O Cinema Social

A paixão pelo cinema fez de Vlado um profissional multimídia em um momento de escassos recursos para isso, o que lhe proporcionou tanto uma passagem pela BBC, em Londres, quanto participações em diversas produções audiovisuais do período.

No curta-metragem brasileiro Vlado e Birri: Encontros (2012), o cineasta e teórico argentino Fernando Birri (1925-2017) compartilha uma memória que data da década de 1950: a visita feita por Vlado e pelo diretor e produtor Maurice Capovilla à Escola Documental de Santa Fé – primeira universidade especializada no tema na América Latina –, em busca de “aprender a fazer cinema”.

O desejo se manifestaria novamente em 1963, quando Herzog se inscreveu para fazer um curso com Arne Sucksdorff, no Rio de Janeiro, e terminou realizando Marimbás (1963). Também colaborou como produtor, pesquisador e assistente de direção em longas e curtas-metragens que circularam em festivais internacionais, como Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, e Doramundo (1978), de João Batista de Andrade. Vlado era um entusiasta do documentário social. Para Zuenir Ventura, colega dos tempos da revista Visão, o amigo teria “partido, hoje, para o documentário”.

Todos os textos de Vladimir Herzog transcritos nesta página respeitam a grafia original de seu autor.

“Quando faleceu, ele estava pronto para fazer cinema. Infelizmente, não deu tempo.”

Clarice Herzog, em depoimento à equipe do Itaú Cultural

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Seção de vídeo

Marimbás

A produção do filme Marimbás, o único dirigido por Vladimir Herzog, é tema deste vídeo com depoimentos do jornalista Luiz Weis e dos cineastas Sérgio Muniz e João Batista de Andrade.

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Seis filmes indicados por Vladimir Herzog em matérias e cartas

por Milena Buarque

Em uma “Carta aos Cariocas”, publicada como coluna no Jornal do Commercio em fevereiro de 1963, o jornalista Vladimir Herzog traça um comparativo entre os cinemas produzidos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Diz-se encantado, “embriagado”, com a cena carioca. Com certa “tristeza de paulista”, Vlado é categórico: técnicos e montanhas de dinheiro não substituem a coragem e a audácia.

Criterioso e imbuído de um espírito crítico aguçado, o jornalista se dedicou de forma constante ao cinema, tanto em sua vida profissional quanto em momentos de lazer. Tinha no audiovisual uma grande paixão.

Confira a seguir o que Vlado achou de alguns filmes a que assistiu. As opiniões foram retiradas de críticas e matérias e de cartas enviadas a amigos, com quem costumava trocar frequentemente suas visões sobre o mundo.

Todos os textos de Vladimir Herzog transcritos nesta página respeitam a grafia original de seu autor.


Tire Dié
, de Fernando Birri

Pela primeira vez uma obra de arte cinematografica pro­duzida na América do Sul era sul-americana. Pela primeira vez, e num filme, o homem deste continente, isto é, o homem-maioria, o “lado de lá” desses milhões de individuos cujos direitos a uma vida digna foram retira­dos desde os tempos de Cortez, tinha lugar numa película.

“Tire Die” é, antes de mais nada, o que se poderia chamar de um filme voltado de dentro para fora. Se fôr verdadeira a afirmação de Cavalcanti de que “deve ser inculcada nos neófitos a consciencia do papel do cinema, da sua responsabilidade para com o público”, o filme de Birri é, a nosso ver, o seu mais perfeito exemplo e o único. Em tudo e por tudo “Tire Die” é, ele sim, um filme insolito.

(Em “Birri de Santa Fé”, texto publicado em O Estado de S. Paulo, 5 de abril de 1962)

 

Jules et Jim, de François Truffaut

Confessamos, antes de mais nada, que “Jules et Jim” nos desconcertou. Não sabemos até que ponto este filme de François Truffaut não nos foi assimilavel em sua totalidade por deficiencias proprias ou por incapacidade nossa. De qualquer modo, é um dos filmes mais importantes, senão o mais significativo da obra do autor de “Les 400 coups”. […] Não duvidamos que “Jules et Jim” seja um hino ao amor. Amor entendido como uma relação digna, despojada de toda a legenda de pieguice, romanticismo e falsa sentimentalidade que o situou na esfera egocentrico-exclusivista das existencias. Jules (Oscar Verner) e Jim (Henri Serri) são capazes de amar Catherine (Jeane Moreau) com a mesma nobreza em que é mantida a amizade de um ser humano para outro que ambos se dedicam.

