“O rei da vela”
“O rei da vela” | Coleção Marília de Andrade
“Não me arrogo funções de bússola”
Oswald, no texto “A poesia pau-brasil”, de 18 de setembro de 1925, publicado em Os Dentes do Dragão
por Maria Clara Matos
Ruptura estética e explosão criativa. As duas expressões, aliadas à complexidade que merecem, revelam conexões entre momentos diferentes da cultura brasileira, mas que guardam complementaridades e similaridades que ressoam até os dias atuais. Visionário e atento ao seu tempo, Oswald de Andrade foi um importante expoente do Modernismo de 1922 e figura celebrada pelo Tropicalismo, movimento cultural e artístico surgido no final da década de 1960.
“Uma das complexidades do tropicalismo é que ele vai assimilar, cultural e artisticamente, uma série de referências culturais de modernização social e modernidade artística. Cria uma espécie de caldeirão de referências. E o tipo de música que eles fizeram pode ser associada à antropofagia oswaldiana”, afirma Celso Favaretto, professor, pesquisador e autor do livro Tropicália, alegoria, alegria (1979).
“Para nós, uma guitarra, uma luz elétrica, um microfone e um computador eram coisas muito simpáticas, eram novidades muito curiosas. Toda essa disponibilidade para com o mundo, toda essa ‘oswaldiandradidade’ para com o mundo, toda essa vontade de conhecer o mundo se chamou Tropicalismo”, constatou Tom Zé no programa Ensaio, da TV Cultura, em 1990.
Em 21 de outubro de 1967, Caetano Veloso se apresentou no festival da TV Record com a música “Alegria, alegria”, momento conhecido como marco inicial do Tropicalismo. A canção misturava frases do cantor Wilson Simonal e do filósofo Jean-Paul Sartre, além de arranjos influenciados pelos Beatles – revelando a antropofagia em ação.
O movimento fez as culturas mais antigas e arcaicas conviverem com a modernidade, e produziu uma tensão entre elas. Do ponto de vista sonoro, assimilou elementos da cultura popular, da música das décadas de 1930 e 1940, da bossa nova, da jovem guarda, do rock (com a guitarra elétrica, por exemplo) e do pop. “Caetano e Gil tinham uma visão chamada, na época, de universalista, porque queriam saber o que estava acontecendo no mundo e digerir tudo isso para a cultura brasileira”, destaca Luiz Tatit, compositor, cantor e professor. “Gostavam da bossa nova, mas faziam o contrário dela. O tropicalismo foi um movimento desconcertante, daí sua aproximação com a maneira de Oswald de Andrade produzir”, conclui.
Aliás, o jornalista e crítico musical Tárik de Souza, em depoimento para o especial Tropicália 50 anos, da TV Brasil, chamou atenção para a ligação da bossa nova com o Tropicalismo: “Vamos lembrar sempre que Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa são discípulos diretos de João Gilberto. […] Eles explodem com aquele modelo criado pelo João Gilberto e colocam a música brega, as guitarras do pop-rock, comportamento e atitude no palco”. A cantora, compositora e produtora musical Olivia Hime concorda com esse processo de continuidade: “Assim como a bossa nova, a tropicália estava sendo gestada há um tempo. As coisas vão se transformando até que alguém as nomeia”.
Para Celso Favaretto, o Tropicalismo deslocou a audição da época, tirou as pessoas do lugar e produziu um efeito de modernidade muito grande. “E esse efeito é fundamentalmente crítico em dois sentidos: no sentido de ser uma outra música, e exigir de quem ouve uma transformação, e crítico no sentido político cultural, porque era uma outra maneira de agenciar o político, ou seja, a crítica à ditadura e às assincronias da realidade brasileira.”
O Tropicalismo surgiu em um momento de ebulição cultural, em meio ao regime militar iniciado com o golpe de 1964, em que aparecia a necessidade de reflexão sobre a realidade brasileira e suas contradições. Nesse momento, também explodiram outras manifestações artísticas, inspiradas pelas vanguardas da época, simbolizadas pela obra Tropicália, de Hélio Oiticica, pelo filme Terra em transe, de Glauber Rocha, e por O rei da vela, primeira montagem da peça escrita por Oswald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Todas as obras de 1967.
