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Maria maior Bethânia

“Maria Bethânia
Please, send me a letter
I wish to know things are getting better
Better, better, Beta, Beta, Bethânia”
– “Maria Bethânia”, de Caetano Veloso

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Maria Bethânia no encerramento da turnê Fevereiros, em março de 2024, na cidade de São Paulo | imagem: Agência Ophelia

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A mulher que cresce no palco

Nau Lima, amiga de infância, o sobrinho J. Velloso e os irmãos Rodrigo, Roberto e Mabel Velloso ficam emocionados ao falar da artista Maria Bethânia, mulher que cresce no palco, torna-se grande – dimensão alcançada desde o início da carreira.

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Maria maior Bethânia, uma invenção artística para o Brasil das possibilidades

“Eu sou a única pessoa no mundo que calhou ser eu”
Clarice Lispector

“Comecei a existir com 500 milhões e 500 mil anos. Logo de uma vez, já velha”
Stella do Patrocínio

por Marlon Marcos

Essa é a história de uma mulher artista nascida para a liberdade. Entre águas e securas, sol e chuvas, árvores, gente mestiça, muitos pobres e alguns ricos, terreiros e igrejas, músicas, o desfiar inventivo da cultura, família, quintais, silêncio, nascia a 18 de junho de 1946, na impactante Santo Amaro da Purificação, Recôncavo da Bahia, Maria Bethânia Vianna Telles Velloso. Desde sempre: idiossincrática, um corpo feminino se preparando para a expressão a favor das artes populares alicerçadas em seu povo. Na menina, a constância de viver todos os perigos oferecidos pelo palco. O desejo do trapézio, a ribalta das artes cênicas, o tablado dos cantores. A voz rascante alcançou a musicalidade, expressada com a força dramática das grandes atrizes, e desde os 15 anos a fez atingir seus ouvintes marcados pelo talento que a definiria ao longo da sua trajetória longeva como intérprete e sentidora voraz das entrelinhas que fundamentam a cultura popular brasileira. Desde o início da sua vida, Maria Bethânia escreveu sua história e a de seu país com a voz. Grave e abrasiva. Rompendo as barreiras do tempo e espaço, impondo-se ao mundo a partir da estranheza da sua singularidade.

De Santo Amaro para Salvador, indo à capital para continuar seus estudos, Maria Bethânia, mesmo entristecida por deixar sua terra natal, se viu seduzida ora pelas águas do Dique do Tororó, ora pelas do mar verde-azulado da Baía de Todos os Santos. Contudo, foi a efervescência cultural vivida pela Salvador do início dos anos 1960, gerada pelo brilhante reitorado de Edgar Santos (que criou a primeira Escola de Teatro do Brasil, as faculdades de música e dança, atiçando o interesse de muitos artistas nacionais e internacionais pela chamada Cidade da Bahia), que fez com que Bethânia se ajustasse melhor à nova cidade, a qual ela nunca se entregou, sentisse menos saudade de Santo Amaro e suas travessuras, e começasse a delinear um horizonte artístico que ficaria marcado na história cultural do Brasil para a eternidade.

Maria Bethânia coexistia nessa cidade, nos idos dos anos 60, com nomes como Glauber Rocha, Martim Gonçalves, Emanoel Araújo, Nilda Spencer, Antonio Pitanga, Othon Bastos, Agostinho da Silva, Álvaro Guimarães e aquela que seria a sua mais forte inspiração artística: Helena Ignez. Estreou no palco usando só a voz, numa peça de Nelson Rodrigues, dirigida por Álvaro Guimarães, ecoando “Na cadência do samba”, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta. O corpo fora de cena e a voz ocupando todos os espaços do teatro como um anúncio do Sagrado apresentando às artes a jovem cantora santoamarense.

Agora, faltava conhecer Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Djalma Côrrea, Fernando Lona, Roberto Santana, para com Nós, por exemplo, em 1964, rasgar a cena baiana e inaugurar o importante Teatro Vila Velha. Esse espetáculo foi um divisor de águas para a projeção artística de todos os envolvidos, principalmente para Maria Bethânia que, com a força das suas performances, chegou até Nara Leão. Nessa altura, Nara a indicou como sua substituta para o aclamado show Opinião, na cidade do Rio de Janeiro.

