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Pensamento e militância política

A atuação de Mario Pedrosa se mistura com seu pensamento político e a militância exercida durante toda a sua vida. Coerente com seus ideais, acabou participando de diferentes movimentos: foi comunista, abandonou o trotskismo, adotou o socialismo democrático e manteve-se sempre engajado na luta contra injustiças sociais e pelas liberdades.

Aos 26 anos, formado pela Faculdade de Direito de São Paulo e entrosado com personagens do meio artístico e intelectual progressista, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), sendo enviado para Moscou, na Rússia, um ano depois. Adoecido durante a viagem, instalou-se em Berlim, na Alemanha, e passou a frequentar cursos de filosofia e sociologia na universidade.

Após uma viagem a Paris, na França, onde conheceu o grupo surrealista – entre os integrantes estava o escritor e teórico francês André Breton –, Mario se aproximou das ideias de León Trótski e da oposição ao regime stalinista, o que o levou a participar da formação da Quarta Internacional, organização dissidente trotskista. Em 1929, foi expulso do PCB por discordar da linha do partido, stalinista.

De volta ao Brasil, nesse mesmo ano, tentou arregimentar militantes e lançou o jornal A Luta de Classe. Foi nele que Pedrosa e Lívio Xavier escreveram a primeira análise econômica marxista sobre o Brasil, em 1931: o estudo “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”.

Em 1931, participou da Liga Comunista do Brasil (LCB) e, dois anos depois, coligou-se à Frente Única Antifascista (FUA), que uniu vertentes de esquerda contra o movimento integralista que havia surgido no Brasil, uma versão local do fascismo que se desenvolvia na Europa. Um enfrentamento histórico entre as duas correntes aconteceu em 7 de outubro de 1934, na chamada Batalha da Sé, em que a FUA foi às vias de fato contra os integralistas. Pedrosa foi baleado no confronto. O acontecimento foi um dos responsáveis por minar o crescimento do integralismo, logo considerado irrelevante no jogo político nacional.

Em 1938, ele passou a compor o Secretariado Internacional (SI) do movimento pela Quarta Internacional. A proximidade com Trótski foi interrompida no início da década de 1940, quando Pedrosa foi acusado publicamente de desertor e traidor do movimento.

Em 1945, participou da fundação da União Socialista Popular (USP) e da organização do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em 1956, ele atuou na criação da Ação Democrática (AD) e, dez anos após, filiou-se ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tendo sido candidato a deputado federal em 1966, mas não se elegeu.

Depois de retornar de seu último exílio, em 1977, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980.

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Trajetória na militância

Avesso a dogmas, contrário a doutrinas rígidas, Mario se engajou desde a juventude na política de esquerda, mantendo sempre uma posição crítica e sua liberdade intelectual. Influenciado pelo marxismo, atuou na linha trotskista e, mesmo não sendo “um homem de partido”, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Em entrevista ao Itaú Cultural, a fotógrafa Bel Pedrosa, o músico e artista visual Quito Pedrosa e o escritor e jornalista Luiz Antônio Araujo comentam essa trajetória na militância.

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Mario Pedrosa, s.d. imagem: autoria desconhecida Centro de Estudos do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap) – Acervo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp)

Mario Pedrosa, s.d.
imagem: autoria desconhecida
Centro de Estudos do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap) – Acervo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp)

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"Dividido entre o entusiasmo militante – inspirado na revolução que derrubou uma das mais potentes e cruéis monarquias do planeta – e sua vibrante e avassaladora capacidade crítica e de formulação intelectual, Pedrosa jamais aquietou-se no conforto de posições políticas oportunistas. Ao contrário, até o fim de sua vida, sempre optou pela agudeza da crítica e pela permanência de sua inteligência autônoma, inquieta e criativa a serviço do que entendia como mais justo e certeiro para o triunfo das ideias socialistas e a emancipação dos trabalhadores."

José Castilho Marques Neto em texto para a publicação desta mostra

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Uma vida indômita, por José Castilho Marques Neto

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Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil

Estudo elaborado por Mario Pedrosa e Lívio Xavier e publicado em 1931.

O NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NO BRASIL

O modo de produção capitalista e a acumulação — e, portanto, a propriedade privada capitalista — foram diretamente exportados das metrópoles para o Novo Mundo. A base do sistema capitalista é a expropriação da massa do povo; mas, nas colônias em geral, o excesso de terra pode ser transformado em propriedade privada e em meio individual de produção. O colono livre sempre teve a possibilidade de se tornar proprietário de seu meio de produção, ou seja, podendo o trabalhador acumular para si mesmo, torna-se impossível a acumulação e o modo de produção capitalista. Essa foi a contradição que a burguesia da metrópole teve que resolver, “o segredo de seu florescimento e o de sua gangrena” (Marx). A dependência do trabalhador em relação ao capitalista, proprietário dos meios de produção, teve de ser criada por meios artificiais: a apropriação da terra pelo Estado, que a converteu em propriedade privada, e a introdução da escravidão indígena e negra; em resumo, a colonização sistemática.

No Brasil, a acumulação primitiva de capital ocorreu de maneira direta: a transformação da economia escravagista em assalariada nos campos e o fluxo imigratório, que já havia começado antes da abolição da escravidão, tinha como objetivo fornecer mão de obra para a grande cultura cafeeira [1]. O que ocorreu aqui foi o que Marx chama de “uma simples mudança de forma”. O Brasil nunca foi, desde sua primeira colonização, nada mais do que uma vasta exploração agrícola. Seu caráter de exploração rural colonial precedeu historicamente sua organização como Estado. Não havia terra livre aqui; não se conheceu o colono livre, dono de seus meios de produção, mas sim o aventureiro da metrópole, o nobre português, o comerciante holandês, o missionário jesuíta — que não tinham qualquer outra base senão o monopólio das terras. Sob uma forma peculiar de feudalismo, todos vinham explorar a força de trabalho do indígena adaptado e do negro importado [2].