No livro Verdade tropical (1967), Caetano Veloso afirma que tinha escrito “Tropicália” havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. “Assistir a essa peça é, para mim, a revelação de que havia, de fato, um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.” Caetano conta ainda que, na época, Zé Celso dedicou seu espetáculo a Glauber Rocha e sua capacidade de responder à realidade do período com o Cinema Novo.
Antes de Zé Celso, os concretistas – irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari – já haviam se encarregado de recuperar a figura de Oswald de Andrade, até então silenciada. “Quando disse a Augusto o efeito que o contato com Oswald tinha produzido em mim, ele logo animou-se a me passar os textos de Décio e Haroldo, e considerou meu entusiasmo uma confirmação a mais das afinidades entre eles, concretos, e nós, tropicalistas”, conta Caetano Veloso no mesmo livro.
Aos poucos, a influência de Oswald no Tropicalismo, antes intuitiva, tornou-se consciente e explícita. Em Balanço da bossa e outras bossas (2005), Augusto de Campos cita uma declaração de Caetano: “Acho a obra de Oswald enormemente significativa… Fico apaixonado por sentir dentro da obra de Oswald um movimento que tem a violência que eu gostaria de ter contra as coisas de estagnação, contra a seriedade… Todas aquelas ideias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo… O tropicalismo é um neoantropofagismo”.
As sincronicidades entre as manifestações artísticas da época reverberaram na adoção do nome Tropicália (título da obra de Hélio Oiticica) para o disco lançado, em 1968, por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, acompanhados pelos poetas Capinam e Torquato Neto e pelo maestro Rogério Duprat. Celso Favaretto comenta que Caetano não conhecia a obra, tendo sido apresentado a ela pelo fotógrafo e diretor de cinema Luiz Carlos Barreto. “A música ‘Tropicália’, que dá nome ao disco, narra aspectos divergentes e simultâneos de um Brasil heterogêneo, que convivia com arcaísmos e modernidade, [uma mescla que] já estava no ambiente de Hélio Oiticica”.
O legado antropofágico na música brasileira
Mais de cinco décadas se passaram e a Tropicália permanece ressoando nas produções musicais da atualidade. “Toda a maneira de compor dos anos 1970 para cá foi influenciada pelo tropicalismo”, aponta Luiz Tatit, que reconhece em sua própria carreira essa influência. O cantor e compositor comenta que, em sua produção artística, o Tropicalismo incidiu mais até do que a bossa nova: “Nos interessava mais a loucura de assimilar o rock e Jimi Hendrix. A banda Rumo já começou com guitarras, baixo e letras inesperadas. Daí que a referência mais direta tenha sido o tropicalismo”.
Ava Rocha constrói experimentações com uma liberdade estética que nos faz lembrar das propostas antropofágica e tropicalista. Sem dúvida, a cantora, compositora e cineasta é cria do Teatro Oficina, onde trabalhou com Zé Celso na montagem de Os sertões, além de afirmar que sua obra tem influência direta de Hélio Oiticica. No entanto, a artista é incisiva ao dizer que o Tropicalismo é apenas uma de suas muitas influências: “Não me sinto e, de fato, não sou guiada por uma única vertente, movimento, gênero, religião e por aí vai. Prefiro pensar no termo ‘afluentes’, e não ‘influências’. Nesse sentido, beber tudo isso e transbordar uma coisa minha e própria poderia ser, talvez, um devir tropicalista, talvez… Mas, dentro de uma amplitude que expande para além do que se institucionalizou tropicalismo, tenho influência, sobretudo, de seu prisma mais radical”.
Esse caldeirão também faz parte da trajetória de Juliana Perdigão, conhecida por musicar poemas, alguns de arquitetura concretista. No disco Folhuda (2019), ela dedica três faixas a poemas de Oswald de Andrade: “Anhangabaú”, “Música da manivela” e “Noturno, o violeiro”. Cantora, musicista e compositora, Juliana ressalta que é muito ligada a Oswald, aos concretistas e a Caetano Veloso. “Saquei rápido que tudo era mais ou menos interligado e que se influenciavam.” Antropofagicamente, ela não deixa de lado, ainda, referências a Noel Rosa, Chico Buarque, Beatles e Mário Reis, entre outros artistas que formam o caldo de que emerge sua produção.