(Em “A última fita de François Truffaut”, texto publicado em O Estado de S. Paulo, 8 de abril de 1962)

 

I Giorni Contati, de Elio Petri

O filme ocupa-se com uma tematica que de certa maneira se vincula ao humanismo dos realizadores neo-realistas, mais precisamente daquela fase de reexame critico do inicio da década de 50, com “Umberto D”, “Roma, Ore 11” e tantas outras que, abandonando, parcialmente os caminhos veristicos iniciais, derivaram para um realismo cujo sentido poetico jamais se desvinculou de um compromisso social.

(Em “Termina o Festival de Mar del Plata; vence fita italiana”, texto publicado em O Estado de S. Paulo, 3 de abril de 1962)

 

Yanco, Servando González

“Yanco” foi a fita mais aplaudida do festival [Mar del Plata] e confessamos termo-nos apaixonado por alguns aspectos da vida asteca mostrados na fita com um primitivismo algo procurado. O filme quase não tem dialogos e conta a hitoria de um menino e de seu violino, em meio aos costumes dos camponeses de descendencia marcadamente indigena. O calor que poderia ter emanado deste primitivismo foi prejudicado por uma fotografia excessivamente preciosa de Alex Phillips e pela concepção adjetivante.

(Em “Termina o Festival de Mar del Plata; vence fita italiana”, texto publicado em O Estado de S. Paulo, 3 de abril de 1962)

 

Viramundo, de Geraldo Sarno

[…] é “Viramundo” não só pela natureza do problema que aborda, mas também pelo método utilizado em sua realização (pesquisas prévias exaustivas, seleção valorativa dos dados colocados em função de uma demonstração dialética) fato sem precedentes na história do documentário social brasileiro. Pode ser (e acredito que assim seja) que o resultado final não correspondeu às expectativas, que o filme acabou resultando não muito claro (principalmente para as plateias estrangeiras) mas quando se tem em mente que êste tipo de cinema (ou de arte) é um cinema participante de um processo de transformação social percebe-se que mesmo as falhas (inevitáveis) tornam-se virtudes desde que, naturalmente, o autor ou autores tenham consciencia do caráter “científico” do seu instrumento de expressão e não queiram fazer obras “belas “ou “acabadas” em si mesmas. É o caso de Geraldo Sarno (diretor de “Viramundo). Daí que eu confio nele, e em sua fita, fita que abre caminhos, provoca raciocínio e discussão. Enfim, é fértil, porque contribue para o conhecimento objetivo de uma realidade ou um elemento dela.

(Trecho de carta enviada ao amigo Tamás Szmrecsányi, 7 de janeiro de 1966)

 

The War Game, de Peter Watkins

Consegui finalmente marcar em encontro e bater um papo com Peter Watkins, o genial diretor do genialérrimo “The War Game”. Creio já ter falado abundantemente sobre esta fita em cartas anteriores. É um documentário-ficção sobre como seria um ataque atômico contra a Inglaterra, partindo de premissas baseadas na conjuntura internacional atual. Se quiserem saber mais detalhes, perguntem ao Cacá Diegues, que esteve aqui há dias e também ficou embasbacado com o filme. Bem, como disse, bati um proveitoso papo com Watkins, rapaz de 30 anos, sujeito seríssimo que trabalha com métodos muito semelhantes aos nossos e com preocupações idem, embora evidentemente dentro do contexto da realidade inglesa. Sôbre essa realidade Watkins tem posições lucidíssimas, madurissimas e eu não hesitaria de chama-lo, em certo sentido (para que compreendam o que quero dizer) de o “Francesco Rosi britânico”.

(Trecho de carta enviada ao amigo Sergio Muniz, 10 de novembro de 1966)

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Canudos

É fato conhe­cido a intenção do jornalista de se dedicar a um filme sobre Canudos. Como relata o jornalista e amigo Paulo Markun em Meu Querido Vlado (Objetiva, 2005), nos idos de 1970, ainda como pré-produção de um programa de TV, Herzog esteve no sertão da Bahia “em busca de cenários e sobrevi­ventes da Guerra de Canudos”. Não é possível afirmar com precisão que as fotografias sejam de autoria do jornalista, no entanto, atestam a narrativa e o colocam no centro dos fatos.

