O papel do discurso na obra de Paulo Mendes da Rocha
Por Lucas Girard
A grande atualidade da figura de Paulo Mendes da Rocha no panorama cultural brasileiro encontra-se e renova-se, para além de sua prolífica atividade construtora, em seu ininterrupto exercício de pensar a aventura humana no tempo. Profundamente reverente à universidade, em que ele lecionou até 1998, mas livre da rigidez acadêmica, seu pensamento é brilhante. Ilumina, a partir da posição singular da arquitetura no mar das linguagens, um vasto espectro das questões urgentes do presente.
Engenhosas, doces, incisivas, poéticas, as construções de seu pensamento são expressões de um espírito crítico porém amoroso. Sua fala – performática, envolvente, viva, irônica, difícil – é o meio primordial, em intimidade com o desenho e na presença do outro, para o esclarecimento conceitual de um projeto: uma ferramenta de inquirição, um meio de produção de sínteses, de reiteração de ideias, de edição e de difusão de novos enunciados. Como se a imaginação estivesse assim solta no ar, a fala em voz alta é uma mídia de experimentação e de geração de ideias e diálogos com seu sofisticado universo de interlocutores vivos ou mortos – uma gama ampla de autores da literatura, das artes plásticas, da ciência, da filosofia.
O trânsito fluido pelas fronteiras dos saberes caracteriza esse homem que, mesmo desfrutando do reconhecimento e das láureas mais significativas da arquitetura, não perde seu fascínio pela vida urbana, pelo convívio fraterno com os que compartilham do mesmo espaço. Segundo ele, “a cidade surge para diminuir a solidão”, e ela, como fenômeno, permeia seu imaginário.
Sustentada em tantos discursos, em centenas de fascinantes entrevistas, sua convicção no desenho e na construção da cidade como ação política fundamental ultrapassa seu envolvimento de décadas com as instituições de classe. Diz ele que seus “sonhos não são sonhos profissionais, mas sonhos de um cidadão”.
Um convite à reflexão
A amplitude temporal da sensibilidade de Mendes da Rocha nos transporta até regiões remotas da história e da cultura. Delas coleciona elementos fundantes das razões para continuarmos a expandir nossa presença monumental no universo, para aí então nos trazer de volta ao presente, com a indagação simples mas radical: “O que fazer?”.
Na trajetória única desse homem que cultiva a abertura da criança para o espanto, a arquitetura é um estado latente do pensamento. Pensamento informado pela matéria, pelo saber técnico, pela potência do lugar e, principalmente, pela emoção da memória. “A arquitetura já existe na nossa imaginação”; sendo assim, ela não pode ser inventada: manifesta-se como um desejo da coletividade, atávico, eternamente configurador de novas paisagens. “O povo com sua ação inaugura o lugar.”
A obra de Mendes da Rocha acontece em pequenas formalizações, em inserções de uma ordem espacial nova em meio à rigidez programática das construções do mercado e à miséria da urbanidade misantropa da era do automóvel. Sua arquitetura nua, carregada do desejo de uma espacialidade arquetípica – espacialidade que engendre novas invenções espaciais –, é informada por um olhar erótico, delicado, atento às sutilezas e às pequenas belezas da vida cotidiana, à pequena política da sociabilidade doméstica e ao impulso de estruturar o espaço para libertar a vida. Arquitetura é uma língua pela qual se conforma o ambiente de transmissão da mentalidade da cidade justa e livre – a máxima expressão da potência humana.
Sempre político, sempre afetivo, seu discurso é uma constante: registros de 60 anos de prática, alicerçada na infância. Suas obras são a realização de aproximações e ensaios, que condensam na matéria um entusiasmado elucubrar. A personalidade extraordinária de Paulo Mendes da Rocha é em si uma construção que provoca em seus pares a reflexão crítica sobre o ethos da arquitetura como forma de transfiguração do imaginário social para a construção do hábitat comum.
Referências
América, Cidade e Natureza (2012)
Encontros: Paulo Mendes da Rocha (2012)
Maquetes de Papel (2007)
Tudo É Projeto (2017)
Lucas Girard é arquiteto e urbanista, com graduação e mestrado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Colaborou, como estagiário no MMBB, com Paulo Mendes da Rocha nos projetos do Sesc 24 de Maio (em 2006 e 2007) e da Universidade de Cagliari (em 2007). É coordenador do grupo de estudos Cenários Urbanos Futuros, ligado à FAU/USP, e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia, da mesma universidade.