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Machado relido

A difícil tarefa de recriar obras machadianas

O professor e pesquisador Hélio de Seixas Guimarães, também consultor da Ocupação Machado de Assis, fala sobre o trabalho de adaptar textos do artista para outras linguagens, como fez Júlio Bressane no cinema.

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O que virou música

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As bruxarias musicais de Machado de Assis

Samba, rock, MPB: o Bruxo do Cosme Velho já serviu de inspiração para diferentes artistas, de Martinho da Vila a Barão Vermelho

por André Bernardo

“Uma explosão na minha vida.” É assim que Zeca Baleiro define a leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), aos 14 anos, para o colégio. O cantor e compositor maranhense já tinha lido outras obras do escritor, como o conto O alienista (1882) e os romances Quincas Borba (1891) e Esaú e Jacó (1904), mas a leitura de Brás Cubas, quase simultânea à de O estrangeiro (1942), de Albert Camus, se assemelhou a “um soco no estômago”. “Vi que havia outras formas de pensar, de escrever e de viver”, relata. “Foi uma erupção mental. Passei a questionar o mundo pequeno burguês em que vivia. Eu me tornei mais transgressor. E mais ‘pensador’ também…”

Em seu novo álbum, O samba não é de ninguém (2023), Zeca Baleiro presta homenagem a Machado na canção “Triste Lupicínio”. “Parodio uma frase clássica dele. Canto ‘Ao perdedor as batatas’, subvertendo a célebre ‘Ao vencedor as batatas’, que está no Quincas Borba, se não me falha a memória. É um samba cheio de referências literárias e musicais.” E, por falar em samba, Baleiro lançou, em 2007, Lado Z. Um dos destaques do disco é a regravação de Salve a mulatada brasileira (1975), de autoria de Martinho da Vila. Na letra, o sambista fluminense cita alguns mulatos famosos, como José do Patrocínio, Aleijadinho e Machado de Assis.

Martinho da Vila, aliás, ainda não tinha adotado seu sobrenome artístico quando compôs um samba-enredo em homenagem a Machado de Assis. Foi em 1959, para o G.R.E.S. Aprendizes da Boca do Mato. À época, Martinho José Ferreira era cabo do Exército – chegou ao posto de terceiro-sargento – e, nas horas livres, disputava concursos de samba. “Acredito piamente que o enredo sobre Machado de Assis foi o responsável por eu me interessar pela literatura”, explica o sambista no livro Kizombas, andanças e festanças (1992). “Até ali não me lembro de ter lido livro algum, nenhum mesmo, pelo prazer de ler.”

O interesse de Martinho da Vila foi tanto que ele virou escritor. Já publicou mais de 20 títulos: de infantojuvenil, como A rosa vermelha e o cravo branco (2008), a antologia de crônica, como Conversas cariocas (2017). Um deles, inclusive, Memórias póstumas de Teresa de Jesus (2002) – biografia de sua mãe –, faz alusão a Memórias póstumas de Brás Cubas. Em 2010, Martinho tomou coragem e disputou uma vaga na instituição fundada por Machado de Assis em 1897, a Academia Brasileira de Letras (ABL). Quem levou a melhor na eleição foi o diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti, eleito com 20 dos 39 votos válidos – o jurista Eros Grau recebeu 10 votos, o jornalista Muniz Sodré recebeu 8 e Martinho nenhum. Desgostoso, Martinho da Vila prometeu a si que, daquele dia em diante, só disputaria samba-enredo na Unidos de Vila Isabel, sua escola do coração.

Inspiração literária
Zeca Baleiro e Martinho da Vida são exemplos de artistas que já fizeram músicas com citações à obra de Machado. Coincidência ou não, compuseram sambas, mas a obra machadiana inspira os mais diferentes gêneros: da ópera Dom Casmurro (1899), com letra de Antonio Piccarolo e música de João Gomes Júnior, encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1922, ao “Rock do cachorro morto”, versão de Guto Goffi e George Israel para o poema “Suave mari magno” (1880), gravada no álbum Barão ao vivo, de 1989, do Barão Vermelho.

