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Territórios: triângulo de vida

Não é qualquer luar que canta Dona Onete: é o luar paraurara, o que banha a Amazônia, citado em “Faceira”. Não corre qualquer rio nas suas letras: os exemplos são paraenses, como o Maiauatá (“Boto namorador”) e o Guamá (“Lua Jaci”). A poesia dela tem casa.

Nascida em Cachoeira do Arari, município na Ilha de Marajó, no Pará, Dona Onete se muda para a capital Belém na infância, por vezes voltando à cidade natal. No período, conhece Igarapé-Miri, onde estabeleceria família. Desses lugares absorve cultura e natureza.

Cantando nas festas de Cachoeira, morando no bairro belenense da Pedreira – chamado bairro do samba e do amor –, vivendo o carimbó em Miri, Dona Onete fez a sua arte, marcada de território e viagem. Se perguntamos, mais ou menos como ela em “Carimbó chamegado”, qual é o seu carimbó, de onde ele vem, ela pode sempre responder:

“das cabeceiras dos rios,
dos lagos e dos igarapés,
onde a canarana é viçosa
e o tapete é mururé”.

Nesta página, abordamos aspectos da cultura desses locais – Ilha do Marajó, Igarapé-Miri e Belém – que formam o triângulo de vida, como a própria Dona Onete definiu.

Seção de vídeo

Matriarca da cultura paraense

“Ela é acadêmica por natureza. Ela é alguém que tem uma vivência de pegar e ir para o interior de Igarapé-Miri e se aprofundar mais nessa cidade”, diz Gaby Amarantos. A cantora, o músico Pio Lobato e os produtores Viviane Chaves e Geraldinho Magalhães falam da presença de Dona Onete na cultura paraense, tanto na capital quanto no interior, bem como da construção de identidade e do compartilhamento de saberes e conhecimentos que permeiam a artista, considerada por muitos como uma matriarca da cultura paraense.

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Dona Onete, 2023 | imagem: André Seiti

Dona Onete, 2023 | imagem: André Seiti

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A Belém de Dona Onete

Ouvir Dona Onete é conhecer, por meio dela e de suas músicas, um pouco sobre a cultura paraense, e isso inclui seus lugares. A cantora e compositora sempre fez questão de ressaltar suas andanças e experiências pelas três cidades que ajudaram a formar sua cultura, que nasceu, primordialmente, do popular. 

Quem já foi à capital paraense e passou pelas docas do Ver-o-Peso, por exemplo, entende a inspiração por trás da história da garça namoradeira e do malandro urubu que conhecemos na música “No meio do pitiú”.

Por isso, pedimos a Dona Onete que nos revelasse sua Belém: quais lugares marcam a sua trajetória? Quais lembranças esses lugares suscitam? O resultado é este mapa afetivo, composto de cinco pontos para conhecer Belém – sem esquecer de Cachoeira do Arari e Igarapé-Miri – e histórias que só ela pode nos contar.

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Basílica Santuário de Nazaré

“Eu sou muito católica desde criança, quando era devota e frequentava a Igreja de Nossa Senhora de Aparecida. Tudo no bairro da Pedreira era em torno dessa igreja. Depois veio a Igreja de Nazaré. Quando se aproximava setembro, parecia que tudo girava em torno do Círio de Nazaré."

Basílica Santuário de Nazaré

"Contavam para a gente que tinha um túnel da Igreja da Sé [Catedral Metropolitana de Belém] para a Igreja de Nazaré, onde os padres iam de uma para a outra. A gente acreditou por muito tempo nisso. Um dia as professoras fizeram um passeio na Igreja de Nazaré, fomos para lá e assistimos à missa, era pouco padre para muita criança."

Basílica Santuário de Nazaré

"Alguém lembrou do túnel. Daí o padre saiu, andou, andou, andou e sumiu. A gente entrou num lugar escuro e foi andando; quando chegou a um determinado pedaço, deu um medo, parece que vinha cobra, vinha tudo atrás da gente. E, quando chegamos bem a uma subida, o padre estava vindo e perguntou: ‘Que tal, vocês viram a cobra?’.”