A classe dos pequenos proprietários, um fator da pequena produção, geralmente anterior ao regime capitalista e cuja expropriação é um fator determinante deste, não pôde se desenvolver na formação econômica do Brasil. O Estado brasileiro sempre se caracterizou por um rígido esquematismo de classe. A sociedade monárquica se baseava na exploração do trabalho escravizado por uma minoria de senhores de terra, e a monarquia durou dois terços de século em meio à turbulência dos vizinhos do continente, prolongando, através da passividade burocrática, a vida de um regime político já caduco. Trabalho escravo, latifundium, produção dirigida pelos senhores de terra com sua clientela, burguesia urbana e uma camada insignificante de trabalhadores livres, tanto na cidade quanto no campo — essas foram as particularidades que marcaram a formação econômica e política do Brasil na América Latina, onde, em geral, a falta de uma agricultura organizada resultou na luta pela terra contra o indígena, e a luta contra o monopólio do comércio mantido pela coroa da Espanha. Nas colônias espanholas, o colono vivia de criação de gado e contrabando.

A destruição do regime escravista, que foi determinada pelas necessidades do desenvolvimento capitalista no Brasil, abriu ao mesmo tempo novas oportunidades para a indústria inglesa, que então monopolizava o mercado mundial. A burguesia brasileira nasceu no campo, não na cidade. A produção agrícola colonial foi desde o início destinada aos mercados externos. No século XVII, o Brasil foi o principal produtor de açúcar do mundo. Dos dois eixos de colonização: Bahia-Pernambuco e São Paulo-Rio de Janeiro, o primeiro obteve uma vantagem considerável sobre o segundo. Nas capitanias do norte, o braço africano construiu em vastas propriedades a prosperidade da aristocracia rural. No entanto, a produção de açúcar no Brasil foi gradualmente vencida, pouco a pouco, pela concorrência externa e tendeu a se restringir às necessidades do mercado interno. Com a descoberta das minas de ouro, o centro da atividade econômica da colônia se deslocou para o interior dos estados de Minas Gerais e da Bahia [3]. O trabalho foi atraído para essas regiões e o movimento agrícola diminuiu. A prospecção mineralógica tornou-se a indústria principal, cujo desenvolvimento caracteriza o século XVIII. A decadência das minas, porém, exploradas por métodos rudimentares, rapidamente começou. A pobreza do minerador, a falta de escravizados e a pressão fiscal se uniram. Voltou-se à exploração agrícola (cereais, cana-de-açúcar, tabaco, algodão).

A cultura do café começou relativamente tarde, nas regiões montanhosas vizinhas ao Rio de Janeiro. Desde esse momento, assumiu as características particulares que conserva até hoje [4].

A República foi imposta no Brasil pela burguesia cafeeira do estado de São Paulo, que não podia se contentar com uma forma de produção reacionária e patriarcal [5]. Com o advento da república, esse estado impôs sua hegemonia à Federação. Para que o desenvolvimento capitalista pudesse ocorrer nas antigas províncias sem graves choques, unidas por laços puramente políticos mas, em compensação, separadas por uma quase incomparável diversidade de possibilidades econômicas, os legisladores da constituinte conferiram à República uma forma federativa.

O notável desenvolvimento da cultura do café é, tipicamente, um desenvolvimento capitalista. Todas as condições necessárias para uma grande exploração estavam presentes: terras virgens, ausência de rendas fundiárias, possibilidades de aprimoramento na produção, em resumo, possibilidades de monocultura. Assim, o cafeicultor faz convergir simultaneamente todos os seus meios de produção para um único objetivo e, consequentemente, obtém lucros até então desconhecidos. Esse tipo de exploração determinou uma prosperidade favorável ao desenvolvimento do capitalismo sob todas as suas formas. Desse modo, o sistema de crédito, o desenvolvimento da dívida hipotecária, o comércio nos portos de exportação, tudo isso preparou uma base capitalista nacional. A mão de obra que faltava foi importada. A imigração assumiu então um caráter de empreendimento industrial.

A BURGUESIA E O PODER

As lutas políticas que a República tem enfrentado até agora, geralmente, durante as eleições presidenciais, se desenrolam ao redor dos grupos políticos dominantes no estado de São Paulo. A diferenciação econômica entre os Estados da Federação está se acentuando cada vez mais. A burguesia de São Paulo, aliada à de Minas Gerais, tomou conta do governo federal. As representações parlamentares dos estados secundários tornaram-se representantes do poder central nos estados, em vez de — de acordo com a ficção constitucional — representar os estados junto ao poder central. Mas o processo econômico gradualmente se estendeu por todo o território brasileiro, e, à medida que o capitalismo penetrou em todo o Brasil, transformando as bases econômicas mais atrasadas. Conforme o Brasil avança economicamente, integra-se cada vez mais à economia mundial e entra na esfera de influência imperialista [6]. Com a Grande Guerra e o protecionismo, o impulso industrial se intensificou, complicando as relações de classe e os problemas decorrentes delas. Até então, a política da burguesia era direcionada para manter o monopólio da produção cafeeira no mercado mundial. Com o advento da indústria e de uma maior penetração capitalista, o problema principal se complicou com a necessidade de criar mercados internos. A política interna está cada vez mais subordinada a essa questão fundamental: o recente desenvolvimento de estradas, a política financeira de estabilização, a intervenção direta do governo federal nos assuntos dos estados não têm outra explicação. A urgência e a escassez dos mercados internos são um dos pontos nevrálgicos da instabilidade econômica e política do Brasil.

