por Welington Andrade
Laura Cardoso nasceu no mesmo ano – 1927 – em que o diretor que mais tarde viria a aprová-la na Rádio São Paulo em seu primeiro teste, Oduvaldo Vianna, criava a Companhia de Prosódia Brasileira, por meio da qual ele pretendia promover uma alteração significativa no modo de os atores se expressarem, já que a língua portuguesa falada nos palcos de teatro então obedecia ao sotaque lusitano. Entretanto,
apesar dos esforços modernizadores de Vianna e de outros homens de teatro, como Álvaro Moreyra, Renato Vianna e Flávio de Carvalho, a arte teatral praticada nas décadas de 1920 e 1930 ainda girava em torno de formas fixas e ultrapassadas, caso da velha tipologia dramática reinante desde o século XIX, bem ao gosto do estrelismo dos primeiros atores, normalmente donos de suas próprias companhias.
Outra coincidência histórica que marca a trajetória da atriz reside no fato de ela ter começado sua carreira na Rádio Cosmos (a rigor, sua primeira experiência profissional, já que, com medo da reprovação familiar, Laura desistira de trabalhar com Oduvaldo Vianna) no mesmo ano – 1942 – em que Alfredo Mesquita fundou o Grupo de Teatro Experimental (GTE), cuja direção ele deixou, em maio de 1948, aos cuidados de Abílio Pereira de Almeida para criar a Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD), uma das iniciativas que melhor contribuíram para a renovação do trabalho de interpretação dos atores brasileiros. Observe-se o período de grande efervescência teatral no qual Laura Cardoso dá seus primeiros passos como atriz: em 1943, Os Comediantes encenam no Rio de Janeiro uma antológica montagem de Vestido de Noiva; no mesmo ano, Décio de Almeida Prado cria em São Paulo o Grupo Universitário de Teatro (GUT); em 1948, o Teatro do Estudante do Brasil (TEB) apresenta uma memorável encenação de Hamlet, com Sergio Cardoso no papel-título; no mesmo ano, o empresário Franco Zampari cria na capital paulista o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
A partir desse caldo de cultura é que se lançam as bases para o grande vento modernizador que irá soprar sobre a arte do ator na década de 1950, do qual Laura Cardoso, mais por intuição do que propriamente por formação teórica, será uma autêntica tributária, não somente em seu trabalho pioneiro na televisão (sua estreia no veículo se deu na TV Tupi, em 1952, no programa Tribunal do Coração, apresentado em parceria com Vida Alves), como também em sua bem-sucedida, embora bissexta, atuação no teatro, em que ela estreou em 1959 em Plantão 21, dirigida por Antunes Filho. Num depoimento dado a Julia Laks, transformado no livro Laura Cardoso, Contadora de
Histórias, a intérprete se lembra do autodidatismo dos anos iniciais: “No meu tempo, pelo menos que eu saiba, não existiam vários cursos de interpretação. Atuávamos porque víamos os colegas no teatro, no cinema e tentávamos repetir o que faziam. […] A minha formação foi baseada num estudo muitas vezes solitário, em erros e acertos. Nunca tive um mentor. Julgava as situações que se apresentavam e tomava as decisões”.
Cumpre notar que a atriz – como sói acontecer a muitos artistas brasileiros, divididos dialeticamente entre a tradição e a modernidade – sempre soube aliar muitíssimo bem a “naturalidade trabalhada” que marca seu estilo de atuação à máscara facial de grande impacto, quase sempre tangendo os limites do trágico, muito embora dessa mesma face também se possa esperar as emanações do patético ou mesmo do cômico. Laura se dedicou mais à televisão do que ao teatro, mas sua energia criativa e sua imaginação artística competem de igual para igual com o talento de Cacilda Becker, Beatriz Segall, Ruth de Souza, Nathalia Timberg, Maria Della Costa, Cleyde Yáconis e Fernanda
Montenegro, para ficarmos com os exemplos femininos de sua própria geração ou próximos a ela.
Embora a modernidade encarnada por Laura e seus pares, que abandonaram os maneirismos antiquados e aderiram à introspecção subjetiva de base stanislavskiana, tenha sido ultrapassada pelas experiências mais radicais dos anos 1960 – o Teatro de Arena e o Teatro Oficina –, é inegável que o estilo de interpretação da atriz, sólido, denso, robusto, resistiu a toda sorte de vanguardismos, fazendo parte, hoje, da memória cultural do país. Impossível não ter sido arrebatado pela Dolor de Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, com direção de Antunes Filho; ou pela Isaura da telenovela Mulheres de Areia; ou ainda pela Selma de Através da Janela, filme de Tata Amaral. E
o que dizer de sua participação em um dos episódios do seriado Os Normais, em que ela interpreta uma impagável “mãe de aluguel” do personagem de Luiz Fernando Guimarães. Aqui, mais do que nunca, a edição ágil, o texto “esperto” e a metalinguagem mais desabrida
se vergam, fascinados, a um tipo de talento ancestral, que faz do anacronismo a marca de seu rigor e de sua inventividade.
Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), na área de dramaturgia, e crítico de teatro e editor da revista Cult.