Praça Batista Campos

“Todo mundo sabe que sou pedreirense, tudo da Pedreira me encanta. Já falei em versos e prosas sobre a minha Pedreira. Lembro muito da Praça Batista Campos. Você senta na Praça da República [em frente ao Theatro da Paz] e fica meio tenso, parece que de todos os lados vai surgir alguma coisa que você fica preocupado, mas, na Praça Batista Campos, você fica quieto, vê aquele povo com a água de coco."

Praça Batista Campos

"O nome Batista Campos é histórico no Pará; quando se fala da Cabanagem, ele [João Batista Gonçalves Campos, ativista político paraense] estava no meio. São ruas que lembram a gente de determinadas coisas acontecidas aqui dentro."

Praça Batista Campos

"Se você reparar, Belém é um livro de história, cada coisa que aconteceu está dentro de um bairro. Você senta na praça e fica imaginando – no meio de uma calmaria e olhando as garças e os peixes, em uma cidade tão conflituosa – como foi esse período da Cabanagem.”

Theatro da Paz

“Eu morei próximo ao Theatro da Paz e à Praça da República. Eu olhava para o teatro e imaginava o que acontecia dentro daquilo quando eu era criança. Eu dizia que queria cantar lá, fazer um show. Era um sonho que eu tinha, um sonho de adolescente. Mas nunca me deram a oportunidade."

Theatro da Paz

"Quando eu cantei no Theatro da Paz, foi sempre acompanhada de outros artistas. Agora, não. Agora é diferente. Quando eu fui cantar, homenageada pela UBC [União Brasileira de Compositores, que homenageou a trajetória de Dona Onete em junho de 2022], o show era meu. Eu era a estrela do momento."

Theatro da Paz

"Pude cantar do meu jeito e com todas as pessoas com quem eu queria cantar, homenageando os meus amigos e fazendo um lindo show que ficou na lembrança de muita gente. Esse sonho eu realizei em vida, graças a Deus.”

Ver-o-Peso

“Um dos meus pontos de referência desde criança. Lá se via tanta coisa, de comidas típicas – vatapá, caruru, vários tipos de mingau – a doces e sucos. Vendia muitas frutas em paneirinhos: mari, murici, mangaba, manga, tucumã, inajá. Meu pai tinha uma quitanda que vendia frutas assim."

Ver-o-Peso

"A gente cortava o cupuaçu, amassava muito bem, botava açúcar e água, e tomava com toda aquela polpa. A gente se alimentava com banana misturada na farinha. Era muito bom saber onde tinha fruta."

Ver-o-Peso

"Depois que surgiram os grandes supermercados e a elite começou a ir comprar lá, o Ver-o-Peso caiu um pouco. Até as vendedoras que faziam o nosso vatapá, caruru ou tacacá foram saindo para outros lugares. Antes você só encontrava nas barraquinhas do Ver-o-Peso. Hoje, ele vai mudando. Agora está ‘chique no úrtimo’, não é mais tão pé-sujo como antes.”

Pedreira – e mais Cachoeira do Arari e Igarapé-Miri

“Eu vim de Cachoeira do Arari para Belém com 3 anos de idade, para morar na Pedreira. Na Pedreira eu vivi com a minha mãe e com o meu padrasto, a quem eu chamo de pai. Minha mãe morreu quando eu tinha 10 anos de idade, aí eu saí da Pedreira e fui para o Rio das Flores [em Igarapé-Miri] com a minha avó."

Pedreira – e mais Cachoeira do Arari e Igarapé-Miri

"A minha avó era andarilha, parei de estudar porque ela andava de cima para baixo comigo. Eu vivia um tempo em Marajó, outro tempo em Cachoeira do Arari – na cidade e no interior –, depois eu ia para Belém e Rio das Flores, onde fui trabalhar como professora."

Pedreira – e mais Cachoeira do Arari e Igarapé-Miri

"Assim passei minha vida entre Igarapé-Miri, Belém e Ilha do Marajó. Tudo que eu sei de cultura cabocla aprendi em Marajó e em Igarapé-Miri; já a parte mais lúdica que eu canto foi Belém. É um triângulo de vida.”