A lista é extensa e abrange, entre outros artistas, o ator Miguel Falabella, que declamou o poema “Crisálidas” (1864), para o CD Momentos de amor, de 2000; a cantora Vanessa da Mata, que compôs “Ano de 1890”, para seu álbum de estreia, de 2003; e o rapper Emicida, que cita o escritor na letra de “Dedo na ferida”, incluída no DVD Criolo & Emicida ao vivo, de 2013. “Ele é, sem dúvida, um dos melhores escritores do mundo”, declarou o cantor Djavan, no Instagram, em 2021 ao recomendar Dom Casmurro. “E, graças a Deus, é brasileiro!”

O escritor José Miguel Wisnik, além de compor “A sonata de Flora”, de 1993, a partir do romance Esaú e Jacó, escreveu o ensaio “Machado maxixe: o caso Pestana”, de 2008. O Pestana do título é o protagonista do conto “Um homem célebre”, de 1883. Apesar de famoso pelas polcas que compunha, morreu frustrado por não ter sido um compositor clássico. “Machado, que eu saiba, não cantava, nem tocava nada, mas admirava canto lírico e tinha a música, especialmente a clássica, em alta conta”, explica o escritor e roteirista Luiz Antônio Aguiar.

Para o autor de Almanaque Machado de Assis – vida, obra, curiosidades e bruxarias literárias (2009), não é difícil explicar o fascínio que Machado desperta em cantores e compositores brasileiros. Seu maior mérito, prossegue, é a atualidade de sua obra. “Machado não é importante pelo que foi, mas pelo que é. Sua obra ajuda a pensar questões atuais. O racismo, por exemplo. Hoje, enquadra-se como elemento estrutural da sociedade brasileira, mas isso já está colocado – embora não com o termo ‘estrutural’, em contos como “O caso da vara” (1891). O racismo não como acaso, mas como elemento de desigualdade social.”

Louco por ópera
No caso de Dom Casmurro, a obra-prima de Machado de Assis inspirou duas óperas. Setenta anos depois da primeira montagem, em 1922, o romance voltou a ser adaptado, em 1992. Tudo começou em 1976 quando Ronaldo Miranda cursava o último ano do curso de composição na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na ocasião, Miranda convidou o amigo Orlando Codá para esboçar algumas cenas do que, anos depois, se transformaria no primeiro ato de uma ópera.

Em 1988, Miranda retomou o projeto. Com uma bolsa de criação artística, transformou o romance numa ópera de 2 horas e 15 de duração. “O romance tem todos os ingredientes do gênero: um triângulo amoroso, uma paixão avassaladora, intrigas familiares e um final trágico”, detalha. “A maior dificuldade? Talvez a narrativa literária e a introspecção psicológica, mas Codá soube teatralizar os capítulos do livro. Dom Casmurro foi um grande sucesso de público. A temporada de cinco récitas terminou com casa lotada”, orgulha-se.

Dom Casmurro não foi o único texto de Machado a ser transformado em ópera. Neste ano, “A cartomante” (1884), um dos contos mais populares do autor, foi adaptado pelo compositor Eduardo Frigatti. A estreia mundial aconteceu em junho, no Salão Leopoldo Miguez, na Escola de Música da UFRJ, com regência do maestro Thiago Santos. “Machado era um amante de ópera. Além de ter traduzido algumas peças para o português, fez menção ao gênero em todos os seus romances”, revela o compositor. “A literatura brasileira tem forte tendência à narrativa e ao psicologismo. E, numa ópera, precisamos de diálogos. Procurei aproveitar ao máximo os de “A cartomante”, mas como não foram suficientes citei outras obras do autor, como Dom Casmurro”, explica Frigatti que leu a obra pela primeira vez na adolescência.

“O primeiro que li foi Memórias póstumas de Brás Cubas e o que mais me cativou foi Dom Casmurro. Tanto que releio de tempos em tempos. Quanto a Brás Cubas, eu e meus amigos adotamos alguns vocábulos na época. O que mais repetíamos era ‘piparote’. Machado fazia a gente vir a ser gente sem que a gente soubesse”, filosofa.

