por Nathalia Petta
O silêncio do palco do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, foi quebrado por uma voz trêmula, que não parecia de alguém jovem. Enquanto a cortina se abria lentamente, os espectadores ouviam “Ê, ê, ê moreno, ê, ê, ê moreno” – um cântico do carimbó chamegado era entoado à capela, acompanhado apenas por batuques de tambores da Amazônia. Quando a luz focava no centro do palco, o que se via era uma senhora no auge dos seus mais de 60 anos, sentada em uma poltrona, com um vestido verde e a voz forte e inexperiente de quem vive um sonho. A cena é um retrato do que foi o show Terruá Pará em 2006, uma das primeiras apresentações de Dona Onete e que, segundo ela mesma, foi uma alavanca para que sua carreira alcançasse o status e o reconhecimento que tem hoje.
O Terruá Pará foi uma idealização do governo do estado do Pará, através de Ney Messias – jornalista que, na época, ocupava o cargo de presidente da Fundação Paraense de Radiodifusão (Funtelpa), estatal de TV e rádio pública do Pará –, e é uma das maiores iniciativas de propagação e circulação da música paraense no Brasil. Messias contou com o apoio dos produtores musicais Carlos Eduardo Miranda – conhecido por seu trabalho com importantes grupos, como Raimundos, O Rappa, Skank e Mundo Livre S/A – e Pena Schmidt – que esteve à frente de gravadoras como a Warner Music e produziu bandas como Titãs, Ira! e Ultraje a Rigor.
“A ideia surgiu de várias cabeças. Na época, já havíamos promovido na Funtelpa iniciativas diversas de circulação e divulgação dos nossos artistas, como shows e concursos, além de levar as músicas para a programação da emissora. Uma vez, resolvi realizar o Prêmio Cultura de Música, em Belém, e achei que deveria chamar jurados de peso para ouvir nossos artistas. Convidei o Miranda e o Pena Schmidt, que se impressionaram com a potência da nossa diversidade musical. Depois, o Pena virou superintendente do Auditório Ibirapuera e me lançou o desafio de levar um show de três dias só de música paraense para São Paulo. Eu topei, desde que o Miranda fosse o diretor musical, e assim nasceu o Terruá Pará”, relembra Messias.
O termo terruá – vindo do francês terroir – é muito usado para identificar um produto, ingrediente, iguaria ou ritmo musical de determinado local. Não foi à toa a escolha de Messias para o festival: ele acreditava que a música produzida no Pará era única e tinha o desejo de mostrar essa iguaria ao Brasil e ao mundo.
A primeira edição do espetáculo, em 2006, no Auditório Ibirapuera, foi, até então, um dos maiores palcos em que Dona Onete tocou fora do Pará e serviu de grande impulsionador para sua carreira. Ela também participou de mais duas edições, em 2012 e 2013, no Teatro das Artes, no Shopping Eldorado, mas a essa altura seu talento já tinha chegado a mais palcos do Brasil. “Nós levamos mais de 150 artistas para esse palco durante as três edições, mas a Dona Onete foi a única que esteve em todas, porque acredito que ela é a semente mais preciosa do projeto. A gente enxergava nela essa potência, e demos o espaço para ela mostrar seu talento, que foi reprimido a vida toda pelo machismo e não poderia, agora, ser reprimido pelo etarismo”, completa Messias.
Potência para a cena paraense
Não foi só para Dona Onete que as apresentações foram importantes. Muitos artistas puderam alcançar outros espaços com essa iniciativa. “A gente reclamava e ouvia muito que a mídia não vinha aqui conhecer nossos artistas, nossa cultura, mas eu entendo que tinha que existir um esforço governamental para colocar as pessoas lá no centro midiático do país, e foi o que fizemos”, continua Messias, que nas edições de 2012 e 2013 era secretário de Comunicação do Pará. “Muitos artistas aproveitaram e fizeram uma boa gestão de suas carreiras, e aproveitaram essa visibilidade, como Lia Sophia, Felipe Cordeiro, Luê e Nathalia Matos.”