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Mapa afetivo | Publicação da Ocupação Dona Onete

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A música paraense

“A música paraense tem um diferencial de trazer essa sonoridade amazônica, e de colocar no mapa do Brasil e de chamar a atenção para essa questão que é tão importante […]. Para além da floresta, a gente é cultura. A gente canta, a gente fala, a gente dança”, afirma Gaby Amarantos neste vídeo. Ela ressalta a diversidade da música do Pará – do carimbó ao tecnobrega –, tanto de seus representantes quanto de elementos poéticos e criativos. O pesquisador Patrich Depailler conta uma história sobre a chuva de Igarapé-Miri e fala da realidade ribeirinha e cabocla, presente nas músicas de Dona Onete.

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"Quando Dona Onete fala que o jambu treme, ela não tira isso totalmente da sua cabeça. Ela está observando o fenômeno do tecnobrega em Belém, que tem uma dança chamada treme. A dança do treme – na qual as pessoas tremem o ombro – virou febre na periferia de Belém. Unir a dança com o tremor do jambu é fruto da observação do mundo contemporâneo. Não é à toa que, quando você canta essa música, todo mundo dança e, às vezes, dança como se fosse um funk. Isso tem tudo a ver com a inteligência e a intelectualidade dela, que foi professora de história, assessora de Cultura, ativista. E a capacidade dela de conversar com a nossa geração é grandiosa. Ela toca para a feira do Ver-o-Peso e para a juventude burguesa do Rio de Janeiro ou em festivais internacionais da mesma maneira."

Felipe Cordeiro [em entrevista ao Itaú Cultural]

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O jambu treme!

Você deve conhecer a fama do jambu de deixar a boca dormente, talvez pela cachaça ou por outros produtos derivados do seu uso, mas não é só isso. Essa planta originária do Norte do Brasil, além de afrodisíaca e medicinal, é um tempero versátil e bastante utilizado em receitas tradicionais paraenses. No pato no tucupi, no tacacá, no arroz paraense, como canta Dona Onete, ou mesmo comendo a folha de forma natural, o jambu tem finalidades diferentes em cada um desses pratos.

Nesta seção, trazemos três receitas que Ionete, enaltecida como uma cozinheira de mão cheia por quem a cerca, gosta de fazer em sua casa. Elas foram executadas pelos chefs Oriana Bitar e Roger Depablo, do restaurante Casa Igá, em Belém. O resultado é de dar água na boca!

Queimoso e tremoso (molho de pimenta) 

Ingredientes
Flor de jambu
Pimenta-cumari
Azeite de oliva 

Preparo
Macere a pimenta com a flor do jambu e o azeite de oliva.

 

Mujica de camarão na cuia

Ingredientes
Camarão de água doce
Temperos (cheiro-verde, cebola, tomate, alho, chicória, alfavaca, urucum, sal a gosto)
Pó de farinha d’água
Folhas de jambu cozido

Preparo 

Refogue o camarão com os temperos, o urucum e o óleo. Acrescente água e, quando estiver no ponto de pré-fervura, acrescente o pó da farinha d’água aos poucos (sempre mexendo para não embolotar). Deixe ferver até engrossar o caldo. Sirva a mujica na cuia e enfeite com folhas de jambu cozido. 

A gosto: acrescente o molho de pimenta queimoso e tremoso!

 

Pudim de jerimum (abóbora) com pupunha 

Ingredientes
1 litro de leite condensado
4 ovos
4 colheres de amido de milho
3 colheres de açúcar
1 cacho de pupunha cozida
1 jerimum médio cozido 

Preparo
Bata no liquidificador metade da pupunha e o jerimum cozidos e o restante dos ingredientes. Separe a outra metade da pupunha para acrescentar na forma. Após caramelizar a forma, coloque pedaços de pupunha e derrame a massa. Coloque em banho-maria em forno preaquecido em 160 graus. Deixe assar por duas horas.

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Patrícia Gondim: "Como paraenses, nos reconhecemos nela"

por William Nunes

Durante nossa visita ao restaurante Casa Igá conversamos com Patrícia Gondim, profissional responsável pelo projeto expográfico da Ocupação Dona Onete. Nascida na capital paraense, ela possui experiência como diretora de arte, cenógrafa, iluminadora e designer de interiores.

Qual é sua relação com Dona Onete?