Maria Bethânia escolheu 13 de fevereiro de 1965, sua estreia no Opinião, como o marco iniciático da sua jornada como artista. Efemérides são sagradas para a cantora, envolta desde sempre a rituais de fé e de outras atuações no palco, na vida. A voz seca ensolarada faiscando beleza e revolta ao cantar “Carcará” a consagrou instantaneamente como grande artista, negando o olhar preconceituoso de muitos em relação à sua figura singular de mulher nordestina negromestiça. Uma quase atriz, expansiva em cena, a entoar cada palavra da canção do maranhense João do Vale, como uma denúncia cortante, dilacerante, escancarando o Nordeste que o Sudeste insistia em não enxergar. De cara, trouxe para seu séquito de fãs Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes e Augusto Boal, este último, diretor do espetáculo e uma espécie de mestre cênico e político para uma aprendiz de personalidade forte e cônscia do que queria ser como artista e mulher ao meio de uma coletividade dominada pelos homens em seus desvarios de poder e fama.

A partir de 1965, Maria Bethânia já era um nome no cenário cultural do país dominado por uma agenda estabelecida entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Agora, uma baiana chegava para se marcar como sujeita da sua arte e espraiar, mundo afora, a Bahia que ela aprendeu entre o Recôncavo e Salvador. O primeiro disco singrou as águas do samba, destacando as canções “Carcará”, “É de manhã” e “Sol negro”, esta última cantada em dueto com Gal Costa, fruto do êxito das apresentações das duas no Nós, por exemplo, em 1964, um ano antes, ainda em Salvador.

O grande sucesso da sua voz rasgando os tímpanos de seus ouvintes com “Carcará”, despertou o interesse do mercado em transformá-la numa cantora de protesto, uma nordestina em sintonia com a capixaba Nara Leão. Mas não. Bethânia queria ser ela mesma, cantar o que lhe fosse de verdade e estivesse em sintonia com seu desejo. Estava mais para uma Dalva de Oliveira do que uma Nara Leão. A sua vontade percorria os caminhos onde existisse liberdade e guerrear com o mundo para imprimir sua estética foi desde o início a luta pessoal e artística desta menina tornando o mundo um lugar que fosse seu.

O LP Edu e Bethânia, lançado em 1967, serviu para ilustrar o que a cantora queria comunicar com a voz. Canções intimistas, doídas e de amor. “Pra dizer adeus” conquistou as rádios e o público e, mais uma vez, a jovem cantora estava em destaque em todo o Brasil. Tanto ela como Edu Lobo eram iniciantes e o resultado deste encontro ilustrou a potência criativa dos artistas envolvidos.

Ainda em 1967, ao conhecer o diretor, ator e futuro mentor existencial dela, Fauzi Arap, Maria Bethânia encontrou a grande chave da sua expressão nos palcos e nos discos. O uso da palavra poética sem música, excertos de textos literários, o dizer sem cantar, numa interface do show musical com o espetáculo teatral, a cantora se construiu, dirigida por Fauzi, e se inventou para ser da maneira inteira e única como é até hoje. Comigo me desavim foi um show desafio. A intérprete surgiu plena: “Não posso viver comigo, nem posso fugir de mim”, poema do português Sá de Miranda, que deu título ao show. E ainda, num instante inesquecível, a voz épica recitou a longa crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector, prenunciando os tempos futuros da violência policial neste Brasil chegado aos grupos de extermínio, as milícias e aos genocídios.

Fauzi Arap é um nome alicerce na vida de Maria Bethânia. Um amor admiração recíproco e exitoso nos sentidos da arte e da amizade. A cena da artista se transformou ali, naquele encontro, para dar a ela domínio total deste lugar perigoso e sagrado que é o palco. A voz foi conduzida a interpretação corporal do que estava sendo dito ou cantado. E os pés descalços, as mãos aos ventos, os cabelos soltos esvoaçantes, o corpo fino e deslizante, os olhos de águia em infinitas emoções, a respiração como freio, o desvelo das letras, a beleza dos sons: uma cantora integralmente brasileira à fruição do planeta.