Para o desenvolvimento dos mercados internos, todos os meios são utilizados, e um governo forte e centralizado é a condição essencial. O avanço imperialista é um irritante agente que acelera e agrava as contradições econômicas e de classes. O imperialismo altera constantemente a estrutura econômica dos países coloniais e das regiões submetidas à sua influência, impedindo o desenvolvimento capitalista de seguir um curso normal, não permitindo que esse desenvolvimento ocorra de maneira formal dentro dos limites do Estado. Por essa razão, a burguesia nacional não tem bases econômicas estáveis que lhe permitam construir uma superestrutura política e social progressista. O imperialismo não lhe dá tempo para respirar, e o fantasma da luta de classes proletária retira dela o prazer de uma digestão tranquila e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilhão imperialista, subordinando sua própria defesa à defesa do capitalismo. Daí sua incapacidade política, sua reacionarismo cego e vil e — em todos os aspectos — sua covardia. Nos países novos, diretamente subordinados ao imperialismo, a burguesia nacional, ao aparecer na arena histórica, já era velha e reacionária, com ideais democráticos corrompidos. A contradição que faz com que o imperialismo, — ao revolucionar de forma permanente a economia dos países submissos a ele —, atue como fator reacionário na política, encontre sua expressão em governos fortes, na subordinação da sociedade ao poder executivo. É assim que se repete na fase imperialista por um processo análogo, a subordinação da sociedade ao poder executivo, na qual Marx via a expressão da influência política dos camponeses parcelares. Além disso, as necessidades do desenvolvimento industrial têm, como condição essencial, o apoio direto do Estado: a indústria nasce ligada ao Estado por um cordão umbilical. O fortalecimento gradual do poder executivo é, além disso, um processo regular e sistemático do desenvolvimento industrial em países politicamente secundários, como demonstrado por Trotsky para a Rússia czarista. Esse processo se intensificou aqui [Brasil] desde a Grande Guerra, coincidindo com a predominância do imperialismo americano no cenário mundial, especialmente na América Latina. Ou seja, desde o governo do presidente Epitácio Pessoa. Foi então que a reação se tornou sistemática e assumiu um caráter de classe muito claro. A apologia dos governos fortes, a divinização da ordem, o ataque à democracia e ao liberalismo foram os principais pontos da ideologia reacionária que surgiram da fumaça das chaminés das fábricas e dos dreadnoughts [7] americanos. O governo de Epitácio Pessoa (1920-1922) marcou o auge da onda do constitucionalismo e do fetichismo da autoridade constituída. Durante os mandatos seguintes, o governo foi tomado pela obsessão histérica pela ordem e o regime social. Washington Luís, o presidente cujo mandato se encerrou em 15 de novembro de 1930, representa a hipertrofia do poder executivo, já separado dos interesses imediatos da fração da burguesia que o elevou ao poder. Aqui, mais uma vez, é confirmado o que Trotsky disse sobre a relação entre as classes burguesas e o czarismo, ou seja, que não era a força dessas classes que determinava o poder da monarquia russa, mas sua fraqueza. No Brasil, todas as classes são subordinadas ao executivo, e os slogans liberais mais banais têm um caráter subversivo para o governo. A conversa fiada de Maurício de Lacerda, seu frenesi pequeno-burguês, assume para o governo a aparência de declarações comunistas. Tais liberais aplaudem a repressão policial quando esta é exercida sobre as organizações proletárias. Marx disse que na véspera do golpe de Estado de Napoleão III, a burguesia francesa rotulou de heresia “socialista” o que antes celebrava como “liberal”, reconhecendo assim que, para conservar intacta sua força social, ela precisava romper com seu poder político, que a burguesia não pode continuar a explorar as outras classes e desfrutar tranquilamente de propriedade, família, religião e ordem, a menos que sua classe seja condenada à mesma nulidade política que as outras classes, declarando assim que sua dominação política é incompatível com sua segurança e própria existência.

CENTRALIZAÇÃO E FEDERAÇÃO

A burguesia de São Paulo sacrificou seus interesses gerais de classe e seu interesse político em prol de interesses particulares mais limitados, mais imediatamente materiais, sem considerar qualquer solidariedade de classe de caráter coletivo. Daí surge a luta de parte da burguesia nacional contra o “Partido Republicano Paulista”. Sob o regime burguês, o aparato estatal tende naturalmente a evoluir para uma centralização crescente. No Brasil, certas causas específicas definem e aceleram esse processo: a extensão territorial, a baixa densidade populacional, sua agricultura industrializada devido ao caráter especial da produção, a ausência de renda fundiária que faz o proprietário da terra se confundir com o proprietário da exploração agrícola; o desenvolvimento desigual do capitalismo, a divisão política que legaliza a supremacia dos estados mais fortes sobre os mais fracos; o impulso industrial progressivo e a pressão imperialista. Essa centralização se intensificou com o desenvolvimento industrial e a intervenção do capital americano, isto é, assim se mostrou a necessidade de criação de mercados internos. O poder federal se fortaleceu e a constituição foi reformada para facilitar a intervenção da União nos estados. Conforme a centralização da máquina governamental avança, a burguesia, sentindo-se protegida dos perigos e incômodos do governo, tende a se identificar com seus interesses gerais. O aparato do Estado federal se adapta cada vez melhor aos interesses econômicos da burguesia, diretamente devido à sua centralização. Se, atualmente, serve imediatamente aos interesses dos partidos dominantes de São Paulo, amanhã pode servir aos interesses dos partidos dominantes da burguesia de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. A atual revolta desses dois estados, que por motivos circunstanciais arrastam a Paraíba, é feita em nome da autonomia dos estados, pela defesa da Federação. Assim, os políticos desses estados defendem suas próprias posições. Se eles se resignarem a sofrer as violências do governo federal, isso significaria a conclusão no Brasil do processo centralizador do aparato estatal, consagrando a hegemonia definitiva de São Paulo sobre os demais estados da Federação. A revolta atual indica o contrário: a fórmula definitiva ainda não foi encontrada. A contradição entre a necessidade premente de centralização e a forma política federativa é evidente. O processo econômico exige centralização, enquanto a formação histórica dos estados exige a Federação como condição para a unidade nacional. Com o desenvolvimento capitalista dos outros estados do Brasil, é natural que os partidos dominantes nesses estados queiram participar cada vez mais — em pé de igualdade — na gestão do aparato do governo central. Assim, o poder executivo se tornou, na sociedade brasileira, a força decisiva que permite à oligarquia do partido que o exerce uma dominação quase completa. A burguesia nacional vê o poder do Estado escapar de suas mãos e é obrigada a ceder o controle político à ação internacional imperialista, devido à sua incapacidade histórica de agir coletivamente como classe. Suas diferentes frações não têm tradições políticas comuns, não se formaram com a consciência de seus interesses comuns de classe e não foram obrigadas a expropriar uma classe de pequenos proprietários de terra. Suas tradições históricas são principalmente nacionalistas, eles lutam contra invasores estrangeiros, mas essa foi uma luta episódica que nunca se estendeu a todo o país, mas, ao contrário, conservou um caráter regional e, por isso, foi rapidamente esquecida durante o longo desenvolvimento histórico posterior. A burguesia só começa a adquirir sua consciência de classe graças ao seu medo da revolução social. No Brasil, os partidos políticos, expressão das oligarquias políticas, não podem ter caráter nacional ou tradições políticas a defender. Essas oligarquias têm cada vez mais necessidade do poder federal à medida que o Estado se fortalece e se centraliza e o capitalismo transforma a base econômica sobre a qual repousam. Daí a luta constante pela Presidência da República. A revolta atual marca um momento desse processo. Os estados revoltados estão tentando resolver por meio das armas a violenta contradição entre a forma política federativa e o desenvolvimento pacífico das forças produtivas. A burguesia brasileira busca uma forma conciliatória entre a tendência centralizadora do governo e a forma federativa, garantia da unidade política do Brasil.

