Estar uma árvore

A poesia de Manoel de Barros compreende uma sabedoria que vai além daquela que habita os livros e gera diplomas, estendendo-se até os domínios do primitivo, das origens, de um mundo que existe independentemente do alfabeto e da racionalidade. “Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore”, escreveu o poeta no seu Livro sobre Nada (1996). Por mais que conhecesse e admirasse os clássicos da literatura e das outras áreas de expressão humana, Manoel prezava mais a prosa dos rios, a conversa das rãs com as pedras e das pedras com as águas. “Para cantar”, cantou ele em Menino do Mato (2010), obra lançada quatro anos antes de sua morte, “é preciso perder o interesse de informar.”

foto: Marcelo Buainain

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Trecho de entrevista dada por Manoel de Barros a Alexandre Martins e João Domenech (sem data)

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Seção de vídeo

A natureza e seus fragmentos

Na fonte da poesia de Manoel de Barros existe uma relação de promiscuidade com a natureza – tanto a das palavras quanto a das plantas e dos bichos (inclusive os humanos, sobretudo os rasteiros). No entanto, o mundo que lemos nos versos do poeta parece filtrado por um olhar infantil, desacostumado: brincando com os termos e as normas da língua, Manoel ia derrubando as paredes entre espécies, gêneros, famílias, reinos. “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, escreveu ele em O Livro das Ignorãças (1993).

Como, então, um cientista lê os versos do autor? As diferentes formas de encarar a natureza – e de se encantar com ela – se excluem?

Neste vídeo, a questão é pensada por quatro biólogos: Bruss Lima, que estuda as atividades cerebrais de primatas não humanos; Carlos Hotta, cujas pesquisas se concentram no relógio biológico das plantas; Hugo Aguilaniu, especialista em genética do envelhecimento e diretor-presidente do Instituto Serrapilheira; e Nurit Bensusan, que atua no campo das políticas públicas para a conservação da biodiversidade e escreve livros dedicados à popularização das ciências.

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DE CLARA PARA MANOEL

Por Maria Clara Navarrete

Escrever sobre Manoel de Barros em tão poucas páginas é uma tarefa muito difícil, tanto pela grandiosidade de sua obra quanto pela imensa sabedoria que ele nos transmite até hoje. Descobri sua poesia através do livro Arranjos para Assobio (1980). Nessa época eu trabalhava como bióloga, dava aulas na graduação de biologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e estava descobrindo o Pantanal. Um de seus poemas que me chamou a atenção dizia:

Natureza é fonte primordial?
– Três coisas importantes eu conheço: lugar
apropriado para um homem ser folha; pássaro que se
encontra em situação de água; e lagarto verde que
canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma
força que inunda como os desertos. Que me enche
de flores, calores, insetos, e me entorpece até a
paradeza total dos reatores
Então eu apodreço para a poesia
Em meu louvor se inclui o Paracleto.

Essas palavras me acompanham sempre, mas naquele tempo senti uma forte emoção, de puro encantamento. O poeta inaugurava um mundo totalmente novo para mim. Através da sua poesia, o ser humano poderia estar em perfeita interação com a natureza; poderia haver um encontro perfeito da ciência com a arte.

Fui novamente surpreendida quando foi publicado Livro de Pré-Coisas (1985). De uma forma poética, por meio de suas brincadeiras com as palavras, ele nos ensinava a biologia. Percebi que grande parte do que nós biólogos estávamos buscando com nossos estudos no Pantanal o poeta já havia encontrado! Foi encantador reencontrar a biologia pelo caminho da poesia.

Ele, que nasceu e cresceu no Pantanal, aprendeu a ler essa paisagem que é uma das mais espetaculares do planeta, com uma fauna abundante e diversa. Essa região é a maior planície de inundação existente e representa uma das mais importantes áreas úmidas de água doce da América do Sul. Com toda a certeza esse lugar ampliou os sentidos do poeta ainda menino, que sempre foi um grande observador da natureza, um naturalista autodidata.