A carreira se consolidava em boates da vez na Zona Sul carioca. Paralelo ao trabalho individual de Bethânia, acontecia o Tropicalismo pensado e vivido por sua turma da Bahia, onde a voz feminina principal era a de Gal Costa. Bethânia seguia solo, atenta a tudo, alinhada ao repertório e às tradições vocais de cantoras como Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Aracy de Almeida, Angela Maria, Nora Ney. Mas, distante dos movimentos, dos coletivos que a arrancassem da sua necessária liberdade.

Em 1969, lançou o LP Maria Bethânia, com novas perspectivas estéticas. Mesmo sendo um disco fincado em tradições baianas, dialogava com a alma lusitana encontrada em sua cidade natal, mas, mais que tudo, louvava os caboclos e entidades espirituais do candomblé que conhecera desde criança na casa de Dona Edith do Prato. Um disco entremeio de águas e terra fértil, águas e florestas de um “Brasil moreno”, como ela costumava dizer. Um Brasil tocado pela obra de Dorival Caymmi.

No contínuo da sua arte, Bethânia chegou aos anos 1970 consolidada como uma das mais importantes cantoras brasileiras, desfiando um repertório marcado pelo samba carioca, o samba chula e o de roda da Bahia, samba-canção, pontos de candomblé e o melhor da MPB produzida naqueles anos de intensa criatividade e reinvenções da musicalidade que o Brasil da era da ditadura produzia em contraponto às feiuras ocasionadas pelos  senhores dos quartéis. Em 1971, ao fazer o antológico show Rosa dos ventos, com direção de Fauzi Arap, cenários de Flávio Império, marcada pela tristeza do exílio do irmão Caetano Veloso e do amigo Gilberto Gil, a artista encanta milhares de espectadores num show político, aguerrido, sofisticado. Ela luta, ao seu modo, contra os desmandos estatais daquele período. Rosa dos Ventos é considerado pela crítica especializada como o show mais emblemático da carreira de Maria Bethânia.

A década de 1970 é marcada por várias Bethânias: a das récitas longas, a da voz rascante no rock, a cirandeira, o canto em inglês para homenagear Billie Holiday, a voz de louvação a orixás e caboclos, a interpretação fenômeno de “Olhos nos olhos”, a liderança vital nos Doces Bárbaros, a quebra de recordes tornando-se a primeira cantora brasileira a vender mais de um milhão de cópias com o belíssimo e popular LP Álibi, o estrondo da canção “Mel”, o encontro certeiro com Gonzaguinha em “Explode coração” e “Grito de alerta”. Senhora das paradas de sucesso, a voz das canções românticas em língua portuguesa, controle de qualidade do alto escalão do nosso cancioneiro.

Uma mulher-artista aparentando uma falsa acomodação, acusada, por vezes, de repetitiva e conservadora, trilhou à sua maneira os caminhos evolutivos da nossa canção, cantando sob medida compositores como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gonzaguinha.  Nos anos 1980, segue fazendo discos como Alteza, Talismã, Dezembros, Maria, Memórias da pele, senhora absoluta de sua carreira. Em 1983, Maria Bethânia lança o LP Ciclo, considerado por ela como o seu melhor trabalho em estúdio. O disco faz uma revolução acústica entre nós, aclamado pela crítica, aplaudido pelo público e destacando as canções “Motriz”, talvez a interpretação mais bonita da cantora em toda sua trajetória, “Filosofia pura”, com o eterno dueto entre ela e Gal Costa, e a belíssima “Fogueira”, de Angela Ro Ro, outra explosão radiofônica na voz crepitante de Maria Bethânia.