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Paul Newman e a arte dramatica

MAR DEL PLATA, março — Rivalizando com Jean-Paul Belmondo em popularidade, Paul Newman veio a este balneário argentino para presenciar a exibição de seu ultimo filme, “The Hustler”, amostra norte-americana no IV Festival Internacional de Cinema. Na pelicula ele interpreta o papel de Eddie Felson, ambicioso e hábil jogador de bilhar. No momento em que escrevemos estas linhas não sabemos ainda qual a decisão do juri que preside ao certame, mas se o aplauso do publico presente á exibição de “The hustler” tiver alguma influencia, o ator dificilmente deixará de obter um premio.

“É o primeiro Festival de que participo” — diz Paul Newman, lamentando não ter trazido sua esposa, a atriz Joanne Woodward, que se acha participando de uma convenção medica de combate ao cancer nos Estados Unidos (ela ajuda a recolher fundos para pesquisas).

Numa entrevista que deu em mar del Plata, Newmann disse que reconhecia existir uma estardardização no tipo de representação “Actor’s Studio” dos atores menos experimentados. “Quem deve determinar o estilo é o dramaturgo e não o ator. O “Actor’s Studio” não pode ser culpado em virtude de alguns que imitam inapropriadamente o seu metodo.

— Que acha dos que o consideram como uma segunda versão de Marlon Brando?

— Sinto-me honrado com a comparação. Gosto muito do trabalho de Marlon, que é um otimo ator quando está realmente interessado em seu trabalho.

— O ator é um elemento maleável e passivo nas mãos do diretor?

— Quando se apresenta em sua melhor forma, o espetaculo resulta dos esforços entre ator, autor e diretor. Se o ator tem personalidade muito forte e o diretor fraca, o efeito será justamente o contrário.

— Sente-se melhor interpretando comedias ou dramas?

— Empenho-me igualmente em todos os papeis. Pessoalmente creio adaptar-me melhor aos papéis dramáticos caracteristicos.

— Nota alguma diferença entre a sua geração e a que o antecede?

— Tremenda. É como a pergunta da galinha e do ovo. Antes, os autores clássicos exigiam um tipo especial da interpretação. Novos diretores nos Estados Unidos criaram mais tarde uma interpretação de tipo naturalistico e os chamados “dramas de cozinha” (kitchen drama). Creio que o drama está enfermo. Encontramo-nos na fase final do drama psicologico de cozinha do tipo papai-nunca-me-beijou-por-isso-vou-matar-todo-mundo.

— E Kazan?

— Teve influencia importante numa certa epoca de renovação, que hoje está ultrapassada. Este tipo de drama está exausto.

— Pode mencionar algum diretor que tenha superado esta tendencia?

— Não posso dizer.

— Em que linha colocaria então a temática do seu filme “The Hustler”?

— Ela representa uma secção muito pequena da cultura americana, embora o problema seja universal.

— Que opinião tem dos jovens diretores novaiorquinos, como Casavettes e outros?

— Prefiro o trabalho de Nova York, onde há mais liberdade de criação. Só vi a fita “Shadows”. Basicamente, entretanto, estou em desacordo com a escola de Nova York, por não possuir uma economia genuina. Não tem aquilo que tem um verdadeiro pintor, que pode evoluir a partir de um traço. Acho que o ator não deve ser autoindulgente.

— É campeão de “twist”?

— Não. É imoral

— Em “Doce pássaro da juventude”, filme baseado na peça de Tenessee Williams, foi feito algum expurgo em relação ao texto original?

— Sim. Mas os elementos fundamentais da peça, bem como a sua conclusão, permaneceram os mesmos.

— Fale-nos algo da curta-metragem que dirigiu.

— Surpreendo-me que se saiba da sua existencia. Trata-se da filmagem de um monologo de 28 minutos de Tchekov, intitulado “Dos males que faz o tabaco”. A fita, entretanto, malogrou pois cometi dois erros importantes na direção.

— Está identificado com a tematica de Williams?

— Sempre estive interessado no problema da corrupção. Acho que a melhor maneira de mostrar às pessoas como podem ser melhores é mostrá-las naquilo que têm de pior.

— Que acha do filme de Fellini “A doce vida”?