UNIDADE NACIONAL

A unidade nacional tem sido mais uma conquista política do que uma consequência econômica. Chegou a hora de colocá-la à prova. A burguesia nacional está tentando consolidá-la por meio das armas, o que é aparentemente paradoxal, mas, no fundo, obedece à dialética do processo econômico. O desenvolvimento das forças produtivas no âmbito nacional obriga a uma luta por uma fórmula política adequada para o equilíbrio dos estados prestes a iniciar seu avanço capitalista. Se a indústria de São Paulo carece de mercados, a indústria nascente e o caráter da policultura do Rio Grande do Sul desejam uma proteção mais atenta do governo central. A produção diversificada de Minas Gerais e suas perspectivas de desenvolvimento da indústria pesada exigem uma maior participação no poder central, além dos motivos políticos de seu levante, resumidos em repercussões: a quebra da aliança tradicional com São Paulo para o exercício do governo federal. O Nordeste exige uma intervenção menos precária da União, a fim de resolver de forma mais sistemática os problemas fundamentais de sua economia, possibilitando um desenvolvimento mais regular de suas forças produtivas. Os interesses dos imperialistas agravam ainda mais as contradições, pesando excessivamente sobre o Estado. O balanço de pagamentos tem sido constantemente deficitário, de modo que o Estado não teve outra opção senão pedir empréstimos a Londres e Nova York. Essa necessidade de recorrer constantemente ao crédito para cobrir a dívida anterior — um processo clássico de acumulação imperialista — teve,  como consequência natural, o aumento progressivo dos impostos e, consequentemente, a expropriação das classes rurais e proletárias. O empobrecimento dessas classes torna difícil, por um lado, o desenvolvimento dos mercados internos existentes e ainda mais difícil a formação de novos. Ao mesmo tempo, — devido à crise atual do café, que favorece para uma maior racionalização da cultura —, a tendência à diferenciação das classes no campo continua como um fator favorável à criação de novos mercados internos. A concentração da propriedade e sua divisão são a base contraditória do processo, ainda favorecido pelo desenvolvimento da luta armada, pela formação de uma classe média de pequenos proprietários. Por si só, um agrupamento aparece na arena política do Brasil como uma formação estranha à tradição histórica e econômica do país. Tem sua origem muito mais nos fluxos migratórios estrangeiros do que nas antigas populações rurais brasileiras e, por sua própria natureza, seus interesses são regionais. Por outro lado, sua economia fornece a base regional para um sentimento patriótico que não ultrapassa as fronteiras de um estado. Por necessidades de autodefesa, pode buscar impor sua vontade de classe sobre a base provincial, mas, na atual fase histórica do imperialismo, está irremediavelmente condenada, pois sua ascensão como classe no Estado tem como consequência a penetração ainda maior e mais constante de capitais estrangeiros, submetendo-a assim mais diretamente à dominação imperialista. Assim, a independência nacional se torna ainda mais precária, e a conservação da unidade política do país se torna mais difícil, já que a pequena propriedade não tem qualquer interesse específico na questão da unidade nacional.

Mas, independentemente do resultado da luta atual, a unidade do Brasil mantida pelo domínio da burguesia será garantida na razão direta da exploração crescente das classes oprimidas e do rebaixamento sistemático das condições de vida do proletariado. O grau mais ou menos elevado de sua consciência de classe, o tempo mais ou menos longo que levará para se formar, decidirão o destino dessa unidade, neste momento impossível nos estreitos limites capitalistas do Estado burguês nacional.

Em pleno turbilhão revolucionário, em 1917, Lênin deu como palavra de ordem primordial a necessidade de organização do proletariado. No Brasil, nas condições atuais, o trabalho mais urgente do proletariado é a criação de um verdadeiro partido comunista de massas, capaz de orientá-lo para sua tarefa histórica: a instauração da ditadura proletária e a preservação da unidade nacional pela organização do Estado soviético.

  1. CAMBOA. [Mario Pedrosa]
  2. LYON. [Lívio Xavier]

Outubro de 1930.

***

NOTAS

[1] Os dois fatores contrários ao estabelecimento de uma grande corrente imigratória, o regime de latifundium, o monopólio dos grandes  senhores  da terra, de fato e de jure, e a força do trabalho escravo, que criaram ambientes pouco propício ao desenvolvimento rápido do trabalho livre na exploração agrícola, sofreram um primeiro golpe com a abolição da escravatura, expressão jurídica de um processo econômico de que podemos compreender claramente a evolução, a partir de 1884, época em que a imigração aumentou progressivamente, apoiada em abundantes subsídios dados pelo Império.

Na província de São Paulo, a progressão foi a seguinte:

1884 — 4.879 imigrantes
1885 — 6.500
1886 — 9.356
1887 — 32.112
1888 — 92.086

(Dioclécio D. Duarte. Estudos de economia brasileira, p. 72).

[2] A coroa portuguesa distribuiu as terras do Brasil, repartidas em capitanias, a seus nobres e serviçais. O capitão-geral (governantes da capitania), não conseguindo ocupar as terras, teve de recorrer ao braço escravo. Enquanto a exploração das terras tinha caráter extensivo, o indígena servia; mas desde que o trabalho se tornou intensivo, foi mister importar negros da África. Em 1857 a capitania da Bahia já contava, para fazer face às demandas da cultura açucareira, além de 6.000 indígenas, 4.000 escravizados africanos.

[3] Humboldt diz que o Brasil forneceu metade do ouro da produção americana. As “bandeiras” (expedições) de São Paulo para a caça dos indígenas transformaram-se, pouco a pouco, em empresas de prospecção.