Os anos 1990 trazem Maria Bethânia cantando Roberto e Erasmo Carlos, no recordista LP As canções que você fez pra mim, um marco de sofisticação consumida pela massa amante dos três artistas. Mais rupturas: negou à gravadora a efetivação do projeto Roberto Carlos 2. Novas conquistas, com o CD Âmbar volta à sofisticação de um repertório diverso, cantando compositores novos como Adriana Calcanhotto e Orlando Morais, e contando com os vocalizes lindíssimos de Virgínia Rodrigues na canção “Invocação de Chico César”. É também da década de 1990 o Imitação da vida, fruto do show que apresentou  ao público o repertório de Âmbar. Recitando Fernando Pessoa do início ao fim, este trabalho é uma aula de literatura, casando intertextualidade com arranjos musicais de primeira, récitas precisas e emocionadas, na voz cada vez melhor, mais apurada pela gentileza do tempo com a arte desta mulher.

Um vir a ser constante. O devir cultural brasileiro. A seriedade que brinca consigo mesma e faz uma obra prima para o seu povo: Brasileirinho. Reinvenções cancioneiras da religiosidade da nossa gente. As festas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Uma louvação aos caboclos, aos orixás. Narrativas indígenas, numa discursiva visceral clamando o melhor em nós mesmos. Nos espelhando num projeto artístico que é todo beleza.

Os anos 2000 foram a era mais antropológica da grande cantora. Uma sentidora das nossas causas mais sensíveis, das nossas queixas, nossa força. A Maricotinha caymmiana. A redentora de Ana Carolina. A madrinha de Vanessa da Mata. A fala da poesia. A aula musical clariceana. De Sophia de Mello Breyner ao talento inabalável do baiano Roque Ferreira. A venda em uma Quitanda de finuras artísticas, biscoitos de ouro. Encantarias, piratarias, rios e mares. Reencontros entre África, Bahia e Lisboa.

Conquistas de uma autora da oralidade como nos ensinaram os griôs africanos. A voz que escreve e se torna doutora honoris causa da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Imortal da Academia de Letras do seu estado natal. A inteligência sem limites. A amante da aridez sertaneja, tematizando a seca com as águas da sua criatividade: Oásis de Bethânia. A musa concentrada dos quintais. A força provinciana da vida universalizando a sua criação.

Maria Bethânia ensolara a escuridão. Quando canta o seu Noturno, banhado em dor, a aridez se modifica e a vida se acende em possibilidades. Ela é o Brasil das possibilidades.  Sua própria invenção artística agradecendo ao parceiro Fauzi Arap, na orelha do livro de memórias do diretor: “A tua fé ilumina todo o livro, cada palavra. E quero lhe dizer que ele passou a ser um objeto sagrado para mim. Me ocupo em vigiá-lo, procuro colocá-lo sempre em lugares luminosos e onde de vez em quando passe um leve vento, uma aragem fresca, uma brisa suave que o acaricie. Guardo-o como se fosse um fio de contas lavadas, uma medalha que carrego no peito, com alegria de saber que não sou mais só no que penso e sinto. Você hoje é o homem que mais me interessa e que eu mais admiro. Deus lhe abençoe e lhe guarde sempre”.

Maria Bethânia se escreve assim.

Referências bibliográficas

ARAP, Fauzi. Mare Nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos. São Paulo: Editora SENAC, 1998.
MARCOS, Marlon. Oyá-Bethânia: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. 2ª edição. Camaçari (BA): Editora Pinaúna, 2022.

Marlon Marcos é poeta, antropólogo, jornalista e historiador. Filho das águas, ebomi Adê Okun do candomblé da Bahia. Professor e pesquisador (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab-Malês) das religiões de matrizes africanas e das obras de Maria Bethânia e Clarice Lispector.

Clique aqui para ler a dissertação de Marlon Marcos sobre Maria Bethânia.

Os textos dos colunistas são autorais e não refletem as opiniões institucionais.

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Maria Bethânia na Casa Amarela, no bairro da Gamboa, em Salvador (BA). Lá a cantora passa algumas temporadas na capital baiana | autoria e acervo: Ana Basbaum

"Gostaria de conversar sobre amor com Bethânia"

Letrux
Cantora, compositora e escritora

Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?

Servir.

Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?

Gostaria de conversar sobre amor com Bethânia. Queria saber como ela conseguiu amar, desamar, separar, amar de novo, morrer, renascer. Manter. Ficar. Sou curiosa sobre esse assunto em relação a ela.

Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensas? Por quê?