— É um filme tremendo. Mas a meu ver sofre de falta de economia. É demasiado repetitivo.

— Considera seu preparo teatral adequado para interpretar Beckett?

— Não creio. O valor do teatro de vanguarda prende-se a fatores do momento. Além disso, não tenho veleidades de critico.

— Considera o conjunto do “Actor’s Studio” que visitou a America Latina como representativo da escola?

— Não vi a produção. Em todo caso, sei que não era um conjunto oficial da escola. Espero que no proximo ano eles mandem um conjunto oficial do “Studio”.

— Rejeita o texto em beneficio do efeito plastico?

— O trabalho do ator não é criativo, mas interpretativo.

Quando me dão um papel pergunto-me qual a sua posição no conjunto da obra e trato de desenvolvê-lo neste sentido.

— Que diz então de certas interpretações shakespearianas, como a de Marlon Brando em “Julio Cesar”, em que se dá maior ênfase á expressão corporal?

— “Julio Cesar”, o primeiro e segundo ato de “Romeu e Julieta” representam um comportamento marcadamente humano, tipico do seculo XV na Italia. Os amantes de Verona devem ser representados — como alguém já disse — numa atmosfera em que um cão virgem encontra uma cadela no cio. Gosto das representações do “Lincoln’s Center”. A interpretação não consiste apenas no limitar-se a uma forma de oratoria, mas pressupõe toda a expressão do ator. Eu nunca interpretei um personagem cerebral.

— Haverá alguém hoje que pudesse substituir James Dean na maneira de atuar?

— Não. Acho que se Jimmie estivesse vivo teria chegado a perfeições superiores a qualquer ator da atualidade.

— A que excessos pode levar o metodo do “Studio”?

— Ao abandono da economia. Vejam. (Newman neste ponto pede ao interlocutor que lhe faça uma pergunta que ele possa responder negativamente. Então, levanta-se, faz uma cara aborrecida, depois interrogativa, põe as mãos nos bolsos, depois coça a cabeça, põe a mão no queixo, depois coça o nariz, faz que vai falar mas não fala, olha no vazio, finalmente senta e balbucia — Não!…)

— Qual o seu maior defeito?

— Não ser suficientemente espontaneo.

Texto e fotos de Vladimir Herzog

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Na capa: Paul Newman e a atriz argentina Elsa Daniel

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Birri de Santa Fé

Faz um ano. Foram convidados para uma exibição que teria lugar no recém-construído auditorio do Ministério da Educação, em Buenos Aires. Lembro-me que era uma tarde fria, que pouca gente estava na sala: Guido Aristarco, Walter Lima Junior, cinefilos argentinos e o diretor da fita, Fernando Birri — um homem magro, com traços que denunciavam sua ascendencia italiana, que no Festival de Mar del Plata nos tinha mostrado sua primeiro longa-metragem, “Los Inundados” (1). Esta, denunciava um autor que na profissão que escolhera tinha objetivos determinados. Acreditava, principalmente, que o cinema podia de algum modo contribuir para a luta contra a injustiça social. Portanto, clara e diretamente, propunha Birri o “o que” e o “por que” de sua obra.

Cinema social. A palavra poderia prestar-se a um mundo de quiproquós, a fim de que diferentes gatos se misturassem no mesmo saco. Mas quando a projeção de “Tire Die” se iniciou, a natural expectativa cedeu pouco a pouco lugar á surpresa. Aquilo não era possível acontecer na Argentina, país com um passado cinematografico pouco encorajador, modernamente revivido em exercícios mais ou menos pueris de alguns autores incapazes de disfarçar a mágoa de não terem nascido em Paris. E, no entanto, ali estava a coisa diante de nossos olhos. Pela primeira vez uma obra de arte cinematografica produzida na América do Sul era sul-americana. Pela primeira vez, e num filme, o homem deste continente, isto é, o homem-maioria, o “lado de lá” desses milhões de individuos cujos direitos a uma vida digna foram retirados desde os tempos de Cortez, tinha lugar numa película.

Defensores de um cinema que se integre com as contingencias de uma realidade específica, seduziu-nos na fita este seu poder de transcendencia continental, poder cuja ausencia redundaria — como numerosas vezes ocorre entre nós e alhures — no mero registro do insólito ou, quando muito, na constatação mais ou menos complacente.