[4] “Perto do fim do século XVIII, certas culturas do Pará foram introduzidas na província do Rio de Janeiro. O vale do Paraíba prosperou, as plantações ganharam, pouco a pouco, a província de São Paulo. Foi a partir de 1835 que o desenvolvimento dos cafezais paulistas tornou-se considerável.” (Delgado de Carvalho: O Brasil Meridional.)

A progressão da porcentagem paulista na produção brasileira foi a seguinte:

1840 — 2,8 %
1860 — 10,5 %
1870 — 15,1 %
1880 — 27,5 %
1890 — 50 %

O Partido Republicano Paulista foi fundado em 1873, em Itu.

[5] Desde o período colonial, a metrópole instituiu a colonização livre. Em 1746, 4.000 famílias foram transportadas da Ilha da Madeira e das Açores ao Brasil. As primeiras concessões de terras aos estrangeiros residentes no Brasil foram efetuadas em 1808, mas a colonização oficial só foi tentada em 1818, com o estabelecimento de uma colônia de suíços e alemães. As tentativas oficiais de colonização livre, com a institucionalização da pequena propriedade, chocavam-se com o regime geral de grande propriedade rural e com o caráter industrial da produção agrícola no Brasil, dependente, desde o começo, do mercado mundial. O proprietário do latifundium viu-se obrigado a importar a força de trabalho, mas não lhe convinha importá-lo como pequeno proprietário isolado. Com a decadência do tráfico africano, a substituição do escravo pelo trabalhador assalariado tornou-se preocupação constante dos senhores da terra. O relatório da missão Abrantes, enviado em 1848 pelo Império à Alemanha, é edificante. Com o objetivo de prevenir a crise iminente – o tráfico tendia a cessar – o marquês de Abrantes propunha, entre outras coisas, as seguintes medidas: “Instituir a colonização, atraindo braços livres e capitais; provocar a separação da agricultura e da usina, na grande cultura cafeeira e açucareira; organizar por meio de regulamentos e pela ação da polícia local, o trabalho entre os libertos, obrigando-os a ´alugarem-se´ junto aos fazendeiros”.

A introdução sistemática do trabalhador assalariado pela agricultura paulista (imigração mantida financeiramente pelo Estado ou explorada por grandes companhias particulares), começou sob o ministério Cotegipe (1886). Antes disso, os fazendeiros paulistas deveriam importar de outras províncias grupos de escravos, sobretudo das províncias do Norte.

[6] Média anual, por período de 5 anos, da diferença entre exportação e importação:

Saldo favorável à exportação (em milhares de L.)

1901-1905………14.681
1906-1910………16.794
1911-1915………11.743
1916-1920………15.478
1921-1925………17.179
1926-1930………9.773

Dívida externa do Brasil (União, Estados e Municípios):

L.: 244.700.770 (aproximadamente).

Serviço da dívida:

Dívida do Estado, L.: 500.000 (aproximadamente).
Dívida privada, L.: 16.000.000.
Capital estrangeiro empregado no Brasil (Estimativa do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro).

Capital inglês (1929):

Indústrias………L. 122.000.000
Empréstimos………L. 180.436.000
Total………L. 302.436.000

Capital francês (1929):

Indústrias………frs. 1.500.000.000
Empréstimos………frs. 717.000.000
Total………frs. 2.217.000.000

Capital americano (1929):

Indústrias………$ 125.000.000
Empréstimos………$ 355.200.000
Total………$ 480.200.000

Capital alemão, italiano, português, holandês e outros.

Estimativa: $350.000.000.

[7] Nota do tradutor: Dreadnought foi um tipo de navio de guerra couraçado no início do século XX.

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Carta de Mario Pedrosa (pseudônimo Lebrun) a Leon Tróstki (M. Rork)

c/o Mary Green,
120 W 74th Street,
Nova Iorque, Nova Iorque.
23 de Março de 1940

Caro camarada W. Rork

É com profundo pesar que constato que, na primeira vez em que lhe escrevo, devo fazê-lo para expressar minha incompreensão e dúvidas em relação à política que você seguiu em relação à luta fracionária no partido norte-americano.

Lamento isso ainda mais porque, até agora, desde o dia da formação do movimento internacional da antiga Oposição de Esquerda, nunca tive qualquer divergência séria com você. Sou membro da organização internacional desde sua fundação no Ocidente, praticamente desde os primeiros passos da primeira oposição de esquerda na França, em 1928, onde eu estava. Fundei o movimento de oposição no meu país e desde então, militei sem interrupção nas fileiras bolcheviques-leninistas sob sua liderança. Forçado a sair do país, estando então sob processo, participei ativamente do movimento na França e no Secretariado Internacional (SI), durante todo o ano de 1938. A Conferência Internacional decidiu que eu deveria vir para a América do Norte, onde estou desde meados de 1938.

Assim, tive a oportunidade de acompanhar nosso movimento internacional de muito de perto e conhecer o partido norte-americano e seus principais dirigentes desde então, com os quais, aliás, aprendi muito.

Incapaz de continuar vivendo em Nova Iorque, tive que deixá-la por algum tempo, o que me colocou, mesmo contra minha vontade, um pouco afastado da vida ativa na organização durante estes últimos três meses. Portanto, foi com algum atraso que tomei conhecimento dos últimos acontecimentos e inclusive dos documentos acerca da luta fracionária que está acontecendo no interior do nosso partido norte-americano.

Isso talvez explique por que só agora tomei conhecimento de sua carta de 4 de março ao camarada Dobbs, na qual você afirma, com toda a autoridade de seu nome, que o Comitê Executivo Internacional (CEI) não existe mais. Não tendo encontrado a razão que o levou a fazer esse ataque público ao nosso organismo internacional, julguei ser meu dever expressar-lhe minha surpresa, especialmente porque até hoje, que eu saiba, você não se dirigiu ao CEI sobre a luta fracionária no Socialist Workers Party (SWP), nem para pedir-lhes que tomem posição, nem para propor-lhes qualquer coisa.

É verdade que a atividade do CEI nunca foi, nem na Europa, nem aqui na América, muito brilhante. E isso você sabe melhor do que ninguém, camarada Rork.

É verdade que o Secretariado Administrativo nomeado por nós, membros ativos do CEI, no início da guerra, não se digna sequer a comunicar as convocações das reuniões do CEI aos camaradas que suspeitam estar em discordância momentânea, com a política de sua fração, ou que não contam com sua autoridade, camarada Rork, ou que não passam de membros de uma pequena seção desconhecida e ilegal de um país distante e secundário, como eu.

