imagem: Joao Pires/Estadão Conteúdo
1964
Em 1º de abril de 1964, o então presidente João Goulart (1919-1976), que havia sido eleito em 1961, foi deposto pelos militares. O regime duraria até 15 de março de 1985, marcado pela supressão de direitos políticos e pela perseguição a opositores. Já no despontar da ditadura civil-militar, Paulo Freire se tornaria um exemplo desses tipos de ação.
Em abril mesmo, uma comissão da Universidade do Recife, onde o educador trabalhava, exigiu dele esclarecimentos sobre suas atividades; seguiam-se, assim, determinações do novo governo. Após as respostas de Paulo, em 16 de junho ele foi levado de sua casa para o quartel do 4º Exército, onde foi detido. Foi interrogado, solto em 3 de julho e preso novamente no dia seguinte. Seria mantido em cárcere depois disso por quase dois meses.
Liberado, foi forçado ao exílio, primeiro na Bolívia, depois no Chile. Foi neste último país que, em 1968, o educador escreveu Pedagogia do oprimido. De 1969 a 1970, foi professor convidado da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Em 1970, quando publicou o livro escrito no Chile, tornou-se professor da Universidade de Genebra, na Suíça. Depois, entre 1975 e 1979, fundou, com outros exilados, o Instituto de Ação Cultural (Idac), para serviços educativos a países terceiro-mundistas, além de liderar programas de educação e alfabetização em Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe, na África.
Apenas em 1980, Paulo retornou ao Brasil.
Lições do cárcere
“Ricardo Kotscho – Paulo, e você, como é que fez para passar 75 dias na prisão?
Paulo Freire – É profundamente absurdo. Um desafio à mente, aprender a usar a imaginação, para ver, confirmar uma vez mais, que não é através das ideias, da imaginação, que libertas, mas é através da superação das coisas concretas. Eu podia voar com a minha imaginação, mas o corpo ficava.
Depois me levaram para fora da cela e fui aprendendo com os companheiros a continuar o cuidado com o corpo, porque, ao cuidar do corpo, necessariamente está-se cuidando da mente, e fui aprendendo a dominar a ansiedade, por exemplo.”
(Essa escola chamada vida, entrevista de Ricardo Kotscho com Paulo Freire e Frei Betto, página 52)
Lições do exílio
Para mim, o exílio foi profundamente pedagógico. Quando, exilado, tomei distância do Brasil, comecei a compreender-me e a compreendê-lo melhor.
("Essa escola chamada vida", entrevista de Ricardo Kotscho com Paulo Freire e Frei Betto, página 56)
Lições do exílio
“Paulo Freire – Eu me asilei na embaixada da Bolívia. Depois fui para La Paz. Fiquei um mês, houve um golpe de Estado lá também e então eu fui para o Chile.
Aí começa a experiência do exílio. O exílio começa no asilo político, dentro da embaixada. Então, a primeira sensação na embaixada é a da liberdade. É engraçado! No fundo, o corpo está confinado, ainda. Porque está dentro do espaço apenas da embaixada. Aquilo é o espaço da tua liberdade.
Mas o fato de que tu sabes que amanhã tu pegas um avião e voas para um espaço de exílio te dá já uma sensação de muita liberdade. Aí, tu gostas da tua liberdade. Realmente… gostas da liberdade.
Eu senti um profundo querer bem a liberdade, na minha experiência de cadeia e de asilo e de exílio. Porque, quando tu sais para o exílio, tu amplias o universo da liberdade desde, porém, que tu aceites a restrição tremenda na tua liberdade de voltar para casa. O que é o exilado? É o cara que não tem direito de voltar para casa. E vê que coisa interessante: eu passei quase dezesseis anos de exílio sem pensar, sem jamais ter tido a experiência de voltar para casa às cinco da tarde.”