É uma relação apaixonada, como todo paraense. Todes têm uma admiração e um desejo de trabalhar com ela, porque Dona Onete realmente irradia alegria para quem está ao seu redor. É sempre uma simpatia e uma coisa que a gente leva para a vida. É uma sorte uma equipe ser chamada para trabalhar com ela. Eu fiz a iluminação para a gravação do show Flor da Lua, no Teatro Margarida Schivasappa, foi a primeira vez em que trabalhamos juntas. Já a primeira vez em que a vi cantando foi no Festival Terruá Pará, no Ibirapuera, em São Paulo – também quando eu estava atuando como iluminadora. Fui com um grupo enorme de Belém para lá. Eu a conheci nessa apresentação, ela cantou “Moreno” e foi lindo, porque ela estava toda de azul, tinha um gingado, uma sensualidade. Fiquei impressionada com aquilo. Ela foge do padrão de uma senhora, havia uma alegria ali.

Como a cenografia da exposição traz a presença de Dona Onete e do Pará?

Eu acho que a grande felicidade de estar nesta Ocupação e trazer questões e materialidades é honrar todo esse lugar ribeirinho e caboclo que faz parte do universo dela. É uma construção mais vernacular, da qual eu também faço parte. É pensar a cultura cabocla, mostrar o quanto ela tem plasticidade. Estou me deparando com a grandiosidade dessas construções que são feitas por mãos simples e criativas que é a gambiarra de Belém. A gente chama de “caboquice”, não de forma pejorativa, mas de forma criativa. É diferente da construção de origem mais portuguesa que temos na cidade, no centro histórico, mas tem tanta beleza quanto.

Dona Onete honra muito toda a cultura paraense e ribeirinha – alimentar, musical, territorial etc. Acho fantástico, porque, como paraenses, nos reconhecemos nela.

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"Ela tem uma música que fala sobre farinha que é uma maravilha. Se você for para o interior do Pará, vai ver como é. O que ela canta sobre como fabricar farinha é daquela época antiga. Há outras coisas que ela canta também, como a culinária paraense em Jamburana, na qual fala sobre as comidas típicas daqui. E o seu linguajar: o banzeiro, a pororoca. Ela canta o Pará, a poesia dela é muito forte. É gratificante ouvi-la falar e cantar sobre a cultura paraense."

Nil Almeida, o Vovô [em entrevista ao Itaú Cultural]

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O encanto paraense

por William Nunes

Dona Onete é um símbolo do Pará. De Cachoeira do Arari a Igarapé-Miri e chegando a Belém, ela é representante de uma cultura rica e abrangente, como disseram muitos dos nossos entrevistados para este projeto Ocupação. É muito fácil se encantar com as belezas paraenses só de ouvir Dona Onete falar ou cantar.

Para além da cantora, no entanto, descobrimos o encanto desses lugares por meio de olhares e de histórias de outros moradores – neste caso, com Dona Benoca e Nay Jinknss. As falas de ambas ressaltam a singularidade de cada um desses espaços.

A luta de Dona Benoca em Igarapé-Miri

A terra do açaí tem muita história para contar – não somente sobre o famoso fruto, mas também sobre cultura popular, ativismo, educação e pessoas. Pessoas como a professora, hoje aposentada, Benedita dos Santos Miranda, ou, como é conhecida, Dona Benoca. Professora e ativista ao lado de Dona Onete, além de tia da cantora Gaby Amarantos, ela fala com orgulho sobre a luta de tantos anos que resultou no desenvolvimento da cidade e de seus cidadãos.

“A minha Igarapé-Miri hoje é uma cidade bonita, é uma cidade de muitas expectativas. É a terra de Sant’Ana, que nos inspira a receber romeiros e romeiras para a grande festa da nossa padroeira, no mês de julho”, inicia sua fala Benoca. “A minha luta e da Dona Onete – junto com outros companheiros e companheiras – contribuiu muito para Miri e para a condição de vida das pessoas. Nós reivindicamos concurso público que melhorasse a vida dos funcionários, melhores salários, criamos nosso sindicato [o Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (Sintepp)], ajudamos o Sindicato Rural e a colônia de pescadores a terem seus direitos de trabalhadores. E conseguimos! A nossa luta se reflete hoje no bom salário que esses funcionários recebem. A nossa luta fez com que eles tivessem carteira assinada.”

