por Josivana de Castro Rodrigues
Todo ser humano, desde os tempos mais remotos, tem atuações para respaldar sua existência. Dona Onete, na sua trajetória de vida, sempre esteve atenta e participativa nessa caminhada. Suas experiências individuais e coletivas estão expressas em sua arte poética e musical. Suas composições são construções baseadas nas vivências cultivadas desde criança entre seres encantados, como botos, cobra grande, uiaras e seres da mata, cultuados na região amazônica.
Muito antes de ser consagrada como a rainha do carimbó chamegado, Dona Onete respondia pelo nome de Ionete da Silveira Gama, nascida em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó (Pará, Amazônia), e filha caçula de Alfredo Gama e Maria Raimunda. Após a morte do pai, a guarda da menina ficou sob os cuidados de Dona Quitéria, avó paterna. Maria Raimunda, não conformada com a perda da guarda da filha, foi para Belém do Pará, arrumou emprego, casou-se novamente e conseguiu a guarda de Ionete. Logo, mãe e filha passaram a morar no bairro da Pedreira.
A menina, muito curiosa e criativa, começava a apreciar em seu bairro as escolas de samba, os grupos folclóricos, os bois-bumbás e as apresentações de cantores consagrados, como Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves e Ângela Maria. Como ainda era menor de idade, não poderia adentrar espaços de shows, mas, junto com os primos, ficava escutando as apresentações musicais em frente à sua casa. No dia seguinte, a imaginação vinha à tona quando tentava imitar as cantoras: a pequena Ionete colocava um caixote de madeira como palco, e o microfone era uma lata encaixada num cabo de vassoura. Ali, em uma brincadeira, cantava para primos, tios e amigos, que a aplaudiam e diziam que ela seria cantora.
Festejos para Ogum
Ainda no bairro da Pedreira, por volta dos 8 anos de idade, a menina frequentava com a tia os festejos para Ogum no barracão de Seu Raimundo, onde os batuques duravam três dias. Ionete e os primos participavam do ritual designado para as crianças: ficavam de joelhos em cima de um tecido branco, e Ogum passava com sua espada por cima de suas cabeças, depois apertava levemente os braços e as cabeças, dizendo quais seriam as contas e proteções de cada criança – para Ionete foram designadas quatro contas; por fim, eles tomavam uma espécie de mingau, servido na cuia.
Ela conta que sua proteção estava em Mariana, Jarina, Herondina e Jurema. As três primeiras são princesas turcas encantadas na Amazônia; já Jurema, a rainha das matas. Diante dessa experiência, tempos depois, Ionete escreveu algumas composições sobre esse tema.
“Quatro contas me protegem desde menina
A vermelha é Mariana, a amarela é Jarina
A branca é a cabocla Jurema, juremê juremá
A verde é a cabocla brava, é a minha cabocla Herondina
Que não me deixa cair não me deixa tombar”
(trecho de “Quatro contas”)
Encontro com os botos
Depois de Ionete completar 9 anos de idade, Dona Maria veio a falecer, e a guarda da criança voltou para a avó Quitéria, parteira muito requisitada na região de Igarapé-Miri (Pará, Amazônia), lugar onde seus filhos moravam. Quitéria sempre viajava pelos rios, levando a neta como companhia.
Quando atravessavam para Cachoeira do Arari, a menina tinha contato com pastos para gados, fazendas, cavalos, búfalos e manifestações culturais e religiosas típicas da região. Ela participava da festividade de São Sebastião com o tio, devoto do santo e componente da banda que fazia parte da esmolação, cantando e tocando viola. Com ele, Ionete aprendeu a entoar ladainhas em louvor ao santo protetor e contra a peste, a fome e a guerra.
Com a avó, já embarcou em direção ao Rio das Flores, o rio dos encantos da menina Ionete. Foi nele que, levada pela imaginação das lendas dos botos de que escutava falar, construiu uma realidade condizente com seu desejo de fazer amizades e brincar. Ionete, quando morava na cidade de Belém, sempre esteve cercada de primos e tios para se aventurar em suas travessuras, mas, ao chegar à zona rural do município de Igarapé-Miri, percebeu que não tinha companhia para brincar. Então, cansada da monotonia, vivenciou um encontro inusitado com os botos.