“Sem fantasia”, que ela canta com Chico Buarque [autor da música] no disco Chico e Bethânia ao vivo. Essa música, essa letra, esse dueto é de rasgar o coração, a cara, o cérebro. Profundo demais. E as interpretações dela e dele são algo assim, que me deixam perplexa.

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“Quero você” (ou A história do sonho de um menino que virou artista)

Dueto composto por Almério em parceria com Isabela Moraes fez o artista pernambucano realizar o sonho de cantar com Maria Bethânia e ainda integrar a trilha sonora de uma novela da Globo

por Fernanda Castello Branco

Maria Bethânia é rio onde deságuam adjetivos. Verbos. Versos. Frases inteiras. Falar dela pode parecer difícil, mas a verdade é que esse rio sempre flui, até para quem diz ser complexo definir a cantora em palavras. “Falar de Maria Bethânia sempre será um lugar divino para mim. Mexe muito comigo, muito mesmo”, avisa o cantor e compositor pernambucano Almério, cuja voz aparece em dueto com Bethânia em “Quero você”, música que ele compôs em 2018 com a amiga e conterrânea de Caruaru (PE) Isabela Moraes. A canção integra atualmente a trilha sonora da novela Renascer (2024), da TV Globo, e estará no próximo disco do cantor, Nesse exato momento, a ser lançado no final de março.

Composta no Vale do Anhangabaú, no Centro de São Paulo (SP), entre conversas e cervejas, quando ambos os compositores sofriam com términos de relacionamentos, “Quero você” já nasceu para Maria Bethânia. E assim foi, mesmo que tudo parecesse um sonho. “A gente queria fazer uma canção de amor que falasse sobre a imensidão de amar, e não da vulgaridade de amar. Quando Isabela e eu terminamos a música, nos olhamos e dissemos: “Bethânia!”. A gente saiu cantando para o taxista, para o garçom do bar, para o transeunte, para o gari. Já ouvíamos a voz dela e ali sonhamos: um dia ela vai gravar!”, lembra.

Uma pandemia parou o mundo em março de 2020 e o sonho ficou guardado. No ano passado, 2023, quando entrou em estúdio para gravar seu primeiro disco de inéditas em sete anos, Almério decidiu arriscar depois de um dia estressante. “Cheguei em casa tarde, umas 23 horas, e uma voz me disse: ‘Mande a música para Bethânia!’. Segui a voz da minha intuição, que acredito ter sido a voz de Exu, e mandei a canção para Ana Basbaum [diretora de produção de Maria Bethânia]. Imediatamente, brevemente, gentilmente, ela disse que a canção a emocionara e que ela iria gravar”, conta o artista.

Almério estava no Rio de Janeiro (RJ) e lembra de ter se ajoelhado, em “estado de graça”. “Fiquei entre a emoção, a razão e o sonho, sabe? É muita coisa junto. Era um dia chuvoso, e eu chorei muito”, diz. “Bethânia renovou minhas águas. Chorei por uma semana, sem exagero. Aquele choro era uma represa arrebentando. Uma sensação de recomeço, ela amparou minhas lutas.”

Apesar da emoção com o sim de Bethânia, Almério conviveu bastante também com o medo. “Guardei aquilo para mim. Estava com um tesouro nas mãos, fiquei com muito medo de que qualquer energia atrapalhasse aquilo tudo”, relata.

Juliano Holanda, diretor musical do disco, foi um dos poucos a saber. “Bethânia tinha topado, mas daí a ela gravar era outra coisa”, diz. “Quando a gente é artista, as emoções mudam, daqui a alguns meses tudo pode mudar.” Ana Basbaum, portadora do sim tão esperado, alertou apenas que a gravação não aconteceria naquele momento, julho de 2023. “Eu disse que esperava o tempo que fosse preciso, parava o meu disco, parava a vida, parava o que fosse preciso para ter Bethânia cantando comigo e me abençoando”, completa Almério.

Em setembro de 2023, a gravação aconteceu, e o cantor e compositor, que mora na zona rural de Olinda (PE), foi ao Rio de Janeiro acompanhar. “Levei um ramalhete de copos de leite e me encontrei com a deusa”, diz.

