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Ilka Zanoto: No Acre
JN chegou ao Acre no momento exato em que se agigantavam as contradições entre seringueiros, posseiros e fazendeiros latifundiários, as quais culminaram no assassinato de Chico Mendes em 22 de dezembro de 1988. Como cidadão do mundo, além de participar da agitada atmosfera cultural e política, fundiu vários grupos existentes no Grupo de Teatro Poronga.
O texto “Tributo a Chico Mendes”, encomendado pelo Conselho Nacional dos Seringueiros, foi elaborado em 20 dias pelo método tradicional do diretor de colher notícias em jornais e rádios, além de entrevistas com personalidades e elementos do povo envolvidos no conflito.
Em textos de vários autores, traço linhas paralelas, que ao fim e ao cabo explicitam aqueles acontecimentos que carrearam à época para nosso território a atenção e o repúdio universais. Veremos que, no torvelinho do frêmito acriano, se revelaram destinos, referências obrigatórias quando se depara com a abrangência da questão amazônica.
Darcy Ribeiro em Maíra (1978) ou em O Povo Brasileiro – a Formação e o Sentido do Brasil (1995); Tristão de Athayde no Jornal do Brasil e em O Pasquim; Antonio Candido no prefácio de Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento, de Paulo Emílio Sales (1980); e o próprio autor no livro ou mesmo em artigo de minha autoria ou também no depoimento que transcrevo a seguir.
“João das Neves assiste e participa, como cidadão do mundo, ao choque de costumes entre índios e seringueiros de um lado e latifundiários e governo, de outro. Enquanto os últimos, munidos do aparato e arsenal financeiro, e muitas vezes armamentício, vislumbram uma outra sociedade para si, os primeiros (índios) são empurrados para a cidade sem infra-estrutura para recebê-los, são literalmente “tombados”, pois que contraditoriamente, expulsos de suas vidas, são tombados como patrimônio cultural e, até hoje, em outdoors, são reverenciados pela nação. Diante desse cenário, o dramaturgo vai colocar sua arte a serviço da contestação e levar ao palco tanto os conflitos como a cultura dos “tombados”. […] Envolvido com a cultura local, João foi criando raízes em seus pés e na história do teatro acreano. […] O Acre foi subitamente projetado tanto no cenário nacional como internacional, com suas questões sociais e ambientalistas discutidas não só no Brasil como no mundo: o direito de contestação, de novas formas de organização de grupos, o assassinato de trabalhadores e a defesa da floresta pelos que nela vivem. Esse contexto confere absoluta atualidade às palavras quase proféticas de Euclides da Cunha sobre a presença dos caucheiros no Acre, na virada do século: “Nunca se armou tão imponente cenário para tão pequeninos atores”. É neste cenário que João das Neves contribui, também, para que sejam referendadas, decisiva e efetivamente, algumas das propostas artísticas defendidas por alguns dramaturgos nos anos 60 e 70, no eixo Rio-São Paulo […]. (Profa. dra. Maria do Socorro Calixto Marques, cidadã acreana, atualmente cursando pós-doutorado na Universidade de Bolonha, Itália.)”
Entre os mitos indígenas pesquisados na sua estada junto aos Kaxinawás, publicados em Caderno de Acontecimentos e encenados no Cine Teatro Recreio, em Rio Branco, em 1987, citemos o Mito do Fogo, metáfora da tragédia de Prometeu.
A pergunta a ser respondida hoje e sempre é: quem roubou ou apagou o fogo da adolescência de Piaba, jovem índio sacrificado por ter se apoderado do fogo que não era dividido a fim de reparti-lo entre todos? Quantos piabas excluídos da posse do fogo são sacrificados inda hoje nos becos do país? Clamam os políticos pela educação para todos que nunca é dividida. A dinheirama surrupiada e que paga seus salários exorbitantes não será a causa primeira de tanta injustiça e desigualdade?
Finalmente, Yuraiá – o Rio do Nosso Corpo nasceu da estreita convivência de JN com os índios Kaxinawá (quando de sua segunda ida ao Acre patrocinada pela Fundação Vitae, entre 1992 e 1994) e clama por ser encenado, seja nos gramados do Parque Ibirapuera, seja no Pátio do Colégio – com seu cupichaua (moradia típica dos Kaxinawás) erguido e aberto à convivência dos Kaxinawás e do povo. Somente assim haverá a interpenetração de nossas culturas: a urbana e a das profundezas amazônicas, patrimônio do inconsciente coletivo de todos nós brasileiros.
João é, antes de tudo, um poeta. Desde A Lenda do Vale da Lua e de O Último Carro, surpreendeu-nos pela acuidade com que seus textos espelham a realidade brasileira, recriando-a nos moldes da mais elevada ficção, que, à feição dos clássicos gregos do teatro, se entremeia de trechos de poesia. Solidário com os injustiçados de todos os matizes, volta-se para o universo complexo dos povos da floresta, seringueiros, caboclos, índios, brancos, não importa a cor. Por dois anos viveu entre eles em Rio Branco, mergulhando fundo nos mistérios da civilização Kaxinawá. Dessa vivência brotaram páginas que mesclam à denúncia a opressão secular e o pranto pelo desaparecimento paulatino de um povo cujos mitos, crenças, língua, hábitos e conduta ética o autor resgata de forma sintética e admirável.
João é homem de teatro total. Como provou em trabalhos anteriores, sua escritura cênica é sumamente original; compete a ele transformar em realidade as virtualidades de um texto que exige a recriação de um clima especialíssimo, no qual o espaço oscila entre a concretude de uma aldeia Kaxinawá e as paragens brumosas dos ritos imemoriais. E o tempo ziguezagueia entre presente e passado histórico e a atemporalidade das lendas e dos mitos. Incomparáveis as descrições das paisagens de cuja perenidade brota límpido um ímpeto de liberdade irreprimível – o mesmo que passa pelo Yuraiá, rio do nosso corpo que nós queremos livre, assim como a natureza é livre.
Afeito a reivindicações factuais de justiça e de igualdade, João assume nessa obra uma dimensão mais ampla, ao justificar quase panteisticamente o direito inalienável à liberdade. O Brasil precisa urgentemente conhecer esse pedaço de si próprio, esse Yuraiá, seiva profunda, capaz de ressuscitá-lo.
Ilka Zanoto é crítica e pesquisadora de teatro. Durante as décadas de 1970 e 1980, foi voz ativa contra a repressão do período militar.
Tributo a Chico Mendes
Tributo a Chico Mendes
Tributo a Chico Mendes
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Diálogos com o Povo Kaxinawá
Norberto Sales Kaxinawá (Tenê) é graduado em formação docente para indígenas e foi diretor da Associação de Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão.
Vamos Fazer o Teatro
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O Grupo Poronga e o ‘Caderno de Acontecimentos’
João das Neves é dramaturgo, ator, diretor e escritor, homenageado desta Ocupação. Ivete Maria de Souza, Clarice Batista, Francisco Estevão Costa (Major) faziam parte do grupo Poronga.