Na esteira das influências, é difícil não pensar no guitarrista Guilherme Held e na sua relação de inspiração com Lanny Gordin, também guitarrista e músico fundamental na criação da identidade musical da Tropicália. Lanny foi responsável, entre outros projetos, por arranjos de discos de Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee. Guilherme não esconde sua admiração: “Ele mudou minha vida quando o vi tocar guitarra, porque ele já tinha esta ciência da busca pela mistura e da importância de o músico ser eclético”. E complementa: “O Tropicalismo também tinha essa mesma busca de fundir a música brasileira com a do mundo. Rogério Duprat e Lanny, nesse sentido, souberam absorver de modo genial, fundindo o rock psicodélico com ritmos regionais do Nordeste com orquestra”.
Mas, como Ava e Juliana, Held supera seus referenciais. Ele mistura as inspirações tropicalistas com improvisos livres em canções com Criolo, Romulo Fróes, Filipe Catto e Tulipa Ruiz, entre outros artistas. “Eu me encontro nesta mesma busca que nutre a alma do artista, de encontrar um novo lugar como expansão e evolução”, destaca.
Maria Clara Matos é jornalista, formada pela Universidade de São Paulo (USP). Tem pós-graduação em Sociedade, Educação e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). Atua em projetos de comunicação nos campos de cultura e educação.
O escritor modernista como referência criativa e estruturante da poesia concreta
por Maria Clara Matos
“Oswald: ‘somos concretistas’”, texto de Augusto de Campos escrito em 1960, referencia a expressão “somos concretistas”, presente no “Manifesto antropófago” (1928), de Oswald de Andrade. O título, além de celebrar o modernista, revela sua relação com os poetas concretos.
Liderado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari, o movimento da poesia concreta surgiu no início dos anos 1950, com a publicação da revista Noigandres (1952-1962), inaugurando uma nova maneira de fazer poesia. Ligado a outras expressões artísticas, como as artes visuais, o cinema e a música, e de espírito transgressor, o movimento subverteu não só a poesia como a produção artística nacional.
Inspirados pela produção revolucionária e inventiva – com os jogos de palavras nas páginas, o uso de neologismos, a paronomásia e o verso livre – e pela radicalidade poética de Oswald de Andrade, os concretistas voltaram-se à produção do modernista, que, durante as décadas de 1940 e 1950, sofria de um profundo isolamento e descrédito como escritor.
É importante lembrar que, antes da retomada pelos concretistas, Antonio Candido já havia iniciado, nos anos 1940, um processo de revalorização crítica da obra de Oswald, em um ensaio chamado “Estouro e libertação” (1945), publicado no livro Brigada ligeira. Nele, o sociólogo, ensaísta, crítico literário e professor exalta a qualidade de Serafim Ponte Grande (1933) e Memórias sentimentais de João Miramar (1924), que se destacariam pelo experimentalismo formal e pelo estilo telegráfico que, anos depois, influenciaram a produção dos concretos. Mas os esforços de Candido não haviam sido suficientes para retirar Oswald do esquecimento.
Muitos atribuem o desprezo em relação à obra do autor ao seu temperamento controverso, que provocava a sociedade conservadora brasileira, mas o poeta Frederico Barbosa destaca que um dos principais motivos de seu ostracismo foi sua persistência em relação aos princípios modernistas. O também ensaísta e professor destaca que alguns dos modernistas que fizeram a literatura na década de 1930 estavam optando por formas menos experimentais, cobrindo-se de uma poesia mais tradicional e voltando, de certa forma, ao Parnasianismo. Oswald, no entanto, mantinha sua postura modernista: “Em sua biografia, Oswald diz que sua principal característica é que não anda para trás”, emenda Frederico.
Eduardo Sterzi, escritor, crítico literário e professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), corrobora o argumento dizendo que, na época, poetas modernistas, principais poetas oriundos do modernismo ainda em ação, “depois de experiências radicais com o verso livre, exercitavam um retorno ao verso medido anterior ao modernismo, assim como às formas fixas descartadas no momento de maior entusiasmo – por exemplo, o soneto –, ao mesmo tempo que recuperavam um certo imaginário greco-romano”.