“Tire Die” é, antes de mais nada, o que se poderia chamar de um filme voltado de dentro para fora. Se fôr verdadeira a afirmação de Cavalcanti de que “deve ser inculcada nos neófitos a consciencia do papel do cinema, da sua responsabilidade para com o público”, o filme de Birri é, a nosso ver, o seu mais perfeito exemplo e o único. Em tudo e por tudo “Tire Die” é, ele sim, um filme insolito. Nele, o conceito de documentario adquire um sentido novo, ou melhor, carrega-se de sentido e, a partir deste filme, já não será possível sustentar concepções ultrapassadas sobre sua estrutura, sua concepção, seus objetivos e — somos forçados a dizê-lo — seu conteudo. Já não será possível, a partir de “Tire Die”, rotular como documentaristas a turismos mais ou menos virtuosisticos nem filmes que revelem abordagens intelectualizadas, frias, personalizadas, de determinados problemas socialmente reconhecidos como urgentes. Principalmente, não será mais possível fazer, em sã consciencia, filmes “neutros” e confusos. E confusos porque neutros. Pois “Tire Die” é um filme claro. Violentamente claro.

Sua clareza e seu dinamismo intrínseco provêm do proprio roteiro, realizado com base numa estrutura dialetica entre as imagens e entre estas e a faixa sonora. O resultado é um quase didatismo. A camera capta primeiro a realidade tal como ela se apresenta, em seguida separa seus elementos de acordo com sua relação causal; som (direto e narração) e imagem fundem-se a seguir na operação de ascensão até as causas primeiras, globais, nas quais o fato particular (embora diga respeito a uma pluralidade de elementos humanos) se inscreve no contexto social nacional e, por natureza e extensão, continental.

Os personagens de “Tire Die” são favelados que habitam uma área pantanosa, à entrada da cidade de Santa Fé, sob uma ponte de estrada de ferro. Ao aproximar-se de cada composição as crianças da favela sobem na ponte a fim de pedir esmolas aos passageiros do trem, aos gritos de “tire dié!… tire dié!” (ao pé da letra significaria “jogue um tostão” ou — o popular “me dá um dinheiro aí!…”). Estas crianças — que não podem ser muito novas, pois é preciso músculos para galgar a ponte e folego para correr atrás dos vagões, nem muito velhas para melhor estimular a compaixão dos passageiros — são o sustentaculo economico da favela. Fazer, portanto, o “tire dié” tornou-se para eles praticamente uma instituição.

Uma instituição desumana, que encontra similares em todos os grandes centros urbanos do hemisferio.

O filme inicia-se com uma ampla visão aerea da cidade de Santa Fé. O narrador dá o “dossier” do grande centro urbano: população, patrimonio, atividades economicas, renda “per capita” etc. Não se trata portanto de um lugar geografico escolhido a esmo. A cidade faz sua declaração de bens, dos quais fazem parte os barracos dos que vivem do “tire dié”. As relações que regulam a vida cotidiana na favela são mostradas através de uma forma de “cinema verdade” com os habitantes do local e pela descrição das atividades das crianças. Pergunta-se a uma mãe como e de que vive sua família. Quando ela tem filhos que se dedicam à esmola na ponte, mostra-se então todo o universo em que estes mantêm relações. O absurdo de sua condição emerge então como uma conclusão necessária do espectador, sem que o filme se esgote em si mesmo, isto é, sem que se limite a uma simples denuncia, porque deste “ersatz” dialetico emergem os responsaveis pelo estado de coisas: a metropole tentacular que se desenvolve através de um processo alienatorio e unilateral de aproveitamento dos recursos economicos. Qualquer coincidencia com a “cidade que mais cresce no mundo” é mera semelhança…