Outra versão de “A cartomante” foi incluída em Roxo, o álbum de estreia do grupo Filhos da Ciça, lançado no ano passado. Em meados de 2021, o vocalista e baixista da banda, Robson Soares, tentava compor algo para completar o repertório, mas, em plena pandemia de covid-19, não conseguia pensar em nada: nem em tema para a letra nem em riff para a música. Foi quando se deparou com a coleção de livros de Machado de Assis na estante de casa. Tinha ganhado de presente, fazia alguns anos, de uma professora aposentada.

Na mesma hora, lembrou-se de “A cartomante” e de sua atmosfera dúbia, tensa e trágica, perfeita para a sonoridade do álbum, pensou. Em pouco tempo, releu o conto e, em menos tempo ainda, escreveu a letra e compôs o arranjo. “Desde a primeira vez que li “A cartomante”, no início de 2019, eu me senti impactado. Era ao mesmo tempo romântico, com suas traições proibidas; obscuro, com os mistérios das superstições; e trágico, com a cegueira da paixão. Eu o carrego comigo até hoje”, afirma o músico paulista.

Musa apaixonante

Algo parecido aconteceu com o cantor e compositor paulistano Luiz Tatit. Com a melodia pronta na cabeça, ele saiu à procura de uma personagem para a letra. Custou a encontrar. Até testou outros nomes, mas precisava de uma palavra que fosse oxítona. Foi quando se lembrou de Capitu, de Dom Casmurro. A canção faz parte do repertório do álbum O meio, de 2000. Na letra, palavras que fazem referência à obra-prima machadiana, como “ambíguo”, “ressaca” e “traição”. “A canção, apesar da personagem, tem pouco a ver com a literatura de Machado de Assis”, jura. “Fiz a melodia bem antes e, em seguida, uma letra com outra personagem (inventada). Como estava difícil completar o texto, troquei a personagem para ter mais opções de continuidade, já que as referências de Machado são bastante conhecidas. Nada além disso.”

A música “Capitu” foi gravada por Ná Ozzetti, no álbum Estopim, de 1999, e regravada por Zélia Duncan, no álbum Eu me transformo em outras, de 2004, e por Joyce Cândido, em Panapaná, de 2007. O próprio Tatit regravou a canção no CD e DVD Rodopio, de 2007, e no DVD O fim da canção, de 2012.

A mulher de olhar oblíquo e dissimulado, aliás, inspirou a cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto a escrever a canção “Olhos de onda”, que deu título ao seu terceiro álbum ao vivo, de 2012. Não foi a primeira vez que Calcanhotto gravou uma música que fazia referência direta ou indireta à obra do Bruxo do Cosme Velho.

A primeira foi “Mão e luva”, de autoria de Pedro Luís, incluída no CD Marítimo, de 1998. O convite – ou melhor, a provocação – partiu de Bel Guedes. Depois de ouvir atentamente a discografia da artista, Pedro Luís se propôs a criar uma canção que caísse “como uma luva” para a voz da “cantautora”. “Lembrei do romance ‘A mão e a luva’ (1874) e corri para comprá-lo. Mas a inspiração desaguou na canção antes que eu avançasse na leitura. Fiquei devendo a revisita, mas como agora tenho a obra completa vou me impor esse luxo”, avisa.

Há dias, Pedro Luís sofreu outra “provocação”. Desta vez, da produtora Andréa Alves, com quem trabalhou, entre outros projetos, nos espetáculos Gota d’água [a seco], de 2016, e Elza, o musical, de 2018. O próximo desafio, anuncia, é assinar a trilha sonora e fazer a direção musical de O alienista, musical inspirado no conto homônimo de Machado de Assis.

Com direção de André Paes Leme, o “privilégio desafiador”, define Pedro Luís, ainda não tem previsão de estreia. “Tanto em casa quanto no colégio, Machado era uma louvação obrigatória. O encontro entre o rigor e o talento conferem ao autor uma eternidade atemporal. Sua obra é fluente e sua escrita irretocável. Ele nos fala da sociedade como quem fala ao pé do ouvido. Machado tem o mérito de fazer a erudição ser algo acessível a todos”, destaca.

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"Memórias póstumas de Brás Cubas foi uma explosão na minha vida” – Zeca Baleiro

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“Erro”, por Elisa Lucinda

A atriz e escritora Elisa Lucinda lê o poema “Erro”, de Machado de Assis. A direção é de Edi Cardoso.