Do encontro, o músico lembra que Bethânia ficou passando a mão em sua cabeça e disse que ele a emocionava muito. “Ela é muito delicada, é muito doce, ao contrário do que as pessoas dizem. Quando ela se sente confortável, ela é muito amável, muito cortês, muito educada, muito fina. Ela tem uma energia diferente, lógico, por tudo que absorveu de arte, tudo que já cantou. A percepção dela sobre o mundo deve ser uma loucura”, afirma.

O encontro foi inesquecível, e a gravação em si, segundo o artista, “modificou a vida”. “Tenho total consciência disso. Essa experiência mudou minha vida, modificou o artista que eu sou, modificou meu canto, minha música, minha arte”, define.

Amor antigo

Pouco antes de haver recebido o sim para ter Maria Bethânia com ele em um dueto, Almério estreou na plateia da cantora. Ele foi ao primeiro show da sua artista favorita, a convite de Ana Basbaum, e viu tudo bem de perto. “Chorei o tempo inteiro”, conta.

Antes dessa experiência do show ao vivo, muito antes, Almério já era um fã apaixonado. “Ouvi pela primeira vez com atenção aos 13 anos”, relata o cantor, atualmente com 43. Ele estava em um carro e colocaram para tocar o disco As canções que você fez para mim, em que Maria Bethânia regravou músicas de Roberto Carlos. “Eu me emocionei muito. Com a pouca idade, não tinha como alcançar aquela profundidade. Mas as pausas das interpretações dela fazem o mundo pausar, e ela pausou meu mundo desde aquele dia”, lembra.

Em 1996, com o lançamento de Âmbar, o amor se consolidou. “É um dos discos que eu mais amo. Está entre os dez discos da minha vida”, define.

Pássaro

Apesar de já ser fã ainda quando adolescente, Almério lembra que, quando começou a cantar, “de Bethânia só sabia o básico”. “Quando comecei a cantar nos bares, era muito tímido. Eu só ia cantar pela força e pela vontade de cantar. Não me mexia muito, não mexia a mão, não olhava para o público. Só cantava cabisbaixo, parado. Só queria cantar”, conta.

A convite do amigo Gabriel Sá, Almério participou e passou em testes para fazer musicais, e isso definiu aspectos de sua carreira. “Passei por todo o processo da preparação corporal, da preparação vocal, teste de resistência, preparação de texto. E isso modificou a minha forma de sentir e ver música. Passei a querer levar o teatro para os meus espetáculos”, diz.

O primeiro figurino eram asas, que, a princípio, Almério achou que não teria coragem de usar. Ele provou e foi empurrado para o palco com medo mesmo: “Olhei para o público e abri as asas. Abri as asas assustado, mas aquilo teve um efeito gigante em mim e no público. Quando eu saí do palco, era outro artista. Senti o pássaro. O teatro foi muito importante para isso”.

A valorização desses recursos teatrais foi, de certa forma, mais uma aproximação de Almério com Bethânia. “Sempre amei Bethânia exatamente por isso, pelo respeito que ela tem pelo ofício. Ela está a serviço da música, e não o contrário. Ela não é vaidosa ao ponto de querer ser mais que a música. É uma coisa muito forte. E isso acho que deve ter ficado em mim”, fala.

Amor futuro

O amor antigo segue gerando frutos. O encontro com Maria Bethânia inspirou Almério a escrever uma letra, também enviada para a cantora. Incentivado por ela a musicar o poema, ele já cumpriu essa etapa, em parceria com Gean Ramos, em território do povo indígena Pankararu.

“Mandei a música pronta para Bethânia, em voz e violão. Também quero gravá-la, mas vai ser somente no final do ano. Antes disso, quero cantá-la em shows”, planeja. “Quero homenagear Bethânia sempre, porque a deusa tocou em mim.” Sobre a possibilidade de a cantora baiana participar em algum show, não há nada definido. “Mas ela tem dito sim”, brinca.