Lembro que, em uma das entrevistas para a jornalista Bianca Ramoneda, o poeta se mostrou preocupado com as águas das quais dependem todos os seres, inclusive os homens que ali vivem. Gostaria de destacar um trecho de sua resposta quando questionado sobre a falta de água no planeta:

[…] eu vejo o homem pantaneiro, que é uma continuação das águas, ameaçado. Ameaçado porque estamos sepultando a natureza e todos os seus minadouros. A tecnologia avança sobre a pureza das águas e dos seres. Penso que a ciência desvenda alguns caminhos e mata outros. Mas, comparada ao tamanho dos mistérios, a nossa ciência é uma mosca frita. Ou melhor: é do tamanho da asa de uma mosca frita […].

Tive a felicidade de conhecer Manoel de Barros no início dos anos 1980, por meio de sua filha, Martha, que era minha vizinha e até hoje é uma grande amiga. A afinidade de meu trabalho com sua obra nos aproximou. Nós nos tornamos muito amigos e, para coroar essa amizade, comecei a conviver com ele e com a família. Com toda a certeza posso afirmar que essa convivência mudou minha visão de mundo e, consequentemente, minha vida.

Graças a essa amizade pude acompanhar de perto seu trabalho e fazer alguns projetos relacionados com sua obra, o que me aproximou ainda mais dele. Convivi com um homem simples, sereno, muito alegre, sorridente e surpreendentemente brilhante, que exercia um enorme fascínio sobre todos os que estavam a seu redor.

Ao se aposentar, ele conseguiu se dedicar totalmente à poesia, à família e aos amigos. Foi a época de sua vida em que mais escreveu e publicou, indicando que a velhice pode ser uma fase bastante criativa.

Sinto saudades de meu queridíssimo amigo, de compartilhar a vida com ele, de nossas conversas sobre o dia a dia. Suas palavras sempre me acompanham, tenho sempre na memória seus versos. Por isso, gratidão é a palavra que escolho para expressar todo meu sentimento. Nada melhor para finalizar este texto do que um de seus versos:

Sou construtor menor.
Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes que as paredes
dos grandes prédios do mundo. Ai ai!

Maria Clara Navarrete é bióloga e foi amiga de Manoel de Barros. Chamada por ele de Clarita, ainda hoje mantém amizade com a família do poeta.

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acervo pessoal de Manoel de Barros

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Esse é Bernardo

Tratado pelo poeta como seu alter ego, Bernardo da Mata foi um funcionário da fazenda de Manoel de Barros e era descrito, nos versos e nos depoimentos do autor, como um sujeito inocente, sem vaidades, marcado por uma simplicidade que o aproximava dos bichos e de outros elementos da natureza.

O rascunho apresentado nesta galeria deu origem ao seguinte poema, publicado em O Guardador de Águas (1989):

Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rãs o exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto – e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada duas pernas de ocaso
para dentro de um oco… E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde –
Como a foz de um rio – Bernardo se inventa…
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o veem.

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Manoel de Barros lê poema publicado em O Livro das Ignorãças (1993).

O registro, inédito, foi disponibilizado pelo cineasta Joel Pizzini.

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Poeta da palavra

Manoel de Barros não gostava de ser chamado de “poeta pantaneiro”. A expressão, afinal, fazia com que o foco principal de seu trabalho, a palavra, se transferisse para a paisagem. Além do mais, o Pantanal que aparece nos versos do autor é sobretudo aquele de sua infância: em boa parte de sua vida e carreira o poeta residiu na capital fluminense e em Campo Grande.

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acervo pessoal de Manoel de Barros

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Rascunho (à esquerda) e versão final de poema publicado no livro Retrato do Artista Quando Coisa (1998):

A gente se negava corromper-se aos bons
costumes.
A gente examinava a racha dura das lagartixas
Só para brincar de ciência.
A gente grosava a peça dos morcegos com o
lado cego das facas
Só para vê-los chiar com mais entusiasmo.
Fazíamos meninagem com as priminhas à
sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais
Só de homenagem ao nosso Casimiro de Abreu.
Não era mister de ser versado em Kant pra se
saber que os passarinhos da mesma plumagem
voam juntos.
Nem era preciso ser versado em Darwin pra se
saber que os carrapichos não pregam no vento.
Que, apois:
Sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira
lagartixa.