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Machado de Assis em três tempos

Encenações no cinema e no teatro de obras como “Dom Casmurro”, “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Pai contra mãe” provam a atemporalidade do maior escritor brasileiro de todos os tempos

por Cristiane Batista

Considerado o maior nome da literatura brasileira, Machado de Assis (1839-1908) nasceu Joaquim Maria Machado de Assis, em uma família de poucos recursos no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Autodidata, foi contista, cronista, romancista, poeta, teatrólogo, crítico teatral e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual também foi presidente. Com obras traduzidas para diversas línguas, teve, ainda, muitas adaptações para o cinema, a TV e o teatro, além de ópera, música, dança e histórias em quadrinhos.

Crítico da boemia e da elite carioca no final do século XIX, seu trabalho destaca, com ironia e humor, aspectos socioculturais da vida brasileira comuns não só à época, como também a hoje em dia, como atesta Hélio de Seixas Guimarães, professor livre-docente na Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os leitores de Machado de Assis e Machado de Assis, o escritor que nos lê: “Machado trata das questões humanas fundamentais ao mesmo tempo que é capaz de dar forma artística a dinâmicas profundas do mundo em que viveu. As grandes paixões, assim como as formas de violência e exploração que Machado captou em seus textos, continuam a fazer sentido no mundo em que vivemos. O mundo da imagem, da publicidade, da celebridade e do triunfo do capital financeiro, que ele viu emergir, é ainda o mundo em que vivemos”, diz ele. “O Brasil racista e escravocrata do século XIX, por exemplo, ainda perdura. Daí a sensação muito frequente de que alguns textos seus, escritos há 100, 150 anos, pareçam ter sido publicados ontem.”

Hélio tinha 10 anos quando foi impactado pela obra de Machado de Assis pela primeira vez ao ler Helena, um dos títulos disponíveis na biblioteca do pai. “Isso foi em 1975, mesmo ano em que a TV Globo exibiu uma adaptação do romance feita pelo Gilberto Braga, inaugurando uma nova faixa de telenovelas dedicada a adaptações de textos literários. Fiquei fascinado com o romance, com sua adaptação para a TV e com as relações entre as duas narrativas. Penso que o aprendizado do autor com o teatro foi decisivo para a sua produção em outros gêneros – por exemplo, no uso magistral dos diálogos e na construção precisa de cenas e situações dramáticas”, aponta.

“Ele foi muito sensível ao mundo dominado pelas imagens. Foi muito atento também ao desenho, à pintura e à nova técnica da fotografia, que estava surgindo. Todos esses dispositivos visuais aparecem em momentos importantes de seus textos. Da fotografia para as imagens fotográficas em movimento, que se popularizariam depois do tempo de Machado, com o cinema e a TV, foi um pulo, e é possível que ele tenha conseguido imaginar esses desdobramentos”, continua o professor. “Machado de Assis foi um tremendo observador, e em muitos dos seus textos os narradores e as personagens parecem apalpar com o olhar tanto as coisas visíveis como as invisíveis – eu diria que especialmente as invisíveis, ou aquelas que a gente gosta de ocultar.”

Recortes e memórias cinematográficas

 O ator Petrônio Gontijo interpretou o personagem Brás Cubas no filme Memórias póstumas, inspirado em Memórias póstumas de Brás Cubas, livro publicado em 1881 e que inaugurou o Realismo no Brasil. Na película, dirigida por André Klotzel e vencedora em cinco categorias, entre elas a de Melhor Filme, no Festival de Gramado de 2001, Gontijo divide o papel de Brás Cubas com Reginaldo Faria em fases diferentes da vida. Na narrativa, o “defunto-autor” conta e analisa a sua vida depois de morto.

