O gesto, o silêncio e a imagem que ficou
por Zuleika de Souza
Nasci em Brasília, nos primeiros anos da cidade. Muito jovem, comecei a trabalhar em redações de jornais como repórter fotográfica. Meu pai era jornalista e, minha mãe, professora. Venho de uma família que lutou pelo fim da ditadura militar no Brasil, com um pensamento humanista sobre as questões sociais, solidária à reforma agrária e ao respeito aos direitos dos povos originários.
Durante a Constituinte, trabalhava no Jornal do Brasil e na Agência Ágil de Fotojornalismo – uma agência independente, ligada aos movimentos sociais – e também vendia fotos para os grandes jornais e revistas brasileiras. Os fotógrafos fundadores, Milton Guran e Kim-ir-sem, eram muito ligados às causas indígenas. Durante o processo da Constituinte, houve uma preocupação em documentar todos os debates sobre os direitos sociais, já com o pensamento de fazer um livro ao final.
Era uma época de esperança. Estávamos saindo da ditadura… havíamos lutado tanto pelas Diretas Já, que não aconteceram naquele momento, mas a Nova República já trazia novos ares. Havia um sentimento de que o país poderia melhorar muito com a nova Constituição.
Durante o período da Constituinte, eu ia eventualmente ao Congresso Nacional, fotografava os debates e as entregas de emendas populares, junto com outros fotógrafos da agência – e estava grávida do meu único filho.
Um dia, em setembro de 1987, eu estava no comitê de imprensa quando me chamaram:
— Vai lá no plenário, que uma liderança indígena vai falar.
Fui.
Cheguei lá… era um homem muito bonito, vestido com um terno branco. Ele estava ali, em um auditório quase vazio – poucos deputados, não mais de dez, estavam presentes para ouvi-lo. Os deputados se misturavam com a imprensa; naquela época, os jornalistas podiam circular livremente pelo plenário.
Ele começou a falar e, ao mesmo tempo, a pintar o rosto de preto com uma tinta que tirava de uma latinha.
Terminou de falar e permaneceu em silêncio, com as mãos postas para frente e o rosto todo pintado. Estava no púlpito que os deputados usam para discursar.
Naquele momento, pensei que fosse uma pintura indígena tradicional. Muitos anos depois, assistindo a um vídeo, vi o Krenak contar que havia usado maquiagens das secretárias que trabalhavam para deputados aliados da causa indígena. Também usou um paletó emprestado para poder entrar no plenário da Câmara Federal.
Naquela época, fotografávamos com filme preto e branco. Já era o final dos anos 1980, e só as revistas publicavam algumas imagens coloridas. Fiz um filme tri-X de 24 poses dessa história. Se soubesse que aquela cena entraria para a história, talvez tivesse feito também em cor – ou tivesse fotografado mais.
A foto editada pela Ágil, que correu o mundo e foi publicada em vários jornais e revistas, foi a do Ailton postado em frente à bandeira do Brasil, com os braços cruzados e me olhando.
Há pouco tempo, revendo as fotos que fiz, vi que o fotógrafo Luiz Antonio Ribeiro também estava no plenário naquele dia. Acho que a minha imagem circulou mais por ter sido distribuída por uma agência com boa rede de distribuição.
Até hoje, essa é a foto que mais me pedem para publicações de livros, exposições e filmes.
E aquela cena… aquele homem ali, pedindo direitos de forma tão plástica, me marcou profundamente. A imagem ficou gravada na minha vida. Se o Krenak tivesse apenas falado, talvez ninguém o ouvisse. A força da imagem dele se pintando com tinta preta fortaleceu e amplificou seu discurso. Ele pensou isso, planejou aquela ação.
Podiam ter chamado um fotógrafo mais experiente – e não chamaram. Não sei se foi por acaso… Mas eu estava lá. Fotógrafos e jornalistas têm essa oportunidade de testemunhar a história.
Para mim, foi uma honra estar lá, naquele instante. Presenciar aquele momento que forçou a entrada dos direitos indígenas na Carta Magna do Brasil.
Continuamos lutando por esses direitos, sempre ameaçados. Já se passaram quase 40 anos, e eu nunca mais encontrei o Krenak. Nunca falei com ele. E gostaria muito de fotografá-lo novamente.