Para a professora, são muitos os pontos que ajudam no desenvolvimento cultural e econômico do munícipio paraense. “O açaí, a pesca do mapará [espécie de peixe que se encontra em água doce], a carpintaria naval – profissão que está se extinguindo, mas que em Igarapé-Miri existe em grande escala –, os trabalhadores rurais e a agricultura de subsistência, que sustentam suas próprias famílias”, ela comenta. Além disso, há a cultura dos festivais – como o do açaí e o do camarão –, o encontro das cobras, as festas religiosas dos padroeiros. “Aqui também há uma musicalidade muito grande”, ela acrescenta, para depois completar: “Artistas como Aldo Sena e a professora Ionete, que cantam sobre nossa terra. Artistas que fazem a alegria do povo”.

Tendo sido educadora durante toda a sua vida, o orgulho pelo desenvolvimento educacional não poderia ficar de fora de suas falas: “Igarapé-Miri cresceu muito na construção de escolas-polos, escolas boas para nossas crianças”.

Nas entrelinhas da Belém de Nay Jinknss

Para falar de uma cidade tão rica culturalmente quanto Belém, a artista e pesquisadora Nay Jinknss recorre ao professor de estética, história da arte e cultura amazônica Paes Loureiro, da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Ele fala sobre dois conceitos: a cultura de presença e a de sentimento. A cultura de presença é quando entramos em contato com algo e ficamos enfeitiçados. Belém é uma cidade única, ela te prende pelas cores, pela música, pela chuva, pelo mormaço. E quanto tu vai embora, tu sente e quer voltar”, diz. “Já a cultura de sentimento é para quem nasce aqui. Não é uma receita certa, mas quem nasce em Belém nasce com outro olhar em relação ao mundo lá fora. A gente cresce, muitas vezes, pensando que o que é bom é o que vem de fora. Até determinado momento do nosso crescimento quando a gente quer pegar de volta tudo aquilo que deixou para trás. O amor por Belém fica ainda mais forte.”

Belém, seus cantos e encantos são peças-chave na fotografia de Nay: “Toda vez que eu falo do Ver-o-Peso ou do Pará, imagino que estou falando de uma pessoa. E essa pessoa é a minha pessoa favorita, é complexa e, ao mesmo tempo, simples. É um grande corpo que cheira, tem tato, que se comunica o tempo todo. Belém é uma cidade molhada, quente, e acho que isso faz parte do que a gente não consegue explicar”.

Mais do que ver apenas o que está diante dos seus olhos, é importante ver o seu imaginário; afinal, há também o que não se pode ser explicado ou que está subentendido. “A nossa relação com as águas, com a floresta, com a paisagem, com esse rio que é dourado. O que existe de real em Belém é o que está nas entrelinhas – é a cobra-grande, o rebujo, o pitiú”, explica.

“A minha Belém é cercada de encantaria, mas é uma encantaria que a gente precisa se desdobrar para compreender. A gente tenta negar muitas vezes a nossa cultura, e acho que em algum momento sentimos um palpitar mais forte, a parada tremer. É Belém conversando com a gente”, finaliza.

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A importância da região da Amazônia

A Amazônia já foi chamada de “pulmão do mundo”, mas, embora conte com uma imensa biodiversidade, colocar todo esse peso na região é um erro. O que a Amazônia produz é, praticamente, todo consumido por ela mesma – como um sistema de retroalimentação. Não se deve romantizar a Amazônia, região que já sofreu – e ainda sofre – com a exploração e a ganância de quem busca riqueza em suas terras.

Com a Ocupação Dona Onete, a primeira artista com origem no Norte do país a ser homenageada pelo programa do Itaú Cultural (IC), reforçamos as tantas narrativas que esse território apresenta – de Belém (PA) a Manaus (AM), as duas maiores capitais da região, cidades com culturas locais tão ricas; de Igarapé-Miri à Ilha do Marajó, territórios que marcam a trajetória de Dona Onete.

Nesta linha do tempo, que acompanha a cantora do seu nascimento aos lançamentos e às turnês musicais, voltamos nossa atenção para fatos históricos e culturais da região da Amazônia – ou, como a pesquisadora Vânia Leal ressalta, “Amazônias”.

por Vânia Leal
com colaboração de Emerson Caldas

1939
Em 18 de junho, nasce Ionete da Silveira Gama, filha de Alfredo Gama Junior e Maria Raimunda da Silveira Gama, no município de Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, no Pará. Ainda criança, muda-se para o bairro da Pedreira, em Belém.