“Depois que eu cantei com Bethânia”
(Almério/Gean Ramos)

Depois que eu cantei com Bethânia

Meu corpo queimou como um Sol
Um raio eletrizou meu coração
A estrada virou força e canção
Eu não estou mais assim tão só

Depois que cantei com Bethânia

Senti o poder da compensação
Luta amparada pela arte
E tudo que arde, e tudo que parte
E volta a brotar do chão

Depois que cantei com Bethânia

O inalcançável
Reinicio o olhar para a vida
Vozes de asas ativas
Nome de gente, gentilmente urgente, peito, abertos, peito, abertos, peito, abertos

Depois que cantei com Bethânia

Meu rio assumiu as ausências
Ela entrega o entendimento das essências
O fronte, o monte, a fonte inesgotável de beleza
Nove céus, dessa Deusa

E quando alguém realiza o sonho da vida, vai para onde? Para onde se vai quando se chega ao ápice? “Meu recomeço está no meu novo disco. Volto para mim com muita força depois disso. Volto para observar a força que sempre esteve em mim, mas de que, por algum momento, tive medo. Quando Bethânia canta comigo, ela me abençoa com essa força. E eu volto para a minha arte, para estar a serviço dela”, completa Almério.

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Maria Bethânia e Almério. Imagem: acervo pessoal

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"É a cantora mais importante da nossa música brasileira"

Mart’nália
Cantora

Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?
Respeitar. Falar sobre Maria Bethânia, minha cabocla, é muito difícil e muito fácil pra mim. É simplesmente a cantora mais importante da nossa música brasileira. Por tudo que representa, postura de palco, canto, voz, trajetória. É uma artista de verdade!

Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?
Eu gosto de conversar sobre tudo com ela. 

Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensas? Por quê?
Uma canção na voz dela. Eu não sou intensa.

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"Cantar, cantar, cantar"

Chico Chico
Cantor e compositor

Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?

Cantar, cantar, cantar.

Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?

Adoraria tomar uma cervejinha com ela.

Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensos?

A música “Em nome de Deus”.

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Bethânia está em outra dimensão do cantar

Fabiana Cozza
Cantora, escritora, pesquisadora e intérprete

Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?

Acho difícil defini-la. Particularmente, tenho dificuldade em definir as pessoas, mas acho que seria iluminar. Maria Bethânia é dessas raríssimas artistas que têm potência e amorosidade, um respeito tão grande que é capaz de transformar sua arte num archote, numa luz, num farol. Um farol que ilumina a todos de arte, de uma brasilidade que ela traduz com muita peculiaridade, com singularidade.

Você se lembra da primeira vez que se viu impactada pela música de Bethânia?

Tenho claramente isso na minha memória. Antigamente, em São Paulo, existia uma casa de shows muito famosa chamada Palace. Fui junto com Marcelino Freire, um grande amigo, escritor e também fã de Bethânia, para vê-la. Na época, tinha 21 ou 22 anos. Não me recordo o nome do espetáculo, mas me lembro que, quando Bethânia entrou, eu me debrucei na mesa e não parava de chorar. Fiquei um tempo chorando, tanto que não consegui nem ver uma parte do show, porque aquilo foi de um impacto tão grande, um tremor, uma catarse. Nunca tinha visto uma artista com tamanha força, tamanho domínio, uma percepção de onde estava e, ao mesmo tempo, uma potência para trabalhar com o que não era visível. Acho que isso me impactou também porque eu, chorando, olhava para ela e parecia que ela iluminava o que não era possível de ser visto a olho nu. Fiquei completamente embasbacada. Quando terminou o show, aquela multidão saindo do teatro, eu recordo que me sentei na escadaria e fiquei ali, num canto, pensando e tentando entender o que havia acontecido. Lógico que, depois, vi Maria Bethânia outras vezes, e essa sensação do novo, do fresco, da força, de um corpo que se manifesta em muitas naturezas também voltava. Então, para mim, até hoje, assistir a Maria Bethânia é sempre uma inauguração. 

 Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?

Gostaria de conversar com Bethânia sobre comida, sobre comer. Porque acho que comer é celebrar, é doação, muito próximo da maneira como ela canta e da forma como gosto de pensar o canto. E a comida equivale, para mim, a um lugar absolutamente afetivo, já que venho de uma família de pessoas que cozinham muito bem, e esse encontro para celebrar a comida sempre foi amoroso. Então, acho que conversaria sobre comida. Não sei se Bethânia gosta de cozinhar, mas tenho essa curiosidade.