(Essa escola chamada vida, entrevista de Ricardo Kotscho com Paulo Freire e Frei Betto, página 53)
Sobre a escrita da "Pedagogia do Oprimido", no Chile
por Sérgio Haddad*
“Terminada a fase revisões, seguiu os conselhos que o cientista social e político Josué de Castro lhe dera em uma das caminhadas que costumavam fazer pelos parques de Santiago: deixar os originais ‘descansando’ na gaveta da sua escrivaninha por alguns meses. Era uma maneira de se distanciar um pouco do que havia escrito. Quando decidiu retomar o texto leu-o com entusiasmo, de um só fôlego. Reescreveu poucas coisas, mas sentiu falta de um quarto capítulo, que arrematasse melhor a obra. Dedicou-se a ele nos meses seguintes.”
Sérgio Haddad é formado em economia e pedagogia e é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e da Universidade de Caxias do Sul, e atualmente participa da coordenação da ONG Ação Educativa. Pesquisador sênior do CNPq, lançou recentemente O Educador: um perfil de Paulo Freire pela editora Todavia.
*O trecho destacado foi selecionado e extraído de O educador, um perfil de Paulo Freire.
Manuscritos da "Pedagogia do Oprimido"
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Manuscrito de "Pedagogia do Oprimido"
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Manuscrito de "Pedagogia do Oprimido"
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Manuscrito de "Pedagogia do Oprimido"
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Manuscrito de "Pedagogia do Oprimido"
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Manuscrito de "Pedagogia do Oprimido"
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Manuscrito de "Pedagogia do Oprimido"
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Sobre a decisão de ir aos Estados Unidos
por Sérgio Haddad*
“A ida para os Estados Unidos representou um grande desafio para Paulo. Ele resistiu à ideia no início – pensava que nada tinha a aprender e muito menos a ensinar naquele lugar identificado por ele como a matriz do imperialismo. Foi convencido por Elza, que entendia a posição do marido como sectária, já que nem toda a população do país poderia ser considerada imperialista. […] Quando Paulo chegou aos Estados Unidos, conseguia ler em inglês com segurança, mas entendia e falava pouco o idioma. Em certo momento, comentou com a esposa: ‘Elza, eu acho que assumi uma posição desonesta, desleal, porque eu aceitei um convite, e não falo essa língua daqui, e não posso dar aulas em português! Não dá, e eu acho que não vou aprender essa língua a ponto de ter uma desenvoltura mínima!’. Elza respondeu: ‘Olha, Paulo. Eu estou gostando disso aqui, não quero voltar, não tenho por que voltar, nem você tampouco. Pois que seja humilde e estude! Se você levar isso a sério, falará inglês, como você fez outras coisas! Assuma hoje a responsabilidade! Claro que eu não creio que você tenha vindo para cá irresponsavelmente, do ponto de vista subjetivo. Objetivamente você não está falando mesmo! Pois que trate de superar isso!’. Paulo mais uma vez seguiu os conselhos de Elza.”
Sérgio Haddad é formado em economia e pedagogia e é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e da Universidade de Caxias do Sul, e atualmente participa da coordenação da ONG Ação Educativa. Pesquisador sênior do CNPq, lançou recentemente O Educador: um perfil de Paulo Freire pela editora Todavia.
*O trecho destacado foi selecionado e extraído de O educador, um perfil de Paulo Freire.
Lições do exílio
“Paulo Freire – Tu tens, na verdade, que aprender a fazer a transa difícil da ruptura que o exílio implica. E viver exatamente, dramaticamente, a ambiguidade de ser e não ser que o exílio coloca.
Tu tens que assumir o contexto de empréstimo e, na medida em que o faças com lucidez, te capacitas para um dia, próximo ou distante, voltares a teu contexto de origem. Tu tens que assumi-lo sem raiva, lucidamente, de maneira emocionalmente equilibrada.
Em certo momento, o contexto de empréstimo pode parecer a ti como se fosse pura “marquise” sob a qual esperas que a chuva passe. É preciso, porém, te dares conta de que o exílio é mais do que a marquise sob que te abrigas. Se não ultrapassas a figura da marquise podes um dia dramaticamente perceber que definhaste por nada teres feito enquanto esperavas que a chuva passasse. Fixado, imobilizado sob a “marquise”, enquanto a chuva cai, o exilado é como o preso a que [frei] Betto fez referência: se afoga na imaginação do impossível. O exilado que transforma o exílio em “marquise” permanente se afunda na nostalgia do seu contexto de origem em lugar de experimentar a saudade dele.”