Apesar de certas constatações sobre as deficiências de nossos organismos internacionais que eu já havia tido a oportunidade de notar antes de vir para a Europa, esses organismos me pareciam, de qualquer forma, muito mais vivos do que realmente eram: de longe, eles me pareciam imbuídos de uma certa autoridade própria que não conseguiram manter — e digo com infinito pesar — pois tive a oportunidade de conhecê-los de perto. Esta experiência, acredito, é compartilhada por todos os camaradas que, como eu, vindos de países pequenos ou distantes, tiveram contato pela primeira vez com o centro internacional, seja na França ou na América. Fui testemunha da luta quase heróica do camarada Camille para dar alguma vida ao SI. Todos os camaradas europeus, especialmente os emigrantes, queixavam-se dessa situação, dessa inexistência do nosso organismo internacional. Todos esperavam, e eu com eles, que a Conferência Internacional pusesse fim a essa situação, não apenas escandalosa, como muito perigosa para a vida de nossa Internacional. Todos concordaram — inclusive eu — que um verdadeiro centro internacional na Europa só poderia ser criado e gozar de certa autoridade se lhe fosse dado não apenas a possibilidade de vida material própria, como colocando, na direção de seus trabalhos, um dirigente responsável da seção americana, cuja autoridade fosse incontestável em toda a Internacional. A decisão de manter o SI na Europa foi tomada sob condição expressa de que o camarada Trent permanecesse como seu secretário. A direção do partido norte-americano não respondeu ao apelo da Conferência Internacional nesse sentido. O resultado foi, entre outras coisas, o colapso de nossa organização na França. A intervenção do partido norte-americano chegou tarde demais e acabou, aliás, de forma lamentável, especialmente após a intervenção desmoralizante do camarada G.

A inexistência de organismos internacionais que dirigentes de nossa Internacional era crônica. Foi até o pouco valor atribuído ao SI que facilitou a tarefa da GPU [1] quando decidiu assassinar Klement.

A guerra chegou e tornou-se necessário levar a sério a existência da organização internacional, apesar do sentimento de exaustão para com a Internacional, especialmente difundido entre os camaradas dirigentes do partido norte-americano que sustentavam ser a Quarta Internacional uma ficção e que, além dos Estados Unidos, nada restava. Muitos desses camaradas então chegaram à conclusão de que era necessário se restringir à vida do partido norte-americano e deixar o restante de lado. Esse sentimento foi particularmente sentido após a derrota da greve geral na França e a desintegração da seção francesa, em consequência, é verdade, do magnífico esforço feito pela base do partido norte-americano em resposta ao apelo em favor da solidariedade internacional para com os camaradas franceses.

Os dirigentes do partido americano tinham não apenas a maior parte da responsabilidade, como a única possibilidade de fornecer à Quarta Internacional uma base de organização estável.

Nenhuma das medidas antecipadas pelo antigo Bureau Latino-Americano para casos de guerra, destinadas a manter nossos contatos internacionais, ou seja, a criar uma espécie de pequeno bureau internacional em um país neutro da Europa e salvar da França alguns camaradas valiosos para a continuidade do trabalho internacional, foram consideradas pelo camarada G., então na França, encarregado do SI. Desta forma, não conseguimos salvar nenhum camarada francês, algo que o PSOP centrista e maçônico conseguiu fazer. O camarada Munis poderia detalhar para você qual foi a atitude do partido norte-americano na França durante essa época. Se conseguimos manter algumas ligações precárias com a Europa, foi senão graças ao acaso, principalmente porque a guerra ainda não havia se intensificado. Mas nossos camaradas emigrados, que estavam na França porque não tinham outra saída, estão agora todos em campos de concentração ou recrutados à força no exército francês. Naquela época, eles estavam literalmente morrendo de fome, a solidariedade política e revolucionária só existia no papel.

Nas atuais condições de guerra, os membros do CEI que se encontram atualmente na América são os únicos que podem se reunir facilmente; especialmente depois que a divisão em nosso movimento francês deixou pelo menos três delegados adidos ao CEI (Boitel, Julien e Hic) fora da organização. Ficou evidente que a maioria possível do CEI estava aqui. Esses camaradas deveriam, portanto, ser considerados como representantes do órgão dirigente, no lugar do SI da Quarta Internacional. Um camarada norte-americano foi indicado para o cargo de secretário técnico; certas conexões internacionais foram mais ou menos restabelecidas, no entanto, as decisões tomadas permaneceram no papel em sua maior parte. Basta dizer que a Quarta Internacional foi a única organização internacional que não emitiu um manifesto sobre a segunda grande guerra imperialista, exceto aquele que eu redigi e lançado pelo antigo Bureau Latino-Americano, especialmente destinado aos grupos latino-americanos.

A luta fracionária absorve toda a atenção dos dirigentes americanos; e as preocupações com os organismos dirigentes internacionais são minimizadas, a ponto do camarada Cannon duvidar que possa contar com a maioria deste comitê sobre a questão russa.

A situação que existia antes da Conferência Internacional não mudou. Sem o interesse e o apoio da seção norte-americana, a Quarta Internacional torna-se uma ficção enquanto organização internacional. Isso é hoje ainda mais verdadeiro do que na época do Congresso de Fundação da Quarta Internacional. Portanto, não importa dizer que a direção internacional deva ser um simples instrumento da fração dirigente deste partido; mesmo que seja admitido antecipadamente que esta fração detém o monopólio da sabedoria política e represente com exclusividade o verdadeiro espírito bolchevique em nossa organização. Se a direção internacional não pode viver, nas condições atuais, sem o suporte material e moral da seção norte-americana, ela não deve, entretanto, por isso, se subordinar à vontade — mesmo que seja inspirada pelos motivos mais saudáveis e legítimos — da fração dirigente do partido. Caso contrário, seria melhor decidir de uma vez por todas que a direção internacional doravante deve ser formada por um comitê composto apenas por você e o camarada Cannon, assistido por um estenógrafo.