 E sobre música?

Eu vou confessar uma coisa: quando a gente tem uma admiração grande por uma artista dessa potência que é Bethânia, ficamos sempre constrangidos. Já tive a oportunidade de conversar com ela por telefone sobre uma apresentação linda que ela fez para um álbum meu e, depois, por causa do convite para participar de um disco da Dona Ivone, que ela prontamente aceitou com generosidade. Confesso que, quando falei com Bethânia, não foi nada fácil, e eu falei isso a ela, que achou engraçado ela é muito simpática. Fiquei nervosa de imaginar que estava conversando com aquela que me desperta tanta emoção. Mas, se fosse para falar de música, acho que perguntaria a Bethânia o que ela gostaria de gravar em outras línguas, que compositores poderiam permear o universo dela em outras línguas e qual ou quais línguas seriam essas. 

 Qual canção você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensas? Por quê?

Uma das canções que Bethânia gravou, que é de uma artista mais jovem e que eu acho avassaladora no campo das coisas do amor, é “Depois de ter você”, de Adriana Calcanhotto. E tem outra que eu acho de uma beleza ímpar, de Roque Ferreira e do sobrinho de Bethânia, J. Velloso, que é “Foguete”. Quando ela canta aquilo, coloca os balões nos nossos olhos, a gente vai imaginando a presença desse amor. É lindo. Tudo o que Bethânia cantou do Gonzaguinha também é absolutamente devastador. Para mim, é sempre uma novidade, porque a intérprete tem sempre uma opinião sobre aquilo que ela diz; a intérprete não é só uma cantora, ela é uma coisa a mais, está numa outra dimensão do cantar. Bethânia está em outra dimensão do cantar. Ela defende aquilo que diz, essa defesa faz da palavra uma ponte. A palavra deixa de ser palavra e ganha um trânsito que é para além do texto em que ela está. Bethânia faz isso e, por essa razão, ela é imensa. Para mim, como uma cantora que busca nesse caminho de intérprete o seu sol, Bethânia é um norte, um farol, um sul. Para nós, que estamos aqui no Hemisfério Sul, ela é o nosso sul. 

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Filme “Doces Bárbaros” (1977)

Em 1976, Maria Bethânia convidou o irmão, Caetano Veloso, e os amigos Gal Costa e Gilberto Gil para, juntos, se apresentarem pelo Brasil. Canções como “Exotérico”, “Um índio” e “O seu amor” eram parte do repertório do quarteto, cujo encontro, inclusive, gerou um elogiado álbum.

Toda essa experiência histórica, com apresentações marcantes, performances e momentos de descontração nos bastidores, foram captados pelo diretor Jom Tob Azulay, que lançou, o documentário Doces Bárbaros (1977). Assista aqui.

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"Suas canções movem montanhas"

Luisa Arraes
Atriz

Se você pudesse definir Maria Bethânia em um verbo, qual seria?
Atormentar. Porque Bethânia nos atormenta com seu maravilhamento, sua profundeza. É bela e tem uma coisa que dói. Perfura. Viver é muito perigoso, e Bethânia sabe disso. Não à toa suas canções movem montanhas.

Exceto música, que assunto você gostaria de conversar com Bethânia? Ou que pergunta faria a ela?
Adoraria saber mais do que Bethânia acha do Brasil, sobre o Brasil, para o Brasil. Queria muito ouvi-la falar sobre amor, sobre o que pensa dos relacionamentos amorosos, das suas experiências. Da sua liberdade. Bethânia, como ser fiel a você mesma?

Qual música você escolheria para mostrar que você e Bethânia são intensas? Por quê?
Adorei essa pergunta. Acho que “Rosa dos ventos”. Mas sou viciada na dramaturgia dos shows dela com Fauzi [Arap]. Gosto de tudo, porque tem tudo ali. Toda a contradição humana contida no êxtase. “E do amor gritou-se o escândalo / Do medo criou-se o trágico.”  Tudo isso por conta de um segundo, de um despertar. Como pode? É bonito demais.

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