Petrônio Gontijo como Brás Cubas no filme Memórias póstumas, em cena com Sônia Braga | imagem: divulgação

 

“Meu maior desafio era tornar esse personagem crível. Muitas cenas vinham narradas pelo Reginaldo e eu tinha que estar em sintonia, por vezes sublinhando o que ele falava e em outras contrapondo-o. Há um capítulo só de reticências, e elas significam toda a lentidão e o tédio de um homem dotado de muitas posses, mas que não sabe como contribuir de alguma forma na sociedade. Só um gênio como Machado para escrever assim, e o André conseguiu transportar essas reticências para o cinema”, diz. “Em outro capítulo, ele agradece as pernas por levá-lo aos lugares. O fascínio do personagem é exatamente por essa inação, por ele não saber por onde caminhar junto com as ideias dele. Tudo isto é absolutamente cinematográfico: as situações, os ambientes e, principalmente, os conflitos do personagem. Isso reflete muito o quadro social da época do Brasil e das desigualdades que sempre existiram e que continuam existindo – caso do machismo, por exemplo.”

Petrônio Gontijo como Brás Cubas no filme Memórias póstumas | imagem: divulgação

 

Outra obra que aposta na observação de costumes e na tensão psicológica dos personagens é Dom Casmurro, clássico de 1899 calcado no triângulo (amoroso?) formado pelo narrador da história, Bentinho, Capitu, a dona dos famosos “olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada”, e Escobar, melhor amigo de Bentinho, com quem ele acredita que a esposa mantinha um romance. Usando digressões e metalinguagens, o narrador em primeira pessoa se aproxima do leitor e faz de tudo para convencê-lo de suas suspeitas, apelando para o moralismo e a tradicional fofoca popular do “afinal: traiu ou não traiu?”.

O tema ganhou algumas adaptações para as telonas: Capitu, de Paulo Cezar Saraceni, feito em 1968 com roteiro assinado por Lygia Fagundes Telles e Paulo Emílio Salles Gomes; Dom, longa-metragem de 2003 dirigido por Moacyr Góes, que atualiza a história para os dias atuais (no filme, Bentinho chega a pedir um exame de DNA para saber se o filho, Ezequiel, é mesmo seu); e Capitu, série televisiva de 2008 dirigida por Luiz Fernando Carvalho.

Nos dois mais recentes trabalhos, quem dá vida à icônica Capitu é a atriz Maria Fernanda Cândido: “Tanto o convite para o longa-metragem, para fazer essa versão contemporânea dessa personagem, como o convite para fazer a obra fiel ao livro, com todos os diálogos que estão nele, uma série caracterizada na própria época em que se passa o romance, foram convites que eu aceitei com a maior alegria e sentindo muita honra em fazer essa personagem tão cheia de encantos e mistérios, com sua força e seu magnetismo”, conta ela.

Maria Fernanda Cândido como Capitu

 

A atriz também analisa as diferentes visões que teve da obra nas diversas fases em que se deparou com ela: “Minha leitura foi bem diferente em cada uma. Quando fiz a série, quando já tinha 33 anos, percebi que a dúvida era a grande personagem do romance. A questão sem resposta movimenta e perpassa todo o livro e, de fato, isso ficou muito claro para mim”, diz.

Maria Fernanda já havia feito parcerias com o diretor Luiz Fernando Carvalho baseadas em outros autores da literatura brasileira, como Milton Hatoum e Clarice Lispector, e aposta nessa linguagem também como democratização de acesso a maiores públicos: “Acredito que, ao levar esse tipo de obra para a TV, a gente acaba levando-a a pessoas que talvez não tivessem tanto acesso a esse conteúdo”, defende. “Muita gente ainda vem conversar e comentar comigo sobre a série, que foi muito vista e querida pelo público.”

Capitu popstar

Escrita pela roteirista e dramaturga Carla Faour (Segunda chamada, Tapas e beijos, Amor Veríssimo e Chacrinha, o velho guerreiro), a peça Eu, Capitu, em circulação por todo o país, não é uma adaptação de Dom Casmurro para o teatro, mas uma peça original feita a partir de uma provocação sobre a personagem sob um olhar feminino contemporâneo. “Capitu, para mim, é praticamente uma popstar do teatro, do cinema e da TV. É uma personagem que extrapolou a própria história e o próprio romance com muitas adaptações. Ela tem vida própria, já virou tema de música, nome de banda, estampa de pôsteres, canecas, é uma celebridade”, explica Carla.