Por outro lado, “Tire Die” tem uma outra importancia, quem sabe maior do que o seu conteudo. Trata-se, na realidade, da primeira experiencia latino-americana, realmente concretizada, de cinema como produto de esforço coletivo. Além de coletivo, universitario. Aqueles que combatem pela reformulação de nossa estrutura de ensino em nível superior hão de perceber de imediato a importancia desse fato, pois “Tire Die”, na verdade, tem varias dezenas de autores. São os alunos de Fernando Birri, que ele dirige no Instituto de Cinematografia da Universidad del Litoral, em Santa Fé (2). Recém-saído do “Centro Sperimentale di Cinematografia” de Roma, Birri iniciou os cursos de cinema na Universidad del Litoral em abril de 1957, para uma turma inicial de 104 alunos e, no dizer de um seu discípulo, Juan Fernando Oliva, “com o desejo de transcender sua experiência conceptual e tecnica adquirida na Europa para uma linguagem cinematografica nacional na sua forma e conteúdo”. Dessa primeira turma faziam parte pessoas de todas as procedencias e níveis sociais: operarios, advogados, fotografos, uma dona de casa, um guarda policial, um industrial e um camponês. “A conexão do filme com os problemas esteticos, sociais e morais da epoca, sua função educativa, o aproveitamento de sua eloquencia para ajudar a melhorar a vida do homem como registro veraz, porém sensível do acontecer humano e, finalmente, como veículo de relação entre a arte e o povo, partindo do zero… foi a tecnica (e continua a sê-lo) dos cursos, fundindo a autenticidade da teoria no plano objetivo do trabalho pratico, mediante a intervenção direta de todos os alunos na crítica e na autocrítica do processo de estudos. Para tomar o essencial da vida e transformá-lo numa elaboração criativa da realidade, era necessario dominar um método de trabalho: a pesquisa”. A realidade será então registrada com maquinas fotograficas, lapis e cadernos.

Assim, durante os anos de 1956, 57 e 58, a equipe de Birri realiza “Tire Die”. Três anos para um filme de trinta e poucos minutos (3). Na estreia da fita, à qual compareceram quatro mil espectadores, uma circular definia os propósitos do grupo: “Colocar o cinema a serviço da Universidade e a Universidade a serviço da educação popular”. Para Birri, a Universidade “deve ser um centro produtor de cultura. Cultura, neste caso, quer dizer hoje e aqui, sensibilidade para os grandes problemas e temas nacionais” e acrescenta: “A escola de Santa Fé está procurando e encontrando um estilo; o que é mais significativo é o fato de que este estilo não é o resultado de uma busca formalística, mas precisamente o contrário: da procura de um sentido, de um conteúdo. E esse sentido consiste em querer ser util à coletividade; sua tecnica não é, por conseguinte, um metodo de invenção, mas de descobrimento”.

“Ser útil à coletividade” — quantos não se sentem tentados a tapar o nariz diante de semelhante afirmação, heretica para os que se denominam Artistas, para os quais a expressão entra na Idade Media no momento em que desce para as ruas. Sim, porque para os modernos artífices das “catedrais” cinematograficas, quando se vai até o povo, até a rua, se “desce”, se “renuncia” aos celestes desígnios de uma arte olímpica.

Aos moços de Santa Fé não interessa dialogar com meia duzia de iniciados. A frase de Grierson “tratamento criativo da realidade” implica para eles na possibilidade de um dialogo o mais vasto possível. E só é possível falar a muitos sobre aquilo que diz respeito a muitos, é atual e urgente. Em cinema como no resto. E nisto está o pioneirismo da escola de Santa Fé. Para concluir fazemos nossas as palavras do Reitor daquela Universidade, pronunciadas por ocasião da estréia de “Tire Die”: “Nosso dramatizado e confundido país suportou e suporta largos climas de indiferença individual, bem como as consequencias de profundos enganos políticos. A Universidade considera que dentro dessa consciência coletiva ou, mais exatamente, dentro dessa falta de consciência ou consciência incipiente, o nascimento de seu Instituto de Cinematografia corresponde a uma crise da verdade, que é sempre crise de crescimento”.

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(1) Prêmio “opera prima” para F. Birri no último Festival de Veneza.

(2) Os cursos do instituto desenvolvem-se em 3 anos letivos, compreendendo as seguintes disciplinas: introdução ao cinema, direção, produção, etica e sensitometria, camera, direção de fotografia, roteiro, gramatica cinematografica, sociologia, historia do cinema, crítica, compaginação, integração cultural, meios audiovisuais, espanhol e literatura argentina, historia e geografia, matematica, física e química.

(3) Além de “Tire Die” o Instituto realizou uma serie de curtas metragens, entre os quais filmes sôbre arte (“La pintura de Lopez Claro”), filmes para crianças (“El retabilio de Perico”), científicos (“Brucelosis”), problemas de habitação (“Los 40 cuartos”), etc.