(Essa escola chamada vida, entrevista de Ricardo Kotscho com Paulo Freire e Frei Betto, página 54)
Seção de vídeo
Paulo Freire: o exílio e o encontro com Lydia Hortélio
O educador Paulo Freire relata sua experiência no exílio, as dificuldades e os aprendizados e como o encontro com sua recificidade o fez se tornar um cidadão do mundo. A escritora Lydia Hortélio relata sua passagem por Berna, na Suíça, e o encontro com Paulo Freire. Ela também relembra as cantigas cantadas por ela para o educador e como elas fizeram os dois identificarem brincadeiras em comum.
Lições do exílio
“Paulo Freire – (…) além da relação afetiva – quase amorosa –, você tem como exilado que procurar uma inserção política, fazendo algo em que você acredite, fazendo algo através de que você se sinta oferecendo uma contribuição, por mínima que seja, a algum outro povo.
No momento em que você começa a negar-se o direito de estar fazendo, a qualquer momento, juízos de valor, você começa a aprender a viver uma virtude que acho politicamente tão fundamental a este País: a virtude da tolerância. Tolerância que nos ensina, superando os preconceitos, a conviver com o diferente para, no fundo, brigar melhor com o antagônico. É isso a tolerância.”
(Essa escola chamada vida, entrevista de Ricardo Kotscho com Paulo Freire e Frei Betto, página 56)
Quando Paulo Freire aprende
por Moacir Gadotti
Muito bom mostrar quando, onde, como e por que Paulo Freire aprendia. Eu sou testemunha de como suas palavras não eram só discurso quando ele afirmava que “ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”. Paulo Freire aprendia o tempo todo, e seu aprendizado se construía no diálogo, buscando conhecer e valorizar o saber do outro.
Conheci pessoalmente Paulo Freire em Genebra, em 1974, onde ele recebia muitas pessoas de diferentes partes do mundo. O que impressionava a todos era a sua curiosidade e disponibilidade para escutar e aprender. Queria saber o que as pessoas faziam, quais eram seus projetos etc. Não chegava dando recados, com propostas prontas e acabadas. Primeiro perguntava. Assim, começava a dialogar. E aprendia muito nesse processo.
Também tive a oportunidade de conviver com ele quando assumi a chefia de gabinete na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1989. Começamos a gestão visitando escolas. Paulo Freire sentava, ouvia pacientemente, perguntava, era perguntado. Por vezes, eu ficava meio impaciente, porque havia gente nos esperando no gabinete com urgências. Ao sair, ele me dizia: “Como podemos ser impacientes depois de tantos anos de cultura do silêncio? Eles têm todo o direito de falar, de se indignar, e nós, o dever de ouvir”.
Eu respondia: “Paulo, veja quantas demandas eles fizeram. Está faltando giz, estão faltando carteiras e cadeiras para as crianças, há goteiras nas salas de aula. Precisamos providenciar tudo isso com urgência”. Sim, falava ele, “vamos equipar todas as escolas. Se os problemas da secretaria fossem só os de infraestrutura, seria mais fácil resolver. Mas existe um problema ainda maior, mais complexo: são 500 anos de autoritarismo e séculos de escravidão, consolidando a ‘cultura da não participação, da opressão, da injustiça’. Isso também é necessário e urgente mudar. Precisamos trabalhar as relações sociais e humanas para que sejam mais dialógicas, precisamos criar condições para que a população ‘diga a sua palavra’ e fazer, com eles, a mudança. Tudo deve estar em diálogo, porque tudo está em constante transformação, inclusive o conhecimento. Tudo deve estar em diálogo, porque somos seres inacabados e estamos sempre aprendendo”.
Esse era o Paulo, com o qual convivi por 23 anos.
Viva Paulo Freire!
Moacir Gadotti, presidente de honra do Instituto Paulo Freire e professor aposentando da Universidade de São Paulo (USP).