da voz e do corpo que entregava à ciranda. Lembrei-me de que, sem dizer uma única palavra, apenas com o olhar, havia marcado os milhares de espectadores de Bacurau, filme do cineasta Kleber Mendonça Filho. A força de Lia é a sua própria presença. Negra, negra, negra, entrando pelos sete poros da minha cabeça. Até ali, achava que a associação que muitos faziam de Lia com as divindades negras africanas, sempre reverenciadas em suas cirandas, era fruto de uma bem-sucedida criação artística dos produtores, figurinistas e fotógrafos que trabalharam para ela. Até que, finalmente, percebi o óbvio: Lia é, certamente, uma das filhas prediletas de Iemanjá.
Michelle de Assumpção é jornalista, biógrafa de Lia de Itamaracá e uma das curadoras da Ocupação Lia de Itamaracá.
Seção de vídeo
Lia, uma mulher mística
A mulher Lia é o tema deste vídeo, que traz entrevistas com Sara e Sol Esoje, amigos da cantora; Alessandra Leão e Michelle de Assumpção, cocuradoras da mostra; e Roger de Renor, agitador cultural que salienta o encantamento gerado pela homenageada. Da simbologia política à nobreza que vem da simplicidade, Lia, a mulher Lia, é tão fascinante quanto a artista Lia de Itamaracá.
Depoimentos gravados em janeiro e fevereiro de 2022, tanto presencialmente quanto de forma remota.