Encenações no cinema e no teatro de obras como “Dom Casmurro”, “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Pai contra mãe” provam a atemporalidade do maior escritor brasileiro de todos os tempos
por Cristiane Batista
Considerado o maior nome da literatura brasileira, Machado de Assis (1839-1908) nasceu Joaquim Maria Machado de Assis, em uma família de poucos recursos no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Autodidata, foi contista, cronista, romancista, poeta, teatrólogo, crítico teatral e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual também foi presidente. Com obras traduzidas para diversas línguas, teve, ainda, muitas adaptações para o cinema, a TV e o teatro, além de ópera, música, dança e histórias em quadrinhos.
Crítico da boemia e da elite carioca no final do século XIX, seu trabalho destaca, com ironia e humor, aspectos socioculturais da vida brasileira comuns não só à época, como também a hoje em dia, como atesta Hélio de Seixas Guimarães, professor livre-docente na Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os leitores de Machado de Assis e Machado de Assis, o escritor que nos lê: “Machado trata das questões humanas fundamentais ao mesmo tempo que é capaz de dar forma artística a dinâmicas profundas do mundo em que viveu. As grandes paixões, assim como as formas de violência e exploração que Machado captou em seus textos, continuam a fazer sentido no mundo em que vivemos. O mundo da imagem, da publicidade, da celebridade e do triunfo do capital financeiro, que ele viu emergir, é ainda o mundo em que vivemos”, diz ele. “O Brasil racista e escravocrata do século XIX, por exemplo, ainda perdura. Daí a sensação muito frequente de que alguns textos seus, escritos há 100, 150 anos, pareçam ter sido publicados ontem.”
Hélio tinha 10 anos quando foi impactado pela obra de Machado de Assis pela primeira vez ao ler Helena, um dos títulos disponíveis na biblioteca do pai. “Isso foi em 1975, mesmo ano em que a TV Globo exibiu uma adaptação do romance feita pelo Gilberto Braga, inaugurando uma nova faixa de telenovelas dedicada a adaptações de textos literários. Fiquei fascinado com o romance, com sua adaptação para a TV e com as relações entre as duas narrativas. Penso que o aprendizado do autor com o teatro foi decisivo para a sua produção em outros gêneros – por exemplo, no uso magistral dos diálogos e na construção precisa de cenas e situações dramáticas”, aponta.
“Ele foi muito sensível ao mundo dominado pelas imagens. Foi muito atento também ao desenho, à pintura e à nova técnica da fotografia, que estava surgindo. Todos esses dispositivos visuais aparecem em momentos importantes de seus textos. Da fotografia para as imagens fotográficas em movimento, que se popularizariam depois do tempo de Machado, com o cinema e a TV, foi um pulo, e é possível que ele tenha conseguido imaginar esses desdobramentos”, continua o professor. “Machado de Assis foi um tremendo observador, e em muitos dos seus textos os narradores e as personagens parecem apalpar com o olhar tanto as coisas visíveis como as invisíveis – eu diria que especialmente as invisíveis, ou aquelas que a gente gosta de ocultar.”
Recortes e memórias cinematográficas
O ator Petrônio Gontijo interpretou o personagem Brás Cubas no filme Memórias póstumas, inspirado em Memórias póstumas de Brás Cubas, livro publicado em 1881 e que inaugurou o Realismo no Brasil. Na película, dirigida por André Klotzel e vencedora em cinco categorias, entre elas a de Melhor Filme, no Festival de Gramado de 2001, Gontijo divide o papel de Brás Cubas com Reginaldo Faria em fases diferentes da vida. Na narrativa, o “defunto-autor” conta e analisa a sua vida depois de morto.
Petrônio Gontijo como Brás Cubas no filme Memórias póstumas, em cena com Sônia Braga | imagem: divulgação
“Meu maior desafio era tornar esse personagem crível. Muitas cenas vinham narradas pelo Reginaldo e eu tinha que estar em sintonia, por vezes sublinhando o que ele falava e em outras contrapondo-o. Há um capítulo só de reticências, e elas significam toda a lentidão e o tédio de um homem dotado de muitas posses, mas que não sabe como contribuir de alguma forma na sociedade. Só um gênio como Machado para escrever assim, e o André conseguiu transportar essas reticências para o cinema”, diz. “Em outro capítulo, ele agradece as pernas por levá-lo aos lugares. O fascínio do personagem é exatamente por essa inação, por ele não saber por onde caminhar junto com as ideias dele. Tudo isto é absolutamente cinematográfico: as situações, os ambientes e, principalmente, os conflitos do personagem. Isso reflete muito o quadro social da época do Brasil e das desigualdades que sempre existiram e que continuam existindo – caso do machismo, por exemplo.”
