O feminino

A presença da mulher africana ocupa pouco espaço na historiografia oficial, mas está registrada no Brasil escravista com grande atuação em frentes como o comércio – tabuleiros, quitandas – e as atividades litúrgicas, além da notória exploração nas tarefas de casa pelos senhores, que se consideravam donos desses corpos, naturalizando o abuso sexual ou o uso das recém-paridas como amas de leite, cujo direito de alimentar a própria prole era negado.

O lugar da mulher negra na estrutura social em que hoje vivemos ainda é contaminado por essa história e supõe poucas possibilidades de ascensão; o último degrau em uma escala de homens e mulheres brancos, mestiços e homens negros estratificados nessa ordem. Mas ações afirmativas e o despertar da consciência revertem esse jogo. O lugar de cada mulher negra é onde ela quiser.

Mãe Hilda

Foi o apoio e a permissão de Hilda Dias dos Santos (Salvador, 1923-2009), Mãe Hilda Jitolu, ialorixá (sacerdotisa líder em iorubá) do terreiro Ilê Axé Jitolu, que possibilitaram a existência do Ilê Aiyê. Foi ela que cedeu espaço do seu terreiro para as atividades do bloco e que, na primeira saída, se postou à frente de todos alegando que, se a violência policial da ditadura militar reprimisse o cortejo – atitude que era recorrente com a comunidade negra –, ela estaria ali para defender seus filhos e os filhos dos vizinhos e conhecidos que confiaram os filhos a seu filho Antonio Carlos dos Santos Vovô e seria ela a primeira a ir para a cadeia.

Depois disso, foi Mãe Hilda também que insistiu para que o bloco atuasse para além do Carnaval, em atividades pedagógicas e sociais. Assim, surgiu a Escola Mãe Hilda, uma instituição de ensino formal que, em sua grade curricular, insere conteúdos sobre a cultura negra e africana durante o ano todo para as crianças do Curuzu; o Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, a Escola de Percussão, Canto e Dança Band’erê, a Escola Profissionalizante do Ilê Aiyê e o projeto Dandarerê (para a terceira idade). Todos seguem ativos.

Outro preceito deixado pela matriarca e seguido à risca até hoje é a interdição dos rituais de santo no cotidiano do bloco – nas músicas, danças e roupas. Para descer do orum, o céu, para o aiyê, a terra, os ritos são recriados. E em todos persistem os ecos do sagrado.

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Mãe Hilda, 1999 | foto: Mario Cravo

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Quem é Mãe Hilda Jitolu?

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Deusa do Ébano

Das majestades que o bloco desperta, tem uma que é divindade: a Deusa do Ébano. Eleita durante a Noite da Beleza Negra, festa que ocorre há 39 anos e idealizada por um dos frequentadores do bloco, Sérgio Roberto dos Santos, a partir dos concursos de rainhas do Carnaval. Nos anos anteriores, de 1976 a 1978, antes de a festa ter nome, o concurso elegeu três rainhas.

A primeira escolhida, em 1976, foi Mirinha (Maria de Lourdes Cruz – Salvador, 1958); a mais recente, de 2018, é Jéssica Nascimento (Salvador, 1998).

A festa subverte a proposta dos concursos de beleza tradicionais, como tudo o que se faz no Ilê Aiyê, tornando-se um evento de celebração da raça negra. Em sua dimensão política e plástica, o concurso é um exercício de autovalorização e de decomposição dos discursos racistas. Em cada candidata, reconhecem-se diversas gerações de mulheres negras e a valorização do corpo negro se dissemina, se transformando na valorização do corpo social.

O espetáculo ocorre antes do Carnaval. É aberto por um cortejo coreografado, com figurinos e adereços da diretora artística e estilista do bloco, Dete Lima. Desse cortejo, em 1985, nasceu o Grupo de Dança do Ilê Aiyê.

A programação da noite segue com a apresentação das candidatas – com roupas do Ilê e fantasias individuais. É escolhida a vencedora e ocorre a passagem do manto da deusa eleita no ano anterior. Não se usam os padrões de idade ou de medidas para definir a vencedora. O que faz valer a vitória é a força da deusa em envolver a plateia e os jurados com sua simpatia e performance.

A eleita é destaque nas saídas do bloco no Carnaval e participa de todas as suas atividades durante o ano. É consenso que o concurso tem como resultado a consciência de pertencimento étnico-racial e suas reverberações no campo político. São mulheres conscientes de sua dimensão social.

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A Noite da Beleza Negra

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Mãe Preta

Um dos arquétipos femininos dentro do Ilê Aiyê é a Mãe Preta: negra, mulher, que sustenta a prole, a casa, a comunidade. Mãe Hilda é exemplo dessa mulher. Marielle Franco. Ruth de Souza. Lélia Gonzalez. Leci Brandão. Ayabás. Rainhas. Guerreiras.

A expressão surge na colônia, quando as mulheres escravizadas eram obrigadas a amamentar a prole dos donos brancos.

No dia 28 de setembro de 1871 foi assinada a Lei do Ventre Livre, que garantia a liberdade de todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir dessa data. O dia ficou associado à Mãe Preta.

Desde 1979, o Ilê Aiyê promove eventos relacionados ao tema. Em 1980, quando Mãe Hilda completou 30 anos de santo (festividade religiosa), foi homenageada com a música “Mãe Preta”, que é sempre lembrada no aniversário da lei.

As comemorações são mantidas até hoje e integram a grade curricular da Escola Mãe Hilda.

Parte do tecido feito por Jota Cunha para o Carnaval de 1994, com o tema Uma nação chamada Bahia | Acervo Ilê Aiyê

Parte do tecido feito por Jota Cunha para o Carnaval de 1994, com o tema Uma nação chamada Bahia |
Acervo Ilê Aiyê