2 de fevereiro
2015: Maria Bethânia nos preparativos para a procissão de 2 de fevereiro, em Santo Amaro (BA) | imagem (autoria e acervo): Mendão Santos
“O raio de Iansã sou eu
Cegando o aço das armas de quem guerreia
E o vento de Iansã também sou eu
Santa Bárbara é santa que me clareia”
– “A dona do raio e do vento”, de Paulo César Pinheiro e Pedro Caminha
Familiares e amiga de infância falam sobre a fé e a religiosidade de Maria Bethânia, marcada pelo sincretismo e pela força inabalável.
2015: Maria Bethânia nos preparativos para a procissão de 2 de fevereiro, em Santo Amaro (BA) | imagem (autoria e acervo): Mendão Santos
2008: imagem de Nossa Senhora da Purificação, na Festa da Purificação | imagem (autoria e acervo): Alan Nicotera
“Maria das procissões
Das festas, das romarias
Dos cânticos, da alegria
Maria de cada noite, Maria de todo dia”
– “Ladainha de Santo Amaro”, de Mabel Velloso
2016: novena de Dona Canô, mãe de Bethânia, em Santo Amaro da Purificação (BA) | autoria e acervo: Mendão Santos
João Camarero
Violinista e compositor
Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?
Definir Bethânia em um verbo é impossível, mas, pensando em um sentido amplo, uma palavra que desenha bem o que eu sinto é o verbo sonhar. O sonho pode ser uma experiência, uma ideia, fora tudo que representa no sentido figurado da palavra – sonhar alto, almejar, desejar. Acho que tem muitos significados distintos. Dá para envolver religião, espiritualidade, cultura, ciência, culturas tradicionais – que têm uma tradição muito forte com os sonhos, como os Ianomâmi –, o candomblé também tem isso, além do próprio cristianismo. Não sou conhecedor do cristianismo, mas sei que a Bíblia fala sobre maneiras de se comunicar com Deus e receber recados. Essa palavra é muito abrangente e diz muito sobre Bethânia. Um sonho, um sonho bom.
Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?
Gosto de conversar com Bethânia sobre esses assuntos oníricos e espirituais. Gosto muito de ouvi-la falando de religiões de matriz africana, sobre candomblé, sobre a fé dela, sobre os santos. Acho muito bonita essa devoção, essa força que ela tem. É muito impactante e magnético. Isso tudo demonstra como faz sentido ela ser quem é artisticamente, sendo essa pessoa com conexões tão profundas. Também gosto de conversar com ela, em papos de camarim, sobre amenidades, como qual cerveja ela gosta de tomar, onde vai passar o final de ano. Essas conversas com ela são muito boas.
Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensos? Por quê?
Pergunta muito difícil. Tenho dificuldade em eleger uma coisa, fazer uma lista. As coisas são gigantes, são muitas. Mas acho que escolheria uma música chamada “Lágrima”, de Roque Ferreira, que ela canta às vezes no show e na qual fazemos voz e violão, eu e ela. É uma música muito intensa, muito profunda, uma letra linda, uma melodia linda, uma linha melódica muito brasileira, aquela coisa que ela deita e rola. Ela dá um banho nessa música, uma aula! Não só pela relação intensa que tem com as palavras e com o verbo, de mastigar as palavras, de dizer com muita intenção, mas porque ela tem uma inteligência musical muito especial também. Ela tem um domínio do silêncio que é uma coisa espantosa. Tocar com ela essas coisas de voz e violão, que são coisas mais soltas, em que vou seguindo a respiração dela, é uma aventura. Quase como se eu estivesse me equilibrando numa corda bamba, no melhor dos sentidos. Estou ali equilibrando a sustentação para ela cantar, e cada vez ela canta de um jeito. Claro que ela tem uma interpretação das coisas, mas tem hora em que ela muda uma entonação, uma palavra, um sentido de acento melódico, e eu preciso ir junto. Preciso estar muito atento e esse momento, é muito intenso. Então, se eu pudesse escolher uma música, seria essa que tocamos juntos.