O espetáculo dá voz à personagem famosa, contrapondo-se à obra original de 1889, em que a narrativa é feita apenas pelo olhar de “um homem que tinha ciúmes até do mar”. “Bentinho é confiável? A gente conhece Capitu por um homem branco, no topo da sociedade de sua época, sujeito obsessivo que cometeu abusos morais, psicológicos e físicos e que se coloca como vítima de uma armadilha. Quem seriam esses personagens em 2023?”, indaga a roteirista. “Eu queria tratar desse universo de forma lúdica e o apresento por meio de uma menina de 11 anos após a separação dos pais. Ela lê o romance a pedido da escola e começa a questionar as mudanças de comportamento da mãe, mulher que a protege do mundo (e do pai abusivo).”

Na montagem, a relação entre mãe e filha revela um desejo de dar liberdade a essa mulher-Capitu, que foi julgada pela dúvida de uma traição e completamente silenciada: “Qual é o lugar da mulher em um mundo narrado pelos homens?”, questiona Carla.

Gênero e raça na obra machadiana

O conto “Pai contra mãe” faz parte da antologia Relíquias de casa velha, composta de textos publicados em 1906, dois anos antes da morte de Machado. Retrata a sociedade brasileira capitalista e escravocrata e as mazelas da violência racial e de gênero em que vidas valem menos e que, muitas vezes, não têm nem o direito de existir.

Na história, conhecemos a trajetória de um homem branco pobre, Cândido Neves, o Candinho, sem nenhuma perspectiva de inclusão no mundo do trabalho, sua mulher, Clara, grávida, e uma mulher negra escravizada em fuga, Arminda. O casal é ameaçado de despejo e sugestionado pela tia de Clara a entregar a criança para a chamada “roda dos enjeitados” assim que nascesse: “Lá não se mata ninguém, não se morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua”, dizia.

Para tentar “salvar” o filho, Cândido se torna um caçador de negros escravizados fugitivos. Pessoas que tinham “um ferro ao pescoço, outro ao pé, e a máscara de folha-de-flandres, que lhes tapava a boca e tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado”, diz o texto. Atraído pela recompensa de 100 mil réis, ele encontra Arminda e trava um embate violento com ela a fim de devolvê-la a seu “senhor”. Com a convivência dos passantes, que “compreendiam o que era e naturalmente não acudiam” a mulher, ela acaba por abortar o filho, ao que Candinho naturaliza como se se justificasse: “Nem todos vingam”.

Para o professor Hélio de Seixas Guimarães, essa reação ainda é corrente nos dias de hoje: “Vemos a naturalização da barbárie, uma certa indiferença coletiva em relação à miséria, ao sofrimento e aos níveis extremos de exploração que nos cercam, como se fossem aceitáveis. Em muitos momentos, somos aqueles passantes do conto diante da violência brutal que testemunhamos diariamente nas ruas, nos noticiários da TV e em tantos outros lugares e situações”, aponta.

Para José Fernando Peixoto de Azevedo, professor da Escola Dramática de São Paulo, diretor e dramaturgo da peça Ensaio sobre o terror, adaptação do conto “Pai contra mãe”, a questão racial aprofunda ainda mais essa desigualdade: “A distinção daquele homem branco pobre numa sociedade escravocrata se dá apenas pela cor da pele, que o assimila às práticas do favor. O ressentimento do branco pobre se desdobra em violência e denegação, numa recusa assombrada de tudo aquilo que o aproxima da vida que ele nega, e que, no entanto, o explica. Algo que tenho chamado, diante da atualidade da coisa, de ‘complexo de Candinho’”, pontua. “Venho perseguindo esse conto há anos, porque vejo nele elementos-chave para uma perspectiva negra no Brasil. A violência racial é branca; o narrador branco de Machado de Assis, que em nada se confunde com o escritor negro Machado de Assis, é, por assim dizer, a formalização de um gesto de classe.”

Em Ensaio sobre o terror, o autor expõe o que chama de “teatralidade do terror”. Ele explica: “Numa sociedade em que certos corpos são imediatamente espoliáveis, redutíveis à pura extração, expostos à violência, oscilando entre a coisa e o cadáver, o terror é a mediação. Teatralidade é sempre um modo de ver, um modo de compor o olhar. Nessa operação, o linchamento é apenas um dos seus protocolos”.