Neste período, a Amazônia passa pelo segundo boom da borracha brasileira, em 1940, por causa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), acarretando nova mão de obra encaminhada pelo governo brasileiro aos seringais da região – da seringueira se extrai a matéria-prima para a fabricação da borracha. O território passa a ser conhecido como Novo Eldorado.

1950
A mãe de Ionete, Maria Raimunda da Silveira Gama, falece quando a cantora tem apenas 11 anos. A menina passa a residir com a avó Quitéria Ferreira Gama. Em Belém, de 1950 a 1955, realiza seus estudos primários nas escolas Justo Chermont e Dr. Freitas, até a 5a série. Durante as férias, costuma viajar com a avó para Igarapé-Miri, no Rio das Flores.

1955
Aos 16 anos, tem suas primeiras experiências no magistério, auxiliando seu tio Mailson em uma escola municipal que funcionava na residência deste, em Igarapé-Miri.

São criados os municípios amazonenses de Atalaia do Norte, Autazes, Careiro, Envira, Japurá, Juruá, Jutaí, Maraã, Nova Olinda do Norte, Novo Aripuanã e Tapauá.

1958
Aos 19 anos, Dona Onete muda-se para Igarapé-Miri, onde se casa com Raimundo Nonato. O casal tem dois filhos, Renato e Silvana. Nesse período, inicia suas pesquisas no folclore miriense, assunto que aborda nas aulas de história e estudos paraenses que ministra na Escola Aristóteles Emiliano de Castro. Nas festas de Carnaval e boi-bumbá, ela e o marido iniciam na produção artístico-cultural, na exibição de blocos de rua, Carnaval, boi-bumbá e festa junina. Dona Onete já escrevia letras que eram censuradas pelo marido.

Anos 1960
Com o início da ditadura militar, em 1964, o discurso nacionalista da época deixa suas marcas na Amazônia. Com a perspectiva dos militares de unificação do país, falam sobre a proteção da floresta contra a internacionalização. Em 1966, o presidente Castelo Branco lança o discurso nacionalista “Integrar para não entregar”.

O incentivo à ocupação e à exploração da Amazônia ocasiona um aumento da área desmatada – que, em 1978, chega a 14 milhões de hectares.

Anos 1970
Em 1975, surge a Rauland Belém Som, empresa que lançou cantores locais de gêneros como carimbó, siriá, bolero e merengue. Pinduca, Mestre Cupijó, Orlando Pereira, Emanuel Vagner e Francis Dalva são alguns deles. Nos anos 1980, a Rauland torna-se RJ Produções.

Anos 1980
Quando completa 25 anos de casada, Dona Onete se divorcia. E, no início de 1980, a convite de amigas, passa a integrar a militância do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em fevereiro do mesmo ano.

Na década de 1980, o Papa João Paulo vem ao Brasil e visita algumas cidades do país, entre elas Belém do Pará.

Rondônia, em 1981, Amapá e Roraima, ambos em 1988, deixam de ser territórios e passam a ser estados do Brasil.

1989
Dona Onete cria o Grupo Canarana, em Igarapé-Miri, que apresenta “Coisa de Miri”, com 12 músicas compostas por Dona Onete, entre elas “Nosso Igarapé-Miri”.

1996
Dona Onete assume o cargo de assessora de Cultura no município de Igarapé-Miri, quando passa a se aprofundar mais na história da cidade.

Anos 2000
Dona Onete passa a integrar o Coletivo Rádio Cipó, importante grupo de valorização de artistas paraenses, como Mestre Laurentino e Mestre Bereco.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população da Amazônia Legal chega a 21 milhões de pessoas em 2000. Estudos sobre os impactos da intervenção humana na Floresta Amazônica avançam em sua consistência. A ONG Imazon, em 2002, realiza pesquisa apontando que 47% do território passa por algum tipo de pressão humana.

Com o surgimento do tecnobrega nos anos 2000, a banda paraense Tecno Show, da cantora Gaby Amarantos, passa a misturar ritmos como carimbó, calypso (brega pop), forró eletrônico e músicas internacionais que dominaram a programação de emissoras de rádio no ano de 2002.

2006
A música “Mareia, mareia”, composta por Dona Onete, é vencedora do prêmio Troféu Mestre Lucindo, na categoria Carimbó de Raiz, durante a terceira edição do Festival de carimbó de Marapanim (PA).