Alice Caymmi
Cantora e compositora
Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?
O verbo emanar. Bethânia emana vibrações, energias e luz que são capazes de mudar a cena. Ora temperando com uma emoção, ora com outra, ela vai emanando ondas que mudam a situação cênica como uma maestrina, como uma iabá.
Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?
Sem dúvida sobre Iansã, o orixá que rege nossos destinos. Sua energia e sua transformação, o que agrada ou desagrada Iansã. Gostaria de tirar dúvidas sobre como me aproximar mais do orixá. Tirar dúvidas sobre meus sentimentos mais profundos e o que fazer com eles. Perguntar sobre a vida e suas escolhas.
Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensas?
Sem sombra de dúvidas, a música “Iansã”, que foi feita para Bethânia e deu título ao meu disco de maior sucesso, Rainha dos raios (um dos versos dessa canção).
A Festa do Bembé, uma homenagem ao fim da escravidão, acontece em Santo Amaro (BA) | imagem (autoria e acervo): Daniel Dórea
“Ai, minha mãe
Minha Mãe Menininha
Ai, minha mãe
Menininha do Gantois”
– “Oração de Mãe Menininha”, de Dorival Caymmi
Marlon Marcos Vieira
Poeta, jornalista e antropólogo
Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?
Pensando em um verbo, Bethânia é encantar.
Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?
Eu tenho vontade de conversar sobre os impactos da obra de Clarice Lispector no trabalho dela e de como ela se aproximou dessa escritora. Tenho vontade de saber mais sobre a relação que Bethânia tinha com Mãe Menininha, como ela se relaciona com alguns aspectos do candomblé. A minha grande curiosidade é se, em algum momento na vida, Bethânia teve a experiência da possessão, se recebeu um orixá, um caboclo ou qualquer outra entidade.
Gostaria de saber como é que ela vê as festas nos barracões, as pessoas iniciadas tendo que fazer roda, participar do xirê, cantar os ingorôssis, cantar as rezas, ter acesso à dinâmica de uma filha de santo como ela é, mas com essa experiência de barracão. Desejaria saber também como é que ela sente essa questão da possessão, já que diz que, toda vez que sobe ao palco, serve de veículo para essas forças sagradas, sem, contudo, perder a consciência. O tempo todo é ela com ela, ou seja, não tem um orixá tomando a consciência dela, tem o corpo dela servindo de veículo para que essas energias se manifestem.
Falaria ainda de bobagens, tomando cerveja. Este é um desejo meu profundo: sentindo o efeito da embriaguez, conversar com ela a respeito da paixão, do amor, de Roberto Carlos, das coisas mais bobas que a gente fala com um amigo. Eu ali, com ela, tomando cerveja, é um desejo da minha vida.
Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensos? Por quê?
A primeira é a interpretação que acho a mais bonita de Maria Bethânia, e olha que ela tem uma carreira de 60 anos, e escolher uma música para alguém que tem um trabalho tão bonito é difícil. Acho que “Motriz”, de Caetano Veloso, traduz a relação com a terra , Santo Amaro, a relação com a família e com a paisagem do Recôncavo. Essa música acorda a minha baianidade, como eu me construí como baiano. Então, quando ouço Bethânia cantá-la, sinto a intensidade dela como cantora e sinto a minha intensidade como ouvinte. A outra música que me comove profundamente e que me chamou para escolher Maria Bethânia como a cantora da minha vida é “As canções que você fez pra mim”, de Roberto Carlos, que deu nome ao álbum que ela gravou e que foi um grande sucesso em 1993. Essa canção é a que me convida para as coisas da paixão, do amor, e tem um dos arranjos mais bonitos do cancioneiro brasileiro. Essa faixa é de uma apoteose, de uma grandeza. Essas duas canções traduzem a minha intensidade ouvindo a intensidade de Maria Bethânia.