Petrônio Gontijo como Brás Cubas no filme Memórias póstumas | imagem: divulgação
Outra obra que aposta na observação de costumes e na tensão psicológica dos personagens é Dom Casmurro, clássico de 1899 calcado no triângulo (amoroso?) formado pelo narrador da história, Bentinho, Capitu, a dona dos famosos “olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada”, e Escobar, melhor amigo de Bentinho, com quem ele acredita que a esposa mantinha um romance. Usando digressões e metalinguagens, o narrador em primeira pessoa se aproxima do leitor e faz de tudo para convencê-lo de suas suspeitas, apelando para o moralismo e a tradicional fofoca popular do “afinal: traiu ou não traiu?”.
O tema ganhou algumas adaptações para as telonas: Capitu, de Paulo Cezar Saraceni, feito em 1968 com roteiro assinado por Lygia Fagundes Telles e Paulo Emílio Salles Gomes; Dom, longa-metragem de 2003 dirigido por Moacyr Góes, que atualiza a história para os dias atuais (no filme, Bentinho chega a pedir um exame de DNA para saber se o filho, Ezequiel, é mesmo seu); e Capitu, série televisiva de 2008 dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
Nos dois mais recentes trabalhos, quem dá vida à icônica Capitu é a atriz Maria Fernanda Cândido: “Tanto o convite para o longa-metragem, para fazer essa versão contemporânea dessa personagem, como o convite para fazer a obra fiel ao livro, com todos os diálogos que estão nele, uma série caracterizada na própria época em que se passa o romance, foram convites que eu aceitei com a maior alegria e sentindo muita honra em fazer essa personagem tão cheia de encantos e mistérios, com sua força e seu magnetismo”, conta ela.
Maria Fernanda Cândido como Capitu
A atriz também analisa as diferentes visões que teve da obra nas diversas fases em que se deparou com ela: “Minha leitura foi bem diferente em cada uma. Quando fiz a série, quando já tinha 33 anos, percebi que a dúvida era a grande personagem do romance. A questão sem resposta movimenta e perpassa todo o livro e, de fato, isso ficou muito claro para mim”, diz.
Maria Fernanda já havia feito parcerias com o diretor Luiz Fernando Carvalho baseadas em outros autores da literatura brasileira, como Milton Hatoum e Clarice Lispector, e aposta nessa linguagem também como democratização de acesso a maiores públicos: “Acredito que, ao levar esse tipo de obra para a TV, a gente acaba levando-a a pessoas que talvez não tivessem tanto acesso a esse conteúdo”, defende. “Muita gente ainda vem conversar e comentar comigo sobre a série, que foi muito vista e querida pelo público.”
Capitu popstar
Escrita pela roteirista e dramaturga Carla Faour (Segunda chamada, Tapas e beijos, Amor Veríssimo e Chacrinha, o velho guerreiro), a peça Eu, Capitu, em circulação por todo o país, não é uma adaptação de Dom Casmurro para o teatro, mas uma peça original feita a partir de uma provocação sobre a personagem sob um olhar feminino contemporâneo. “Capitu, para mim, é praticamente uma popstar do teatro, do cinema e da TV. É uma personagem que extrapolou a própria história e o próprio romance com muitas adaptações. Ela tem vida própria, já virou tema de música, nome de banda, estampa de pôsteres, canecas, é uma celebridade”, explica Carla.
O espetáculo dá voz à personagem famosa, contrapondo-se à obra original de 1889, em que a narrativa é feita apenas pelo olhar de “um homem que tinha ciúmes até do mar”. “Bentinho é confiável? A gente conhece Capitu por um homem branco, no topo da sociedade de sua época, sujeito obsessivo que cometeu abusos morais, psicológicos e físicos e que se coloca como vítima de uma armadilha. Quem seriam esses personagens em 2023?”, indaga a roteirista. “Eu queria tratar desse universo de forma lúdica e o apresento por meio de uma menina de 11 anos após a separação dos pais. Ela lê o romance a pedido da escola e começa a questionar as mudanças de comportamento da mãe, mulher que a protege do mundo (e do pai abusivo).”
Na montagem, a relação entre mãe e filha revela um desejo de dar liberdade a essa mulher-Capitu, que foi julgada pela dúvida de uma traição e completamente silenciada: “Qual é o lugar da mulher em um mundo narrado pelos homens?”, questiona Carla.
Gênero e raça na obra machadiana
O conto “Pai contra mãe” faz parte da antologia Relíquias de casa velha, composta de textos publicados em 1906, dois anos antes da morte de Machado. Retrata a sociedade brasileira capitalista e escravocrata e as mazelas da violência racial e de gênero em que vidas valem menos e que, muitas vezes, não têm nem o direito de existir.
Na história, conhecemos a trajetória de um homem branco pobre, Cândido Neves, o Candinho, sem nenhuma perspectiva de inclusão no mundo do trabalho, sua mulher, Clara, grávida, e uma mulher negra escravizada em fuga, Arminda. O casal é ameaçado de despejo e sugestionado pela tia de Clara a entregar a criança para a chamada “roda dos enjeitados” assim que nascesse: “Lá não se mata ninguém, não se morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua”, dizia.