A jornalista Adelaide Oliveira presidiu a Funtelpa de 2011 a 2018 – ou seja, comandou as edições de 2012 e 2013 do festival – e conta que essa iniciativa se somava a outras de difusão dos artistas paraenses feitas pelas emissoras estatais. “O Terruá Pará tem essa potência de conseguir levar não apenas um único artista, e sim o conceito, a cena, a musicalidade feita no Pará, com todas as suas possibilidades”, explica Adelaide. “Colocamos em um palco Dona Onete, Mestres da Guitarrada, artistas consagrados, como Paulo André, Gaby Amarantos e Salomão Habbib, junto com novos artistas, como Lia Sophia, Gang do Eletro, Félix Robatto, Trio Manari e muitos outros. Mas isso não era uma ação isolada. Esses artistas já estavam presentes com suas canções na programação da rádio, TV e internet; então, de certa forma, ir para o Terruá era mais uma ação de incentivo.”
Sammliz já tinha mais de 20 anos de carreira à frente da banda Madame Saatan quando subiu ao palco do Terruá Pará em 2013. Mesmo com toda essa experiência, ela usou o espaço para começar um novo sonho: sua carreira solo, algo em que já vinha pensando havia um bom tempo. “O Terruá foi uma vitrine importante para a música paraense, colocando em um mesmo palco artistas representantes de uma parte da diversidade da nossa música, interagindo em um grande show. Tenho muito carinho por ele também por ter sido o primeiro palco onde me apresentei em versão solo, iniciando uma nova fase na minha carreira e, depois disso, partindo para produzir meu primeiro disco. Foi o start, e muita gente que não me conhecia ou que só havia me visto com o Madame Saatan passou a me acompanhar depois”, relembra a cantora, que em seu trabalho solo assina uma parceria com Dona Onete.
Ela comenta o clima de espetáculo que os shows traziam e como o festival foi importante para a carreira de muitos: “Eu já conhecia Dona Onete havia alguns anos. Não estive na edição da qual ela participou, e, como ela disse, ali foi o momento em que começou a explodir. E ela no palco, já sabe, né? Ela domina e contagia todo mundo. Mas foi maravilhoso dividir o palco com pessoas como Gaby Amarantos, uma das grandes estrelas das edições, Lia Sophia e Jaloo, que já estava se consolidando nacionalmente. De certa maneira, foi uma revelação geral, de tamanhos diferentes, para os artistas que participaram”.
A partir daí, Sammliz seguiu sua carreira solo, teve o disco Mamba aprovado pelo Natura Musical em 2016 e fez shows pelo Brasil. Em 2017, lançou sua parceria com Dona Onete: a música “Deusa da Lua (mulher perigosa)”, da qual ela recorda a facilidade e a generosidade que a artista tem em fazer parcerias e compor. “Dona Onete é uma mulher extraordinária, generosa e uma fábrica de hits. Essa música surgiu em uma festa de aniversário; estávamos conversando e, certa hora, perguntei quando iríamos fazer um feat. Pois ela imediatamente disse que tinha uma ideia para me dar e já começou a cantar. Saquei o celular e comecei a gravá-la cantando em meio à barulheira da festa. Um ano depois, ouvi esse arquivo e resolvi terminar a música, acrescentei o refrão e alguma coisa a mais. Mostrei a ela e pedi que cantasse também na gravação, no que prontamente atendeu. Foi uma delícia gravar, e é uma honra ter um trabalho em parceria com uma artista e pessoa tão talentosa”, orgulha-se.
Em 2013, o Terruá Pará foi premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) na categoria Música Popular. Engana-se, porém, quem pensa que o festival se restringiu ao público paulista: os shows de 2012 e 2013 foram transmitidos ao vivo pela TV Cultura e pela rádio para mais de 80 municípios paraenses. Também foram apresentados em Marabá e Santarém, cidades-polos do sul e do oeste do Pará, com o objetivo de dar mais alcance a esses artistas no próprio estado. Além disso, eles foram lançados em DVD e viraram uma edição de livro. “Era uma forma de mostrar a diversidade das nossas muitas sonoridades regionais, que não somos uma coisa só, e de levar essa cultura ao maior número de pessoas possível”, conclui Adelaide.
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Nathalia Petta é jornalista, cantora e compositora paraense. Antes de começar sua carreira autoral, atuou como repórter de cultura no estado do Pará. Em 2016, lançou o álbum Não por você e fez várias apresentações, entre elas uma participação com a cantora Pitty em shows em solo paraense. Atualmente, atua como designer de inovação e dedica-se ao seu próximo trabalho autoral como cantora.