Renata Tavares, primeira diretora negra a vencer o Prêmio Shell de Teatro de Melhor Direção, pelo espetáculo Nem todo filho vinga, também inspirado no conto machadiano, concorda. A montagem do grupo Entre Lugares Maré, companhia formada no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, traz uma perspectiva coletiva que reflete sobre a frase “Nem todo filho vinga”: qual é o impacto disso na vida dos jovens favelados?”

No processo de leitura do conto e de feitura da peça, o próprio grupo, formado por jovens universitários negros, veio com as questões: “Fomos observar: na favela, quem tem oportunidade e quem não tem, quem tem mais força ‘para aguentar a luta’ e não se desvirtuar? Ser persistente também é muito difícil, então há de se fazer muita força para poder vencer”, afirma a dramaturga. “Tem também a questão das mulheres e sua autonomia de poder escolher o momento em que querem ter filhos ou não, ter uma relação firmada em casal ou não. Tem a questão de gênero, de mal verem pessoas LGBTQIAPN+. Também tem a da religião, que organiza, ordena e tem doutrinas. Quem é que escolhe isso? Como se escolhe, como se dá? As leis da cidade, do asfalto, são diferentes das leis das pessoas que moram na favela. Tem o poder do Estado e o poder paralelo desse Estado. São muitas barreiras para que as pessoas da favela vinguem. Vingar é muito importante na favela e também muito difícil. A gente queria que todos os filhos na favela vingassem. Acho que o desejo da peça é essa esperança, uma bandeira e uma luta que a gente coloca em cena.”

Renata conta que conheceu Machado de Assis na escola, por obrigação, mas não o achava chato, como muitos de sua turma: “Eu moro no subúrbio, e esses personagens que a elite glorificava – sem tirar o mérito do autor – não eram muito difundidos aqui. Então, se a gente tivesse algum contato com essas obras, era por causa do interesse de leitura mesmo. No caso desse espetáculo, os atores eram universitários negros e a demanda partiu de todos. Fomos costurando tudo isso, vencemos primeiro o festival e fomos chegando mais longe. Hoje a gente tem pessoas de todo lugar do Rio de Janeiro que vão para lá ver, aprender e praticar teatro. É realmente fascinante como a percepção e o entendimento sobre Machado de Assis têm evoluído ao longo dos anos, especialmente em relação à sua identidade racial. Essa mudança de perspectiva tem impactado a forma como enxergamos suas obras e a importância de recontar histórias a partir desse enegrecimento. É um processo revolucionário e subversivo que resgata a verdadeira essência do autor”, conclui.

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”Tanto o convite para o longa-metragem, para fazer essa versão contemporânea de Capitu, como o convite para fazer a obra fiel ao livro, com todos os diálogos que estão nele, uma série caracterizada na própria época em que se passa o romance, foram convites que eu aceitei com a maior alegria e sentindo muita honra em fazer essa personagem tão cheia de encantos e mistérios, com sua força e magnetismo” – Maria Fernanda Cândido

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"Os deuses de casaca”, por Juçara Marçal e Cleide Queiroz

A cantora e professora Juçara Marçal e a atriz Cleide Queiroz leem a peça “Os deuses de casaca”, de Machado de Assis. A direção é de Edi Cardoso.

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“Mariana”, por Aysha Nascimento

A atriz Aysha Nascimento lê o conto “Mariana”, de Machado de Assis. A direção é de Edi Cardoso.

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“A Carolina”, por Elisa Lucinda

A atriz e escritora Elisa Lucinda lê o poema “A Carolina”, de Machado de Assis. A direção é de Edi Cardoso.

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“Lágrimas de cera”, por Elisa Lucinda

A atriz e escritora Elisa Lucinda lê o poema “Lágrimas de cera”, de Machado de Assis. A direção é de Edi Cardoso.

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“Memórias póstumas de Brás Cubas”, por Carlota Joaquina

A atriz Carlota Joaquina lê o capítulo CXXVII, intitulado “Formalidade”, do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. A direção é de Edi Cardoso.

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