Não posso crer que essa seja a sua intenção, camarada Rork, ao declarar que a CEI deixou de existir. Pois a Quarta Internacional não poderia ser construída dessa maneira. Não acredite, camarada Rork, que, ao escrever-lhe dessa forma, estou impulsionado por um sentimento fracionário qualquer. Minha intenção é apenas expressar francamente minhas preocupações de militante pelo futuro de nossa organização.

Parece-me que o método correto para preparar os quadros dirigentes da Internacional seria o de permitir que essa direção abra seu próprio caminho. O fato é que a guerra está presente e não estamos preparados para a tarefa, já que nossos dirigentes ainda não têm a autoridade necessária para realizar da melhor maneira, em meio às enormes dificuldades atuais, as tarefas revolucionárias que nos aguardam. Os camaradas cresceram politicamente acostumados a olhar sempre para o seu lado à procura de inspiração e de uma palavra orientadora. O medo de cometer erros paralisou a ação de nossos melhores camaradas internacionais; para muitos, isso era uma verdadeira inibição. Hoje, os acontecimentos mundiais lhes impõem outras responsabilidades. É preciso conceder a esses camaradas a possibilidade de assumir essas responsabilidades. Para armar os quadros dirigentes da Quarta Internacional com essa virtude essencial para um líder revolucionário, que é a confiança em si próprio, não é necessário, parece-me, desacreditá-los com o único objetivo de vencer a atual luta fracionária ou expulsá-los da organização, em uma disputa que não se trata de traição à bandeira da Quarta Internacional. Se você estiver certo, os eventos vão confundi-los e eles se submeterão à pedagogia dos fatos, já que não puderam se submeter àquela de um professor armado com uma palmatória na falta de argumentos mais convincentes. É com toda sinceridade que posso assegurar que fiz o melhor para ceder a seus argumentos sobre a questão da URSS, mas não consegui me convencer.

Da maneira como são atualmente, os quadros de dirigentes da Internacional, incluindo aqueles do partido norte-americano, representam o melhor que temos, esses que suas ações e seus ensinamentos cultivaram ao longo destes últimos quinze anos. É da ação coletiva deles, de sua capacidade de se orientarem através das dificuldades da luta e da confiança depositada neles, que nossa Internacional deve esperar poder viver, já que você mesmo não poderia substituí-los. Não acredito que seja possível formar novos quadros a qualquer momento. A experiência trágica de nossa seção espanhola prova isso. Quando Nin e seus amigos abandonaram nossas fileiras para se abrigarem no centrismo e no oportunismo, não fomos capazes de improvisar novos quadros de liderança a tempo de substituí-los. Apesar do heroísmo de alguns de nossos camaradas, eles não puderam, no fogo da luta, ocupar o lugar dos antigos dirigentes que partiram levando consigo todo o prestígio e a tradição de representantes do bolchevismo aos olhos das massas.

Supondo o pior para você, a saber, que a maioria do CEI, escolhido pela primeira Conferência Internacional não o siga na questão russa, deveríamos concluir que você se recusaria a reconhecer essa direção, enquanto permanece em minoria na Internacional? Se o sentido do seu post-scriptum fosse esse, você teria dado um golpe terrível em todo o nosso movimento internacional, ou seja, à obra da última parte de sua vida. A decepção seria aprofundada nas fileiras de toda Internacional, da América à China, da França ao Brasil, porque então não seria apenas o CEI que deixaria de existir, mas toda a Quarta Internacional enquanto organização. Recuso-me a acreditar, camarada Rork, que você deseja, com isso, planejar um pequeno golpe em nossa Internacional ao desacreditar antecipadamente o CEI para destituí-lo no caso de sua maioria atual não sustentar sua posição sobre a questão da URSS.

Ao superar o medo — que não quero esconder — de arriscar-me com esta carta a comprometer aos seus olhos a velha e inabalável solidariedade política e revolucionária que me une a você, eu decidi ir além e falar-lhe francamente, ao mesmo tempo garantindo-lhe, caro camarada Rork, que é especialmente quando me ouso a me opor firmemente a você em uma questão política dessa importância que não deixo de considerar-me seu camarada dedicado e discípulo fiel.

Lebrun

Cópias aos membros do CEI.

***

[1] Nota do tradutor: O GPU, ou Diretório Político do Estado, foi a polícia secreta da União Soviética, antecessor da KGB.

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Mario Pedrosa e seu grande amigo e interlocutor, Livio Xavier. Além deles, em sentido horário estão o bancário Mario Xavier, Mary Houston e a tradutora Berenice Xavier. A data é 1933 Centro de Estudos do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap) – Acervo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp)

Mario Pedrosa e seu grande amigo e interlocutor, Livio Xavier. Além deles, em sentido horário estão o bancário Mario Xavier, Mary Houston e a tradutora Berenice Xavier. A data é 1933
Centro de Estudos do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap) – Acervo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp)

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Carta aberta a um líder operário

Durante a ditadura militar no Brasil, Mario Pedrosa manteve sua intensa atividade nos terrenos da crítica de arte e do debate político com a publicação de artigos e livros. Após a promulgação do Ato Institucional no 5 (AI-5), em dezembro de 1968, participou de diversos embates contra a censura e as perseguições impostas pelo regime. Dois anos depois, foi processado pelo governo militar por denunciar torturas. Com sua prisão decretada, exilou-se no Chile. Após a queda do então presidente chileno, Salvador Allende, foi ao México e depois a Paris, onde passou o restante de seu longo exílio.

Em 1978, em meio à eclosão de greves e protestos operários e estudantis no Brasil, escreveu uma carta ao líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, saudando sua atuação. Mario foi um entusiasta da criação de um partido da classe trabalhadora, ideia que levou a Lula. Foi personagem central na organização do PT, fundado em 1980, um ano antes de sua morte. Em reconhecimento a sua liderança nesse processo, foi contemplado com a ficha de primeiro filiado da agremiação.

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Mario Pedrosa em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 1959. Espaço sempre aberto a amigos e artistas, o lugar também era habitado por muitas obras de arte imagem: Luciano Martins acervo Família Pedrosa

Mario Pedrosa em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 1959. Espaço sempre aberto a amigos e artistas, o lugar também era habitado por muitas obras de arte
imagem: Luciano Martins
acervo Família Pedrosa

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Carta de Salvador Allende para Mario Pedrosa

Santiago, 30 de abril de 1973

Senhor
MARIO PEDROSA
Presente.