Os jovens poetas concretistas, que naquele momento buscavam tornar suas experiências singulares e inovadoras, optaram por se alinhar com o trabalho de vanguarda de Oswald, revalorizando sua literatura. “Pode-se mesmo compreender o paideuma dos concretistas – isto é, a seleção de autores que eles consideravam cruciais para a renovação da linguagem poética (Mallarmé, Joyce, Pound, Cummings) – como uma contraposição direta às reivindicações das obras de outros poetas, como Rilke e Eliot, por seus contemporâneos”, conclui Sterzi, autor do livro Saudades do mundo, em que se dedica a lançar um novo olhar sobre o modernismo e a antropofagia.
A inclusão de Oswald no paideuma dos poetas concretos já era referida nos primeiros manifestos do movimento, como “Nova poesia: concreta”, de Décio Pignatari, publicado em 1956 – mesmo ano da Exposição nacional da arte concreta.
Nacionalismo crítico
Segundo Sterzi, os concretistas foram decisivos para a recuperação da obra de Oswald de Andrade “num momento em que esta era menosprezada ou mesmo desprezada, com a antropofagia aparecendo como um dos elementos mais importantes dessa recuperação”.
A antropofagia é um conceito central do modernismo brasileiro e especialmente expresso no “Manifesto antropófago”, concebido em 1928 por Oswald de Andrade. O escritor propôs a ideia de que a cultura brasileira deveria “devorar” o que havia de melhor nas influências estrangeiras, reinterpretando-as à luz da realidade brasileira. A metáfora sugeria que o país, ao assimilar e transformar tais influências externas, poderia criar uma identidade cultural autêntica e original.
Segundo Haroldo de Campos em trecho da biografia Verdade tropical (2008), de Caetano Veloso, a antropofagia visa “assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais ineludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo’”. Nesse sentido, como Gonzalo Aguilar comenta em Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista (2005), os poetas concretos tiveram de “recuperar figuras modernistas em uma nova constelação e empreender a busca de escritores brasileiros que cumprissem com o postulado de um nacionalismo crítico”.
A postura dos concretistas era estudar, ler e encontrar grandes poemas na Grécia Antiga e nas literaturas barroca, inglesa e portuguesa. “Encontrar ideias em Mallarmé, Joyce, Pound e Cummings, mas não com subserviência. Pegavam o que havia de bom em cada um deles – em cada poema, em cada cultura, em cada país – para criar uma poesia nova. Acredito que essa postura é a realização do sonho de Oswald”, afirma Frederico Barbosa.
Dada a atualidade das obras de Oswald de Andrade e a contínua reflexão sobre elas, vale compartilhar um confronto de opiniões. Sterzi pondera que os concretistas não estiveram completamente à altura da novidade das proposições mais radicais de Oswald, “por terem interpretado a antropofagia como uma operação de absorção crítica do estrangeiro para a construção de uma identidade nacional, quando a sua proposta era, na verdade, muito mais transgressora, renegando a própria ideia de nacionalidade como ponto de chegada da operação antropofágica”.
O escritor, no entanto, não deixa de destacar que o trabalho de recuperação de Oswald por parte dos concretistas foi essencial, na medida em que influenciou aqueles que “levaram adiante o que havia de mais desconcertante na obra oswaldiana, um José Celso Martinez Corrêa no teatro, um Glauber Rocha no cinema, um Hélio Oiticica nas artes plásticas, um Caetano Veloso na música”.
Maria Clara Matos é jornalista, formada pela Universidade de São Paulo (USP). Tem pós-graduação em Sociedade, Educação e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). Atua em projetos de comunicação nos campos de cultura e educação.
Seção de vídeo
A atriz Ítala Nandi, o ator Renato Borghi e o diretor Zé Celso comentam a montagem feita pelo Teatro Oficina de um dos textos do Oswald de Andrade dramaturgo, “O rei da vela”. Colocada em cena em 1967, a peça foi um marco no teatro brasileiro, rompendo com padrões vigentes.
“O rei da vela” | Coleção Marília de Andrade
“O rei da vela” | Coleção Marília de Andrade