Para tentar “salvar” o filho, Cândido se torna um caçador de negros escravizados fugitivos. Pessoas que tinham “um ferro ao pescoço, outro ao pé, e a máscara de folha-de-flandres, que lhes tapava a boca e tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado”, diz o texto. Atraído pela recompensa de 100 mil réis, ele encontra Arminda e trava um embate violento com ela a fim de devolvê-la a seu “senhor”. Com a convivência dos passantes, que “compreendiam o que era e naturalmente não acudiam” a mulher, ela acaba por abortar o filho, ao que Candinho naturaliza como se se justificasse: “Nem todos vingam”.
Para o professor Hélio de Seixas Guimarães, essa reação ainda é corrente nos dias de hoje: “Vemos a naturalização da barbárie, uma certa indiferença coletiva em relação à miséria, ao sofrimento e aos níveis extremos de exploração que nos cercam, como se fossem aceitáveis. Em muitos momentos, somos aqueles passantes do conto diante da violência brutal que testemunhamos diariamente nas ruas, nos noticiários da TV e em tantos outros lugares e situações”, aponta.
Para José Fernando Peixoto de Azevedo, professor da Escola Dramática de São Paulo, diretor e dramaturgo da peça Ensaio sobre o terror, adaptação do conto “Pai contra mãe”, a questão racial aprofunda ainda mais essa desigualdade: “A distinção daquele homem branco pobre numa sociedade escravocrata se dá apenas pela cor da pele, que o assimila às práticas do favor. O ressentimento do branco pobre se desdobra em violência e denegação, numa recusa assombrada de tudo aquilo que o aproxima da vida que ele nega, e que, no entanto, o explica. Algo que tenho chamado, diante da atualidade da coisa, de ‘complexo de Candinho’”, pontua. “Venho perseguindo esse conto há anos, porque vejo nele elementos-chave para uma perspectiva negra no Brasil. A violência racial é branca; o narrador branco de Machado de Assis, que em nada se confunde com o escritor negro Machado de Assis, é, por assim dizer, a formalização de um gesto de classe.”
Em Ensaio sobre o terror, o autor expõe o que chama de “teatralidade do terror”. Ele explica: “Numa sociedade em que certos corpos são imediatamente espoliáveis, redutíveis à pura extração, expostos à violência, oscilando entre a coisa e o cadáver, o terror é a mediação. Teatralidade é sempre um modo de ver, um modo de compor o olhar. Nessa operação, o linchamento é apenas um dos seus protocolos”.
Renata Tavares, primeira diretora negra a vencer o Prêmio Shell de Teatro de Melhor Direção, pelo espetáculo Nem todo filho vinga, também inspirado no conto machadiano, concorda. A montagem do grupo Entre Lugares Maré, companhia formada no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, traz uma perspectiva coletiva que reflete sobre a frase “Nem todo filho vinga”: qual é o impacto disso na vida dos jovens favelados?”
No processo de leitura do conto e de feitura da peça, o próprio grupo, formado por jovens universitários negros, veio com as questões: “Fomos observar: na favela, quem tem oportunidade e quem não tem, quem tem mais força ‘para aguentar a luta’ e não se desvirtuar? Ser persistente também é muito difícil, então há de se fazer muita força para poder vencer”, afirma a dramaturga. “Tem também a questão das mulheres e sua autonomia de poder escolher o momento em que querem ter filhos ou não, ter uma relação firmada em casal ou não. Tem a questão de gênero, de mal verem pessoas LGBTQIAPN+. Também tem a da religião, que organiza, ordena e tem doutrinas. Quem é que escolhe isso? Como se escolhe, como se dá? As leis da cidade, do asfalto, são diferentes das leis das pessoas que moram na favela. Tem o poder do Estado e o poder paralelo desse Estado. São muitas barreiras para que as pessoas da favela vinguem. Vingar é muito importante na favela e também muito difícil. A gente queria que todos os filhos na favela vingassem. Acho que o desejo da peça é essa esperança, uma bandeira e uma luta que a gente coloca em cena.”
Renata conta que conheceu Machado de Assis na escola, por obrigação, mas não o achava chato, como muitos de sua turma: “Eu moro no subúrbio, e esses personagens que a elite glorificava – sem tirar o mérito do autor – não eram muito difundidos aqui. Então, se a gente tivesse algum contato com essas obras, era por causa do interesse de leitura mesmo. No caso desse espetáculo, os atores eram universitários negros e a demanda partiu de todos. Fomos costurando tudo isso, vencemos primeiro o festival e fomos chegando mais longe. Hoje a gente tem pessoas de todo lugar do Rio de Janeiro que vão para lá ver, aprender e praticar teatro. É realmente fascinante como a percepção e o entendimento sobre Machado de Assis têm evoluído ao longo dos anos, especialmente em relação à sua identidade racial. Essa mudança de perspectiva tem impactado a forma como enxergamos suas obras e a importância de recontar histórias a partir desse enegrecimento. É um processo revolucionário e subversivo que resgata a verdadeira essência do autor”, conclui.