Sempre depois do almoço, a menina corria para o quintal, apanhava flores e frutos, colocava-os em um cesto e corria para a cabeceira da ponte, na beira do rio. Lá, sentava com os pés submersos na água e chamava os botos com suas cantorias, aquelas no bairro da Pedreira. Para eles jogava os alimentos, com promessas de um reencontro futuro. A cada dia que passava, o número de botos aumentava para escutar a menina cantar.
À noite, a tia da menina, já preocupada com a mundiação do boto, mandava buscar as melhores benzedeiras da região para benzer a criança, e sobre sua rede eram colocados alhos e plantas para impedir que um possível encantado transformado em homem viesse atormentá-la.
A lenda do boto, quem sabe, seja a mais misteriosa e diversificada na encantaria amazônica. Mas aqui, relacionada à experiência de Ionete, há uma certa quebra de paradigma. Diferentemente de outras lendas, o boto não assume uma tentativa de encontro sexual, mas, sim, de um laço de amizade. Ionete, em sua imaginação fértil, tentava apenas atrair a amizade deles e buscava uma plateia para escutá-la cantar, assim como acontecia no bairro da Pedreira, com seus amigos e primos, que estavam prontos para aplaudi-la.
E assim a menina Ionete foi tateando pelas beiras dos rios, escutando lendas sobre os botos que alimentavam seu imaginário. A letra da música “Boto namorador das águas do Maiauatá” expressa uma dessas lembranças.
“Onde é que boto mora?
Mora nos rios, mora no mar
Onde é que boto mora?
Mora nos rios, mora no mar”
(trecho de “Boto namorador das águas do Maiauatá”)
Cobra grande do Jatuíra
Aos 16 anos, Ionete começou a lecionar em Rio das Flores por um curto período. Aos 25, casou-se e foi morar no município de Igarapé-Miri, deixando de lecionar por causa da chegada dos filhos. Nesse período, passou a conviver com a sogra, Merandolina, parteira e curandeira, que não possuía o domínio da escrita; por esse motivo, era Ionete quem anotava as receitas que as entidades encantadas emanavam. Assim, aprendeu muito sobre encantarias e os processos de cura.
Tempos depois, voltou a lecionar e percebeu que seus alunos não estavam interessados nas histórias do seu município. A então professora Ionete buscou pesquisar as histórias e lendas de Igarapé-Miri. Percorrendo os interiores, relacionou-se com os moradores mais idosos e, através da oralidade, conheceu a lenda da cobra grande do Jatuíra. Segue abaixo a descrição da lenda:
Em uma localidade logo acima da cidade de Igarapé-Miri, chamada Jatuíra, existia uma fazenda muito próspera, habitada por portugueses. Por lá fabricavam mel e açúcar moreno, e compravam borracha, cacau e outros produtos. Com a chegada do movimento cabano ao município, eles ficaram amedrontados e foram embora, vendendo a casa para o Sr. Geminiano, que continuou assumindo a responsabilidade da fazenda naquela região.
Tempos depois, o Sr. Geminiano deu a fazenda para seu caseiro, que estava com uma filha grávida. Ela tinha marido, mas era o pai da moça que tomava as decisões relacionadas à família. Chegada a hora do parto, a parteira identificou que eram duas crianças: a primeira a nascer era uma menina normal, mas a segunda era metade gente e a outra metade cobra. A parteira, apavorada, chamou o pai da moça e explicou o acontecido. O velho pediu segredo à parteira, exigindo que ninguém soubesse.
A primeira criança estava muito frágil e logo foi batizada de Rosa. A ordem para a segunda criança era que a parteira a matasse e jogasse no rio. A parteira também era curandeira e, sensibilizada com a situação, antes de jogar a segunda criança no rio, deu-lhe um pouco de leite materno, colocou-a dentro de um paneiro, batizou-a de Rosalina e soltou-a nas águas do Rio Igarapé-Miri.