Às vésperas da viagem que você vai realizar por diferentes países do mundo, cuja solidariedade dos artistas está comprometida com o Chile, desejo enviar, por seu intermédio, os cumprimentos e agradecimentos do povo do Chile e do Governo Popular a todos os membros que compõem o Comitê de Solidariedade Artística com o Chile.

Além disso, solicito que faça a esses artistas um convite para que compareçam, numa data próxima que será comunicada oportunamente, à inauguração do Museu da Solidariedade em nossa capital, que será a expressão tangível e permanente da amizade que une nossos povos.

O generoso apoio que este Comitê de Solidariedade representa para o desenvolvimento cultural do Chile não compromete apenas nossa gratidão, mas também serve como um poderoso estímulo para avançar no processo revolucionário que nosso país está vivendo.

Em agradecimento por sua gestão valiosa, saúdo-o atenciosamente.

SALVADOR ALLENDE GOSSENS
Presidente da República

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Disse Mario Pedrosa

[Discurso de Mario Pedrosa na inauguração do Museu da Solidariedade]

A ideia de solidariedade que o galo miroviano nos apresenta com tão imponente altivez não teria atingido o horizonte internacional assim, tão espontaneamente, sem o sopro vital que emana desta difícil, desta admiravelmente difícil realidade chilena que o senhor, Companheiro Presidente, tão bem representa. É por isso que neste exato momento, todos nós temos – como se estivesse em nossas mãos – a ideia simbolizada nessas pinturas, nestas esculturas, nestas gravuras e desenhos, nestas imagens que se desprendem destas salas, nos comovem e permitirão a constituição do Museu da Solidariedade que o senhor, companheiro Presidente, vai instaurar.

O que faço aqui, agora, é um ato abusivo de sub-rogação para falar em nome dos artistas que doaram ao Chile às suas obras, quando nenhum poder de procuração me foi concedido pelos artistas doadores por qualquer meio material, nem muito menos por nenhum dos respectivos canais burocráticos regulamentares. Essa procuração nós, membros do Comitê Internacional de Solidariedade Artística com o Chile, também a tiramos do ar. É que tudo acontece, mais do que no domínio da ideia em si, no domínio do ideal de socialismo que inspira os senhores, homens práticos que operam os mecanismos do Estado e as alavancas do poder, e inspira tanto os artistas do mundo que manejam instrumentos de trabalho ainda pessoais, destinados, em sua maioria, a capturar sensações, vivências, imagens, intuições, “a essência do homem”, em suma, em eterno conflito com sua existência, no fim do qual o homem encontra ou deve encontrar sua total libertação.

Agora, nestas salas, penduradas em suas paredes, já está materializada a ideia sob cujo calor enobrecedor nos reunimos aqui. Essa materialização é a arte em seu processo de aparecimento. Além de olhá-las, contemplá-las, admirar essas corporificações, de dialogar com elas pelo tato, pelos sentidos, pelo pensamento, adquirimos uma nova experiência vivencial, um novo enriquecimento cognitivo, que é principalmente um veículo da Verdade ainda transcendente em contraste com uma realidade que a nega. E enquanto a realidade a negá-la, a arte continua em sua aproximação permanente a uma verdade cada vez mais histórica e cada vez menos transcendente. Um dia, em um ponto do horizonte, os dois processos se encontrarão, e então a arte será a vida e a vida será arte. Desse otimismo vivem os homens de ação, que acreditam no futuro e querem forjá-lo como progresso e bem-estar; e vivem os artistas, que são os homens de imaginação, que querem criar a felicidade humana sobre a terra.

Permitam-me também que, voltando à primeira exposição do nosso Museu da Solidariedade – como o senhor, companheiro Presidente, o chamou em sua carta aos artistas do mundo –, dizer que esperamos novas obras de outras partes do mundo: dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França, da Itália e outros, além de nossos países da América do Sul, inclusive meu país, cujo governo fechou as portas de saída para nossos artistas que queriam demonstrar sua solidariedade com o socialismo chileno.

E mais ainda, que estas obras aqui expostas não estão distribuídas arbitrariamente; buscou-se uma lógica interna que as unisse, e seus espaços correspondem a essa lógica, na medida do possível. Todas as ideias ou estilos da arte contemporânea do mundo estão aqui representados. E vocês verão desde a linha lírica e criativa de Miró, até as obras que não pedem mais contemplação, mas são um chamado à ação revolucionária.

O que une indissoluvelmente essas doações é precisamente este sentimento de fraternidade, para que jamais se dispersem em direções e destinos diferentes. Os artistas as doam para um Museu que não se desfaça com o tempo, que permaneça através dos eventos como aquilo para o qual foi criado: um monumento de solidariedade cultural ao povo chileno em um momento excepcional de sua história.

Nosso Comitê agradece, Companheiro Presidente, pela concessão de espaços suficientes no prédio da UNCTAD III para abrigar o precioso acervo já formado, ao qual se agregarão as obras que estão por vir ou prometidas. Esta coleção fará do nosso Museu o mais rico da América Latina e o único de seu gênero.

Os doadores querem que suas obras sejam destinadas ao povo, que sejam acessíveis a ele permanentemente. E mais do que isso, que o trabalhador das fábricas e das minas, das povoados e dos campos entre em contato com elas, que as considere parte de seu patrimônio. A esperança dos artistas e a nossa é contribuir dessa maneira para a criatividade popular espontânea, para que flua livremente e possa colaborar para a transformação revolucionária do Chile. É assim que pensamos que o “Museu da Solidariedade” deve ser exemplar em suas funções específicas, exemplar em suas tarefas educativas e culturais, exemplar em sua acessibilidade democrática. Deve ser o lar natural das expressões culturais mais fecundas do Chile novo, consequência de seu avanço no caminho do socialismo. Esse é o desejo entusiasmado dos artistas do mundo que contribuem para isso entregando o produto de sua força criativa.

Agora só nos resta ouvir o canto do galo de Miró, que canta com seu bico aberto uma canção de fé e vigor, de quem sabe que anuncia o amanhecer. Que seja o novo amanhecer do Chile; é isso que esperam os artistas doadores e nós também.

Gostaria de agradecer ao senhor, Companheiro Presidente, pela compreensão que sua resposta aos artistas demonstra, e gostaria de fazê-lo em todas as línguas da terra.

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