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sanciona a Lei Maria da Penha, que aumenta o rigor nas punições de agressões contra a mulher.

Em 26 de agosto de 2004, é celebrado o centenário de Mestre Verequete, músico influente do carimbó raiz. A data passa a representar, em Belém do Pará, o Dia Municipal do Carimbó, com base na Lei no 8.305.

2008
Dona Onete e outros professores e historiadores são convidados a contar a história de Igarapé-Miri para os carnavalescos da escola de samba Rancho Não Posso me Amofinar, de Belém, que homenageia aquela cidade. A escola sagra-se campeã, com o samba-enredo “Dos mamangais aos caminhos de canoa pequena”.

2011
A cidade de São Paulo recebe uma edição do Festival Terruá Pará, criado em Belém.

2012
Dona Onete lança seu primeiro disco, intitulado Feitiço caboclo, produzido pelo músico Marco André. Ainda neste ano, a cantora participa da faixa “Mestiça”, do álbum Treme, de Gaby Amarantos.

2013
É lançado o livro A menina Onete: travessias e travessuras, de Antônio Maria de Souza Santos e Josivana de Castro Rodrigues, neta de Dona Onete.

2014
Dona Onete é entrevistada pela BBC, no LatAm beats.

Durante os anos de 2008 e 2013, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) realiza o Levantamento preliminar e identificação do carimbó nas Mesorregiões Nordeste Paraense, Metropolitana de Belém e Marajó. Em 2014, o carimbó é titulado como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

Em 2015, ocorre o I congresso estadual do carimbó, no município de Ananindeua (Região Metropolitana de Belém), em parceria com o Iphan, com o intuito de promover um debate sobre a cultura amazônica e o carimbó como ritmo de resistência da ancestralidade do povo paraense.

2016
Dona Onete lança seu segundo álbum, Banzeiro, no qual reúne canções inéditas. A cantora passa a ter reconhecimento internacional, sendo admirada em países da Europa e nos Estados Unidos. Em novembro de 2016, apresenta-se na Elabash City Hall, onde é prestigiada por cantores como Caetano Veloso e David Byrne.

2017
Em julho, Dona Onete é capa da revista Songlines. Realiza sua quarta turnê na Europa, nos eventos Rudolstadt festival, na Alemanha, Zwarte Cross, na Holanda, e WorldWide festival (do DJ e produtor Gilles Peterson), na França. Em junho/julho, é a única artista brasileira a integrar o World Music Charts Europe, ficando no top 20 com “Banzeiro”. É indicada ao Prêmio da Música Brasileira de 2017, na categoria Melhor Cantora Regional, e nomeada para a Ordem do Mérito Cultural.

2018
Lança o LP ao vivo Flor da Lua.

2019
Dona Onete se apresenta no Rock in Rio, no palco Sunset. Lança o disco Rebujo, que é eleito um dos 25 melhores álbuns brasileiros pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

2021
Participa da faixa “Última lágrima”, do álbum Purakê, de Gaby Amarantos, ao lado da Elza Soares e Alcione.

2022
Aos 83 anos, a cantora recebe, no Theatro da Paz, em Belém do Pará, o troféu Tradições, concedido pela União Brasileira de Compositores (UBC).

Ocorre a 15a edição do Festival Psica, celebrando 15 anos de valorização da música paraense e seu diálogo com o cenário artístico nacional.

 

Referências

CAMPELO, Lilian Cristina Holanda. Dona Onete e o imaginário folk-amazônico. In: XXXIV CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – INTERCOM, 2 a 6 set. 2011, Recife. Anais […]. Recife, 2011.

COSTA, Tony Leão da. Brega paraense: indústria cultural e tradição na música popular do Norte do Brasil. In: XXVI SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, jul. 2011, São Paulo. Anais […]. São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300474696_ARQUIVO_Brega-ANPUH2011.pdf.

MORAES, Patrich Depailler Ferreira. O feitiço caboclo de Dona Onete: um olhar etnomusicológico sobre a trajetória do carimbó chamegado, de Igarapé-Miri a Belém. 2014. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências das Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014. Disponível em: https://ppgartes.propesp.ufpa.br/disserta%C3%A7%C3%B5es/2012/Patrich%20Moares.pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.

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