Tempos depois, já jovem, quando Rosa chegava perto do rio para se banhar, tinha a sensação de estar sendo observada por alguém. Muitos diziam ser sua irmã Rosalina querendo manter contato. Já a segunda criança sofreu metamorfose, transformando-se em cobra encantada, chamada pelo nome de cobra grande do Jatuíra, que nas noites de Lua cheia passeava contra a maré, na frente da Igreja de Nossa Senhora Santana. Anos se passaram e a cobra tomou tamanho gigantesco, precisando fazer morada nas águas do mar; e dizem que, nos terreiros dos encantados, incorpora como cabocla Dona Rosalina. Segue a composição de Dona Onete sobre a lenda da cobra grande do Jatuíra:
“Na onda do mar
Ela fez sua aldeia
Na preamar ela passeia
É cobra do Jatuíra
No clarão da Lua cheia”
(trecho de “Dona Rosalina”)
As lendas da cobra grande do Jatuíra, assim como a maioria das lendas, são contadas por várias pessoas e de maneiras diferentes. A versão acima é fruto de um trabalho de pesquisa de Ionete Gama quando ela exercia o cargo de professora no município de Igarapé-Miri. Essa lenda, por muito tempo, foi narrada pela professora nas salas de aula, fertilizando o imaginário de seus alunos.
Com a chegada da aposentadoria, ela voltou para Belém, passando a residir no mesmo bairro onde viveu uma etapa da sua infância. Seu retorno para a Pedreira possibilitou o encontro com o Coletivo Rádio Cipó, banda musical que a batizou com o nome artístico de Dona Onete. Nesse mesmo período, criou seu grupo de carimbó Chamego Mirijoara, cantando as experiências vivenciadas e pesquisadas no interior das cidades amazônicas, trazendo junto um novo estilo, o carimbó chamegado.
Dona Onete passou a ter contato com outras regiões, adquirindo novas experiências, trocando informações com outros mestres da cultura amazônica e, consequentemente, adquirindo novas inspirações como compositora. Em Alter do Chão (Santarém), incorporou as lendas das Icamiabas em uma bela composição.
“As Icamiabas tribos de índias guerreiras
Fogosas e curandeiras moravam no Nhamundá
Iraci Aruã morava no lago do espelho da Lua
Moldavam os muiraquitãs afrodisiavam
E ofereciam aos guerreiros que elas pretendiam”
(trecho de “As Icamiabas”)
Encantarias na região urbana
Embora as encantarias sejam mais comuns nas áreas ribeirinhas, onde estão presentes elementos da natureza nos quais os encantados fazem morada, elas também circulam de forma relevante entre o povo da região urbana amazônica. Em Belém, na feira do Ver-o-Peso, Ionete passou pelas vendedoras de ervas e, de longe, uma erveira a chamou: “Ei, minha linda! Venha cá, meu amor! Deixa eu te mostrar como tu deves amansar teu marido”.
Chegando perto da barraca, Ionete presenciou um tamaquaré dentro de uma pequena rede, calmo, quase dormindo, e, ao lado dele, pequenos vidros com porções de pó do animal. Ionete não comprou e, brincando com a erveira, disse que já tinha deixado o marido. Chegando em casa, ficou pensando no ocorrido. Pegou papel e caneta para escrever “Feitiço caboclo”, música que dá nome ao seu primeiro álbum musical.
“O chá do tamaquaré
É um chá muito louco
É um feitiço caboclo
Que só tem no Pará”
(trecho de “Feitiço caboclo”)
O tamaquaré é uma espécie de lagarto frequentemente encontrada na Amazônia, nos galhos de vegetação seca. O pequeno réptil, na crença popular, funciona como um feitiço, utilizado na forma de chá ou pó. Serve para “amansar o marido ou a esposa”. Devido à grande comercialização do “produto”, a venda foi proibida por causa da preservação da espécie.
Encantados na voz de Dona Onete
As encantarias, especificamente as lendas presentes nas composições de Dona Onete, são fruto do seu cotidiano amazônico, movimentado, ainda, por suas pesquisas e pelas vozes da ancestralidade, fazendo-nos acreditar que sua capacidade de transformar encantados em composições seja pelo fato, também, de desde criança conviver com esses seres. De forma genuína, ela viveu em uma “Festa no reino das encantarias”.
“A uiara canta, o boto assovia
A uiara canta, o boto assovia
Hoje é noite de festa no reino da encantaria
Hoje é noite de festa no reino da encantaria”
(trecho de “Festa no reino das encantarias”)